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terça-feira, 28 de maio de 2013

MinC e a sociedade civil desnatada le gusta!



Este texto aborda três aspectos do papel do MinC e o Sistema Nacional de Cultura considerando superficialmente: Os Ministros passados, o Conselho Nacional de Cultura e os assessores e servidores orgânicos do MinC que já se foram, na minha perspectiva, morador de uma cidade média que já recebeu mais de 5 delegações do MinC para tratar do Sistema Nacional de Cultura, no caso, Presidente Prudente.
Os aspecto tratados são: a pedagogia do MinC, a sociedade civil e a miséria da municipalidades e o direito à cultura diante desses elementos.
Todas as reuniões do MinC são discursivas e pedagogicamente nulas, não transparecendo que há qualquer motivação para melhorar o tema. Nas primeiras visitas em 2009 os conselheiros e presentes não entendiam nada do que era dito e hoje continuam sem entender e só fazem Ctrl C e Ctrl V dos documentos oficiais e tratoram os debates ao estilo Sergio Motta.
Os termos complexos, novos, avançados e autista sobre a realidade local. Os documentos, necessidades e toda documentação exigida depende de estudo, traduções e esclarecimentos que as pessoas nem sabem se tem direito a esclarecimentos. E é verdadeiro que o processo é complexo. A pedagogia do MinC vai do pernóstico ao blasé e do político ao desnatado, descafeinado e com Zero calorias.
Em outro lado do discurso do MinC sempre se ouviu a tônica da participação da sociedade civil, a saber, em: conselhos, fóruns, conferências e na dinâmica local do legislativo e executivo. No final das contas, a proposta de entrar no Sistema Nacional de Cultura nunca teve em voga os favorecimentos das municipalidades em assinar os acordos de adesão. Na penumbra, apenas há uma insinuação de que sem fazerem essas assinaturas não ocorreria derramamento de verbas federais para os setores culturais municipais.
Acompanhando esse discurso, frequentemente se disse ou se garantiu que o MinC não tem papel e outorga de intervir nas municipalidades e quando são questionados sobre isso recorrem ao tempo da Ditadura Militar e que qualquer tentativa de apreciar a probidade do processo se igualaria aos anos de chumbo. E se vão blindados para seus afazeres incomensuráveis em seus gabinetes.
Nesse momento quem atua na sociedade civil entende que o chamamento a ela feita pelo MinC é como provocava o conservadorismo nacional sobre o ex-presidente: Queremos Lula sim! Desde que acorrentado!
A sociedade civil dita e expressa por Gil e Juca era uma! As expressas por Hollanda e Suplicy são outras e a que existe nos lugares são anuladas com suas bençãos. O intervencionismo do MinC, nos orientam: Procurem o Ministério Público?
Se procurarem as instâncias jurídicas elas dirão que as temáticas são políticas e interpretam, sem expressar, que é a demanda situada no campo doativismo jurídico! E paramos por ai! A Justiça do Brasil não julga os méritos políticos?
Percebe-se agora que o MinC abandonou qualquer amalgama do movimento social em luta para atingir números cordatos e sem qualquer consistência da sociedade civil. Estão tão absortos em números que esquecem, tal como gestores frágeis a necessidade de considerar as minorias políticas organizadas, porém massacradas pelos poderes locais, justamente por terem opinião própria.
A sociedade civil dos técnicos do MinC deve ser cordata, silenciosa, desnatada, descafeinada e acorrentada! Simplesmente porque, embora não vivamos anos de chumbo, vivemos os anos de plumas ou de manchas de democracia em lugares que elas nunca foram conquistadas dando docinhos e balas para a criançada.
O MinC, em nome de um democracia tênue e de incapacidade política faz seus técnicos absorverem algo tão penoso quanto a ditadura, mas a democracia de baixa intensidade denunciada no século passado pela Nobel da Paz Rigoberta Menchu, capaz de torturar, exaurir e esgotar de maneira permanente a crença na civilização! Nas ditaduras desaparecem corpos, mas não as almas! Nesse protótipo de política pública cultural e nas demais do pais, desaparecem as almas, mas sobram os corpos ambulantes!
As sugestões que se faz e que não serão aceitas são: refazer o plano pedagógico sobre o SNC; avisar à Justiça Federal para analisar e observar os abusos dos poderes locais contra todos os conselhos e sociedade civil; atrasar o processo numérico e fortalecer as instâncias de regulação da sociedade civil que são engolidas por gestores medrosos. E finalmente, parar de fingir que o desnatamento da sociedade civil colabora com sua qualificação política nas terras-de-ninguém! 

Nos querem muito! Desde que amordaçados! 
Antonio Sobreira

sexta-feira, 24 de maio de 2013

NOTA DE REPÚDIO DO COLEGIADO SETORIAL DE CULTURA AFRO BRASILEIRA/CNPC

 

Nós, membros do Colegiado Setorial de Cultura Afro Brasileira do Conselho Nacional de Políticas Culturais/CNPC/MinC, composto por 25 representantes de todas as regiões administrativas do Brasil viemos a público manifestar nosso repúdio a decisão do senhor juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão e ao escritório do advogado Pedro Leonel Pinto de Carvalho em suspender os Editais Afirmativos do Ministério da Cultura.

 

Contextualizado por Chauí à frente da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entre 1989 e 1992, um microcosmo paulista que sobremaneira representa a trajetória política cultural brasileira. No Estado Novo e na ditadura dos anos 60/70 a cultura oficial produzida pelo Estado como forma de justificar o regime político. No final dos anos 50 e início dos 60 uma cultura pedagógica, populista que dividiu a cultura entre a de elite e a popular. E em meados dos anos 80, com a minimização neoliberal do papel do Estado no plano da cultura, seguindo as regras e ditames do mercado e indústria cultural.

 

O Ministério da Cultura só foi criado em 1985, pelo Decreto 91.144 de 15 de março daquele ano. Reconhecia-se, assim, a autonomia e a importância desta área fundamental, até então tratada em conjunto com a educação.

 

No âmbito do Conselho Nacional de Politica Cultural reestruturado desde 2005 e que somente no final de 2012, a duras penas e com tantas outras dificuldades regionais constituiu-se e elegeu-se o PRIMEIRO Setorial de Culturas Afro-Brasileiras do CNPC composto por 25 representantes de todas as regiões administrativas do Brasil.

 

Finalmente em 2013 o Ministério da Cultura em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR, FUNARTE, Fundação Cultural Palmares, Fundação Biblioteca Nacional e Secretaria do Audiovisual criam os Editais Afirmativos que recebem quase 2 mil inscrições de todo Brasil.

 

Porque será que o Estado brasileiro, só instaurou editais afirmativos no Ministério da Cultura 28 anos depois de sua criação?

 

O Núcleo de Pesquisa "Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário" da PUC SP que estuda as relações raciais no Brasil desde 1990 e coordenado pela Profa. Teresinha Bernardo escreve:

 

"O racismo, aqui, é definido como uma "[...] crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural". (Munanga 2000, p.24). Grande parte dos estudiosos das relações raciais concorda com essa definição, tais como: Hasenbalg (2005), (Paixão (2006) e Guimarães (2004). Para este último, "racismo, em primeiro lugar, é referido como sendo uma doutrina, quer se queira científica, quer não, que prega a existência de raças humanas com diferentes qualidades e habilidades, ordenadas de tal modo que as raças formem um gradiente hierárquico de qualidades morais, psicológicas, físicas e intelectuais. [...] Além de doutrina, o racismo é também referido como sendo um corpo de atitudes, preferências e gostos instruídos pela ideia de raça e superioridade racial, seja no plano moral, estético, físico ou intelectual" (Guimarães, 2004, p.17)"

 

A existência de um grande número de estudos sobre relações raciais no Brasil mostra que há uma disputa entre duas grandes correntes. De um lado, uma que identifica harmonia nas relações sociais e, de outro, uma que afirma que há racismo no país.

 

Nós artistas, produtores, empreendedores, povos e comunidades tradicionais de matriz africana, negros e negras estamos ao lado de Frantz Fanon que afirma: "Defendemos, de uma vez por todas, o seguinte principio: uma sociedade é racista ou não o é." Estamos ainda ao lado do Principio Fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil que no inciso IV do artigo 3º.  diz: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

 

Estamos também ao lado do Estatuto da Igualdade Racial ( Lei 12.288, de 20 de julho de 2010), das Leis 10.649/2003 e 11.645/2008 que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena", do Decreto Federal 6040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, da Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485//2006, da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT, do I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana coordenado pela SEPPIR PR e que agrega os Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Meio Ambiente, Saúde, Educação, Cultura, Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Fundação Cultural Palmares, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

 

Do outro lado está o senhor juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão e o escritório do advogado Pedro Leonel Pinto de Carvalho que não acreditam que há racismo no Brasil e não conhecem nenhum dos marcos legais referente às ações afirmativas em seu país. Eles ainda não conhecem nada da realidade brasileira, pois acreditam que um edital só para negros no Brasil "abrem um acintoso e perigoso espectro de desigualdade racial".

 

Senhores membros do judiciário, nós Negros e Negras segundo os últimos dados do IBGE somos 50,7% da população brasileira. Um dado importante sobre a violência no Brasil refere-se à queda nos homicídios que vitimam brancos e um aumento de vítimas negras. Segundo o Mapa da Violência de 2011, o número de vítimas brancas caiu de 18.852 para 14.650, o que representa uma significativa diferença negativa, da ordem de 22,3%;já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou de 26.915 para 32.349,o que equivale a um crescimento de 20,2%.

 

Sr. juiz José Carlos do Vale Madeira já existe desigualdade racial em nosso país! Já existe racismo em nosso país! Os dados acima e sua decisão, mais uma vez nos prova isso. Mais uma vez nas palavras de Fanon: "[...] o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. o intermediário não alivia a opressão, não disfarça a dominação. Ele as expõe, ele as manifesta com a consciência tranquila das forças da ordem".

 

Repudiamos sua decisão!

 

 "A ação anti-racista deve cada vez mais lutar para impor mudanças em matéria de história, para introduzir a história das vítimas e dos vencidos na narrativa histórica – o que, aliás, pode levantar problemas e suscitar debates importantes, sobretudo sobre a relação entre história e memórias." (Wieviorka, 2008). Dessa forma, essas ações possibilitam a visibilidade do racismo, em todas as suas formas, para a população brasileira.

 

Assinam,                                                                                              

 

- COLEGIADO SETORIAL DE CULTURA AFRO BRASILEIRA/CNPC/MinC

- ASSOCIAÇÃO DO CULTO AFRO ITABUNENSE

- ASSOCIAÇÃO GRAPIUNA DE ENTIDADES RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA

- Arthur Leandro/ Táta Kinamboji – INSTITUTO NANGETU / Belém / PA

CODAPA - COMISSÃO DE DIÁLOGO AFRORRELIGIOSO DO ESTADO DO PARÁ

- NÚCLEO DE CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS DO FORUN PARA AS CULTURAS POPULARES E TRADICIONAIS

- FUNACULTY – Fundação de Apoio ao Culto e Tradição Yorùbá no Brasil

- ASSOCIAÇÃO DE CONSCIÊNCIA NEGRA QUILOMBO- ASCONQ

- RREMAS - Rede Religiosa de Matriz Africana do Suburbio / Vice-Presidente Edvaldo Pena da Silva

- ACBANTU - Associação de Preservação Cultural ao Patrimônio Bantu /Taata Raimundo Komananji

- AFA AMERINDIA / Presidente Ogan Leonel Monteiro

- NAFRO PM - Núcleo de Apoio as Religiões de Matriz Africana da Polícia Militar /Coordenador do NAFRO e Presidente do CMCN - Conselho Municipal de Comunidade Negra / Taata Eurico Alcântara

- SIOBÁ - Sociedade e Irmandade dos Ogans, Ojés e Taatas da Bahia / Ogan Walter Rui

- ASSOCIAÇÃO ILÊ ASÉ OSHUM / Presidente Jeziel Silva Anjos

- EGBÉ AXÉ - Associação dos Terreiros da Liberdade e Adjacências /Yalorisà Diana

- RENAFRO-SAUDE-RS - Rede Nacional de Religião Afro Brasileira e Saude - Núcleo RS

- Africanamente - Centro de Pesquisa, resgate e preservação de Tradições Afrodescendentes

- ILE ASE IYEMONJA OMI OLODO

CASA DO CONGADO - Associação Nacional das Congadas, Moçambique e Marujadas - Pesquisa e Defesa das Tradições Populares - Mestre Silvio Antônio

- FORUM PARA AS CULTURAS POPULARES E TRADICIONAIS

- Quisqueya Brasil – projetos afro-diaspóricos de cultura e educação/ Liliane Braga

- ILE ASE PALEPA MARIWO SESU - SP


segunda-feira, 20 de maio de 2013

Arquivo na Unicamp recebe acervo teatral

URL: agencia.fapesp.br/17293
 

Acervo do jornalista e poeta João Apolinário reúne catálogos de peças de 1964 a 1974, cerca de 250 programas impressos e mais de 1,2 mil fotos (Unicamp)

Arquivo na Unicamp recebe acervo teatral

20/05/2013
Agência FAPESP – Mais de 500 críticas teatrais, cerca de 1,2 mil fotos de espetáculos e 250 programas de peças dos anos 1960 e 1970 fazem parte do acervo do jornalista e poeta português João Apolinário (1924-1988) entregue ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que preserva registros dos mais diversos movimentos sociais ocorridos no Brasil.
 
Apolinário foi redator e editor de variedades do jornal Última Hora, em São Paulo. Durante o regime militar (1964-1985), escreveu sobre um teatro brasileiro que buscava construir uma identidade nacional em meio aos conflitos sociais e políticos daquele período. Conviveu com uma reconhecida geração de diretores, dramaturgos e atores, como Oduvaldo Viana Filho, Ademar Guerra, Gianfrancesco Guarnieri, José Celso Martinez, Augusto Boal, Plínio Marcos, Eva Wilma e Raul Cortez.
 
O material doado abrange o período de 1964 a 1974, segundo a organizadora do acervo, a professora de história Maria Luiza Teixeira Vasconcelos, viúva de Apolinário. Nos últimos cinco anos, ela conduziu um trabalho de recuperação da obra do crítico teatral a partir do arquivo pessoal do jornalista e de pesquisas nos acervos e bancos de imagens do Última Hora, que estão no Arquivo Público do Estado de São Paulo e com o jornal Folha de S.Paulo.
 
"O papel do crítico, para Apolinário, era formar um público atento, esclarecido sobre o espetáculo e com espírito crítico", disse Vasconcelos. O jornalista escreveu sobre os principais grupos teatrais desse período, entre outros, como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina (cujo acervo, de 1958 a 1986, já está no AEL da Unicamp). Em 1975, com a queda do salazarismo (Revolução dos Cravos), Apolinário voltou a viver em Portugal, onde morreu em 1988.
 
"Esse material compõe uma importante temática relacionada à cultura do Brasil e complementará o acervo existente", disse a diretora técnica do AEL, Elaine Marques Zanatta, ao encontrar em uma das caixas o folheto da peça O Rei da Vela em excelente estado de conservação.
 
A assinatura da doação foi realizada em São Paulo no dia 15 de maio, quando do lançamento do livro A Crítica de João Apolinário – memória do teatro paulista de 1964 a 1971, volume 1 e 2, com cerca de 1,2 mil páginas, publicado pela editora Imagens. Também organizado por Vasconcelos, o livro reúne críticas e fotos dos espetáculos analisados por Apolinário de 1964 a 1971, mais um apêndice especial contendo os principais textos de 1971 a 1974.
 
Mais informações: http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael



Breve relato Encontro Estadual do Teatro Paraense 2013

Acabo de chegar em casa, vindo de Igarapé-Açu, depois de um fim de semana maravilhoso com a minha gente de Teatro, fazendo juntos mais uma edição do Encontro Estadual do Teatro Paraense, que esse ano teve o tema "Teatro e Política: A gente quer o quê e pra quê?.

O Fórum Livre Permanente de Teatro do Pará, esse espaço de discussão horizontal e não-hierárquico responsável pela organização do Encontro revela cada vez mais a necessidade de aprendermos a usar coletivamente essa incrível ferramenta de transformação social que é o Teatro, e fazê-lo chegar cada vez mais e mais até aqueles que também são partícipes do nosso trabalho: o público.

A prova disso foi a grande adesão da população de Igarapé-Açu - que a princípio deve ter estranhado aquele estranho cortejo de loucos teatreiros e teatreiras fantasiados, percorrendo a pista principal da cidade, falando sobre cultura, cidadania, política e novas perspectivas sociais para nosso estado, mas que aceitou o convite de juntar-se a nós em uma noite cultural e prestigiar os diversos Grupos que ali vieram apresentar.

Em breve, vamos expor o resultado das discussões desse encontro, apresentando propostas de ação para expandir o Teatro no estado, articulando-o a outras áreas do conhecimento humano e da gestão pública, criando condições de acesso ao seu fazer e consumo e também garantindo oportunidades de trabalho dignas para todos aqueles e aquelas que fazem do palco (mesmo que seja o palco da rua, da escola, da igreja, dos hospitais, etc.) a sua razão de existir.

Meus sinceros agradecimentos a todos que construíram esse momento lindo junto com a gente. Em especial ao incansável Zezinho Aguiar e os seus guerreiros do Teatro e Circo Imaginário, de Igarapé-Açu, mas também aqueles grupos sempre presentes na luta: In Bust Teatro com Bonecos, Companhia de Teatro Madalenas, Palhaços Trovadores, meus amad@s do Grupo de Teatro da Unipop, Dirigível Coletivo de Teatro, Notáveis Clowns, Grupo de Teatro Universitário da UFPA (GTU), às minhas alunas do Curso de Iniciação teatral da Unipop e outros grupos e artistas independentes e não menos importantes (desculpem, agora não lembro de todos...) que somaram esforços para esse momento tão especial!

E VIVA O TEATRO!!!

André Souza

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sexta-feira, 17 de maio de 2013

RELAMPIÃO: O RETORNO DO MITO?

RELAMPIÃO: O RETORNO DO MITO?[1]

 

Adailtom Alves Teixeira[2]

 

Todo o mundo já ouviu

Falar sobre Lampião,

O famoso cangaceiro

Corajoso e valentão

Que, na região Nordeste,

Assombrou todo o sertão.

Lampião: herói ou bandido? João Firmino Cabral

 

Manhã de um domingo nublado, dia 25 de novembro de 2012, um grupo de atores de dois grupos, Paulicea e Miolo e outros convidados, se preparam para apresentar o espetáculo Relampião dentro da programação da 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas na Praça Carlos Kozeritz, no Jardim Julieta, zona norte da cidade de São Paulo. As pessoas do local tem certa familiaridade com a arte teatral, pois é ali que o Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo desenvolve diversas atividades, dentre as quais sua própria mostra de teatro. A praça é cortada por uma avenida bem movimentada e é também ponto final de transporte coletivo e ainda é rodeada por conjuntos habitacionais populares, todo esse fervilhamento de gente é complementada pela feira livre que ocorre aos domingos naquele local. Últimos ajustes no equipamento de som e os atores estão prontos para começar a apresentação de Relampião.

O prefixo re, de origem latina, de acordo com Mini Aurélio (2010: LXXXV), tem o significado de para trás, repetição, intensidade, mudança de estado. Dessa forma, podemos dizer que o termo relampião seria um desejo de repetir algo do passado, com certa intensidade, para, assim, mudar determinado estado de coisas. O desejo traduzido no termo tenta aproximar, por meio do espetáculo, o cangaço das questões cotidianas na atualidade. "O que há em comum entre a luta do cangaço e as lutas pela vida na contemporaneidade?", perguntam-se todos envolvidos no projeto em seu material gráfico distribuído ao termino do espetáculo.

Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, após perder o pai (assassinado pela polícia) cria um bando de jagunços que apavorou o sertão nordestino, tornando-se depois um mito contraditório: bandido ou herói? O espetáculo Relampião também tem como mote as perdas. Cada personagem perdeu ou perde algo todos os dias: a mulher que busca ter sua casa, o desempregado, o sambista que teve sua música roubada (ou "vendida", como depois se descobre), a mãe que perdeu seu filho em mais uma violência da grande cidade... inúmeras são as perdas, por isso o artesão Virgulino, personagem do espetáculo, alude ao passado na tentativa de refazer o presente, ao se dirigir diretamente ao público: "Tá cheio de Lampião por aí, basta reluzir". Todas as personagens trabalham ou "vivem" na rua, são o que já se chamou em certo momento da história de lumpenproletariado ou, contemporaneamente de refugos humano.

A dramaturgia, apesar de ter sido finalizada por Solange Dias, foi criada por todos os atores, que fizeram suas pesquisas e levaram para a sala de ensaio. Aysha Nascimento, que faz a mãe que perdeu seu filho na violência da grande cidade leva à cena um texto no qual fundiu Carlos Drummond de Andrade e Marcelino Freire, apresentando um discurso vigoroso sobre a perda e o enfrentamento das mazelas. Discurso, sim. No espaço épico da rua, quando bem feito e contextualizado, tudo é permitido.

Alfaias, sanfona e rabeca, sons característicos do Nordeste se fazem presentes no espetáculo e nos transportam no tempo e no espaço. A música apresentada ao vivo, sem dúvida, faz com que o espetáculo conquiste o público, seduza os ouvidos e o corpo de todos. Daí a importância de mencionar a direção musical de Charles Raszl, que possibilitou que o ambiente nordestino se fizesse presente também pela música. Plasticamente o espetáculo é muito bem resolvido, encanta e agrada os olhos. Este é o primeiro espetáculo dirigido para rua por Alexandre Kavanji, daí alguns pequenos problemas como o personagem Virgulino, que tem chave dramática, os atores ainda muito presos às suas marcas, ignorando, em alguns momentos a relação que se faz necessária na rua. Mas isso a própria rua e a relação com o público tende a modificar. Kavanji, que já tem uma longa história teatral, ganha o espaço aberto. Que bom!

Se o Lampião do passado começou sua trajetória a partir da perda, depois veio a cometer muitas atrocidades também, tanto quanto as sofridas por ele e sua família. O Lampião do presente, por meio do espetáculo, também comete um equívoco – claro que incomparável ao Lampião do passado, mas digno de nota: ele fica todo o espetáculo procurando reunir um bando para enfrentar seus problemas, mas ao conseguir, vai enfrentar justamente um dos seus, um fiscal que ao longo do espetáculo procura um emprego de carteira assinada (que representa uma melhor dignidade em sua concepção) e encontra emprego no ambiente de enfrentamento dos seus. Essa contradição não é resolvida e nem desenvolvida, o espetáculo finaliza com o bando em claro enfrentamento com o fiscal, mas se este representa a opressão clara e direta, a verdadeira máquina que faz esse mecanismo funcionar se quer é tocada, isto é, a estrutura que está por trás disso tudo bem como o sistema que a gera. Nesse ponto, penso eu, reside o maior problema do espetáculo.



[1] Texto escrito para a revista Arte e Resistência na Rua, publicação do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.

[2] Mestre em Artes e Licenciado em História; membro do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; ator do Buraco d`Oráculo.


segunda-feira, 13 de maio de 2013

De um passante – sobre o último dia da VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista


Gyorgy Laszlo[1]

Alguém que caminhasse desatento por aquele domingo dia 16 de Dezembro à tarde na Rua Ida Vanussi Puntel, em São Miguel Paulista, extremo leste de São Paulo, poderia evocar o primeiro verso de Charles Baudelaire, que dedica a uma passante: "A rua em derredor era um ruído incomum". O cheiro de churrasco, as latinhas de cerveja, as gargalhadas e os ritmos pulsando dos aparelhos sonoros invadiam as calçadas: vindas das casas, uma ao lado da outra, com sua própria churrasqueira, algumas dividindo o som, outras rivalizando com ele, criando assim uma terceira música, espécie de sinfonia torta, as comemorações se misturavam. Este mesmo passante poderia pensar, em um exercício de imaginação, que não havia paredes a separar as casas de modo que se tratava de uma única grande casa, imensa, ocupando os dois lados da rua, a organizar uma única festa. Naquela manhã o Corinthians ganhava o título de campeão mundial.

Mais à frente, um pouco distante das camisas preto e branco, podia-se ver um bloqueio na rua, algo como uma barricada colorida: a rua fechada por pessoas, cadeiras e lonas: era o espaço de apresentação da VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, idealizada pelo grupo Buraco d`Oráculo. Ocupada por muitas crianças e moradores, que, mesmo não envolvidos com a música que ficara lá atrás nem com os espetinhos que se insinuavam às narinas, traziam sorrisos e a expressão de divertimento: o resquício do espetáculo que acabara há pouco: Bufonarias II, da Trupe Olho da Rua, de Santos. Os atores, ainda trajados de palhaços, limpavam suas maquiagens e faziam brincadeiras com quem por perto deles passasse. E o cenário, que aos poucos se desmontava, misturava-se ao do Saltimbembe Mambembancos, do grupo Circo e Teatro Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente.

Esta efusão de cores vivas materializada em pernas de pau, instrumentos sonoros, malabares, vestes espalhafatosas, propiciada ao observador que se atentasse à arrumação, faz suscitar uma ideia de irmandade, para além da amizade presente entre os dois grupos: espetáculos de palhaços, de grupos com uma militância muito presente, que apesar de suas especificidades, fazem do riso arma de ação política. Sabem, também, como é importante ao teatro de rua, trazer o público para o centro da cena, onde se envolve e tem a possibilidade de se transformar.

Neste meio tempo, enquanto os integrantes do Rosa dos Ventos se preparavam para dar início à apresentação, o público assistia à peculiar intervenção de J.E Tico e seus Fantoches, que misturava humor, música e violência: uma das cenas trazia ao palco um boneco preso em pau-de-arara. Seu agressor, fantasiado de "autoridade", lhe violentava, relembrando as seções de tortura que marcaram os anos de repressão militar em nosso país. Por ser um boneco o torturado, com música de fundo e um palhaço como torturador, a cena despertava um estranhamento: o riso e o choque mesclavam-se, tornando-se quase indiscerníveis.

Saindo um pouco do centro da cena, em uma calçada, via-se uma banca com livros expostos. Tratava-se de um projeto de distribuição gratuita. Em sua maioria literatura brasileira, a banca era constantemente visitada por curiosos e interessados. Em certo momento, a leitura dos títulos e das orelhas teve de ser interrompida: anunciava-se no microfone o início do Saltimbembes que seria precedido pela leitura de algumas poesias, numa espécie de mini sarau improvisado, feito pelo projeto Hospício Cultural em que atuam jovens escritores do bairro.

As palhaçadas e os números de malabarismos despertavam o riso do público, muito concentrado no que via e participava. A um observador, não poderia passar despercebida, distante da cena, a arrumação do cenário do Corinthians meu amor, espetáculo a ser realizado em seguida pela Brava Companhia. Esforçados e dedicados, os atores organizavam objetos expostos em prateleiras, como um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, algumas bebidas, troféus, uma placa com o dizer Boteco do Olho Vivo. Arrumavam cadeiras, ajustavam as lâmpadas... Ao que parece, o público seria convidado a festejar o fim da tarde em um bar no meio da rua.

Mas logo o palhaço Dez Pra Sete, pescava a atenção para si. Enquanto Custipíl de Pinóti, outro dos palhaços do Rosa dos Ventos, tentava anunciar a entrada para a lona de uma aberração circense, gêmeos siameses separados por um serrote enferrujado, Dez Pra Sete o atrapalhava ao vender, com gestos espalhafatosos, seu sorvete Xupaki, de sabores variados, inclusive cocô queimado; "é coco, Dez Pra Sete" – corrige Custipíl de Pinóti; ao que ele responde: "Mas o cocô é meu ou é teu?". A venda do sorvete Xupaki, em duas bolas ou picolé, é pra sustentar os cinco filhos do palhaço. Custipíl de Pinóti, raivoso, lhe diz: "Mas o que eu tenho a ver com teus filhos?" "Nada. Porque se tivesse, teria que pagar pensão".

Dividido em esquetes, o espetáculo Saltimbembes Mambembancos tem como principal força a relação com o público, feita de modo fluído, como se não houvesse algo que dividisse quem assiste de quem realiza as brincadeiras. Sem ignorar o que acontecia para além da lona, muito comum era um diálogo entre os palhaços ser interrompido para responder à intervenção de alguém do público. Sempre explicitamente presente na cena, as pessoas ali presentes se envolviam e, pela atenção exposta nos risos e nos olhares curiosos, não seria de se estranhar que ficariam acompanhando a palhaçada por seguidas horas, se possível fosse ao Rosa dos Ventos estar em cena por tanto tempo.

Com o fim do espetáculo, o olhar podia cair com mais atenção no cenário, ainda por montar, de Corinthians meu amor – segundo Brava Companhia, uma homenagem ao União e Olho Vivo. Percebia-se que alguns moradores abriram suas casas para os atores, que puderam se utilizar de luz elétrica para iluminar o cenário - a peça teria início depois do entardecer - e tiveram um espaço fechado, longe da chuva que hora ou outra caía, para guardar os equipamentos de som e outros apetrechos sensíveis à água.

Com o texto adaptado do dramaturgo e diretor de teatro César Viera, o espetáculo homenageia o grupo Teatro Popular União e Olho Vivo, que há 45 anos faz um trabalho de militância tanto no Bom Retiro, bairro no centro velho de São Paulo, onde fica sua sede, quanto em comunidades pobres, na periferia da cidade de São Paulo.

A peça se inicia com uma reza, realizada pelos atores em roda, que evocava muitos dos temas que ali foram tratados: a crítica à sociedade do espetáculo, ao modo de vida capitalista e, principalmente, à religião. Traziam nomes como Antônio Conselheiro e Lampião, que, ao seu modo, lutaram e trouxeram esperanças aos miseráveis do sertão, e também os de Marx e alguns dos herdeiros de sua teoria materialista, contestadora da religião e de suas práticas. A prece, ali, parece querer representar o encontro de ideias revolucionárias com parceiros e amigos que, no Boteco do Olho Vivo, comungam de um mesmo sentimento contestatório.

Servidos de cerveja e churrasco, o público assistiu ao desenrolar de embates cujo cerne era a luta de classes e as armadilhas de um sistema que busca transformar em inimigos aqueles que sofrem com problemas semelhantes. Em determinado momento, nos perguntam: torcemos ou somos torcidos? Trabalhadores que se voltam contra sua própria classe em decorrência da rivalidade de seus times, cujos emblemas ostentam como a um símbolo sagrado.

A peça parece querer dessacralizar os ídolos em nome da união da classe trabalhadora, que vem acumulando derrotas atrás de derrotas em busca da construção de uma sociedade mais humana e igualitária. Neste jogo, que eles representam em cena, o juiz não esconde seu lado: joga no time dos abastados. A bola, presa a um cabo de vassoura, parece seguir as ordens de quem detém o poder. Nada joga a favor da classe trabalhadora, que deve achar em si mesma as forças para transformar esta situação de violência e exploração: cabe ao sentimento de revolta trazer a esperteza para driblar a opressão e a entrega à luta para mudar o jogo.

Como uma espécie de homenagem ao recém título corintiano, o espetáculo encerra a VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista com o sentimento de que há ainda, para as classes populares, muitas vitórias a serem conquistadas.


Publicado originalmente em A Gargalhada nº 26 fev de 2013.

[1] Gyorgy Laszlo contribui, como leitor crítico, com a Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP), Arte e Resistência na Rua e participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com), sobre teatro e teatralidade em espaços públicos.

 


Exercício para o registro de uma deriva poética


 

Viagem: ato de ir de um a outro lugar mais ou menos afastado.

MiniAurélio Século XXI: o minidicionário da língua portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

 

Suspeitamos que muito embora a viagem no mundo moderno parece ter sido apropriada pela Mercadoria – muito embora as redes de reciprocidade convival pareçam ter sumido do mapa – muito embora o turismo pareça ter vencido – ainda assim – nós continuamos a suspeitar que outros caminhos ainda persistem, outras estradas, não-oficiais, não marcadas no mapa, talvez até mesmo secretas (...). Na verdade, nós não apenas suspeitamos disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos que existe uma arte da viagem.

Superando o turismo. Hakim Bey.

 

Ponto de partida de uma travessia

Estação Brás, ponto de confluência caótica entre a linha 3 (Vermelha) do Metrô e outras duas de trem. Em uma delas, Safira, embarco na condição de viajante ou, quem sabe, de "turista aprendiz", na expressão de Mário de Andrade. Antecipo: não se trata, obviamente, de "turismo", esta noção atrelada ao consumo do outro e da diferença, mas de, talvez, deambulação, em sentidos andarilhos de quem se desloca pela necessidade do caminhar, pelo sabor do movimentar-se, pelo desejo do encontro. Errância, portanto, como experiência de transformação. Nesse caso, há aqui uma possibilidade de intersecção entre o viajante e o artista popular, exilados que, por ocasião histórica, misturam-se, entre tantos, na praça pública.

            Mas, ainda, estação Brás – localizada no bairro de mesmo nome que separa o Centro tradicional de São Paulo da grande Zona Leste, a mais populosa região da cidade. É "horário de pico", momento em que boa parte dos trabalhadores encerra seu expediente e retorna para a casa; fim da odisseia diária de tantos Ulisses. Mas quem conta as histórias desses resistentes "viajantes"? Que célebre obra narra suas desventuras? É incômodo, o silêncio que não responde a essas perguntas... De qualquer forma, lá estamos, metidos em vagões abarrotados, corpos colados uns aos outros, chocalhos humanos nas chegadas e saídas de cada estação – Tatuapé, Engº Goulart, USP Leste... Em algum momento, um assento – um entre muitos! – surge livre; acomodo-me, costas e pés doloridos, e, como a maioria, adormeço. Seguimos viagem: Comendador Ermelino, São Miguel Paulista... Na estação anterior àquela do meu destino, desperto num sobressalto – mãos, ombros, pernas, antebraços, dedos, seios compõem um quadro disforme, cujos elementos se duplicam e se confundem. Uma senhora agita-se ao meu lado, está inquieta, inconformada. Ao me ver de olhos abertos, passa a descrever a cena que acabara de assistir, uma das inúmeras situações de abuso sexual sofrido por mulheres em transportes públicos: a vítima da vez havia acabado de saltar do trem, mas o agressor continuava lá, em pé, prestes, de acordo com a minha informante, a constranger mais uma pessoa. Nisso, me aponta o homem: meia-idade, vestindo terno um pouco puído, gravata frouxa no pescoço, posicionado atrás de uma moça muito jovem. Compartilhamos rapidamente indignações e, sem tempo de pensar em fazer algo, o trem estanca na estação Vila Mara-Jardim Helena e tenho de descer. Nó na garganta e percepção embaralhada.

            Da rampa, um sem-número de pessoas deságua na Praça do Casarão, já significativo espaço de teatro de rua daquela comunidade. Um dos locais eleitos pelo grupo Buraco d'Oráculo para suas ações, é também "palco" de espetáculos que integram a programação da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, organizada anualmente pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP). Lá, onde crianças, jovens e alguns senhores, sentados nos bancos de cimento, assistem curiosos ao processo de preparação e ocupação da praça por parte dos artistas-trabalhadores, integrantes da Cia. Antropofágica e do grupo Pombas Urbanas, um cortejo está para sair.

 

Deambulando e cantando: "Ô, abre alas, que eu quero passar..."

Seguindo uma carroça equipada com aparelhagem de som e um músico dentro, uma horda passou a percorrer as ruas do bairro, enfrentando o quentíssimo final de tarde. O sol esquentava o corpo e o suor escorria nas têmporas dos integrantes daquele bando orgulhosamente panfletário, em febril militância. Entre marchinhas, canções populares e poemas de luta, a Karroça Antropofágica abriu os trabalhos.

            "Vejam vocês/A escória nos cercou/Temos nossa decisão/Nossos braços cruzados, suas máquinas paradas/Nenhum acordo com o patrão". Músicas do repertório da companhia embalavam a alegre "mambembância", enquanto alguns de nós entregávamos o material de divulgação com a programação das apresentações para os moradores do Vila Mara. Muitos deles, por conta do calor, ocupavam as calçadas e refrescavam-se como podiam. Em frente a uma casa, uma mangueira pendurada improvisava um chuveiro, onde pessoas se banhavam. Uma das atrizes da Cia. Antropofágica não hesitou e passou para tomar um banho, exemplo prontamente seguido por outros participantes do cortejo. Em meio à festa, Mário de Andrade veio fazer companhia:

Eu insulto o burguês! O buguês-níquel,

O burguês-burguês!

A digestão bem feita de São Paulo!

O homem-curva! O homem-nádegas!

(...)

Morte ao burguês de giolhos,

Cheirando a religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

            Poesias e cantos eram intercalados pela voz de J.E. Tico, artista de rua, e Edson Paulo, integrante do Buraco d'Oráculo, que anunciavam a ação. De dentro das casas, no fundo dos quintais ou espiando pelas janelas, olhos curiosos ou simplesmente contemplativos assistiam ao coletivo em trânsito. A Karroça Antropofágica, chamada pela própria companhia de "máquina de intervenção", caracteriza-se por seus cortejos cênicos-musicais cuja proposta está sempre vinculada aos estudos que o grupo realiza em cada momento. A intervenção daquela sexta-feira tinha as marcas de uma então recente pesquisa sobre os modernistas e a Semana de 22. Chama a atenção a presença constantemente intensa e plena dos artistas antropofágicos, ao mesmo tempo que despojada e sem pudores. Ao retornar à Praça do Casarão, era com um cigarro entre os dedos e uma postura sem-cerimônia, que uma atriz entoou versos do poeta russo Vladimir Maiakovski. Era o início da VII Mostra de Teatro de São Miguel.

            Ação política e cultural em comunidade realizada pelo grupo Buraco d'Oráculo, a iniciativa é parte das atividades do projeto "Narrativas de Trabalho II: Ópera do Trabalho", contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Isto é, trabalho de democratização de bens culturais possível por meio de uma das mais significativas políticas públicas voltadas ao teatro e referência nacional para companhias e movimentos de diversos estados brasileiros. Além disso, os espetáculos programados na Mostra explicitam a escolha pelo teatro de rua.

            O signo da deambulação esteve presente também no espetáculo Todo mundo tem um sonho, do grupo Pombas Urbanas, que tem sede em um outro bairro da Zona Leste, Cidade Tiradentes. Os atores iniciam a apresentação já em uma espécie de "chegança" (cantiga ou ação de entrada de uma manifestação popular), cantando e tocando instrumentos como sanfona ou tambor. Tal qual artistas mambembes, que tem no deslocamento um modo de vida, aproximam-se do público comunicando terem vindo de longe para mais um espetáculo – o circo chegou!

            As personagens são muito bem desenhadas, cada qual com seu universo de características e elementos próprios: a cigana Zamara, sotaque espanhol, flor na cabeça, penduricalhos pelo corpo, é vidente e tem sua imagem atrelada a uma bola de cristal; Javier, seu marido, como todo bom ilusionista, traja uma capa preta e usa uma cartola, que potencializam os efeitos de seus truques mágicos; Zimbo, um macaquinho singelo, de feições infantis, é como um filho do casal que, muitas vezes, tira seus pais do sério com suas peraltices; Roucinol é um jumento inteligentíssimo, tem porte intelectual e está sempre lendo um livro através das lentes de seus óculos. Eles compõem a Grande Companhia do Circo Místico. A história de cada um deles é contada como parte de uma grande narrativa, cheia de idas e vindas, da qual outras figuras também fazem parte, e que gira em torno do sonho de ser artista.

 

Do mundo caipira à bufonaria

            O sol do primeiro dia da Mostra deu lugar, numa típica oscilação de tempo paulistana, à chuva e ao céu nublado do sábado. Ainda assim, e apesar da terra úmida e escorregadia, os três espetáculos programados foram assistidos por um significativo e interessado público. Aproveitando uma estrutura circular presente na praça, com lugar para as pessoas se sentarem, o grupo sorocabano Nativos Terra Rasgada apresentou Ditinho Curadô.

            O trabalho, marcado pela recuperação de uma série de elementos da cultura popular caipira, caracteriza-se também pelo destaque de uma dimensão explicitamente política da narrativa acerca de um homem que, certo dia, passa a se comunicar diretamente com os santos católicos por meio das fitas coloridas da bandeira da Festa do Divino Espírito Santo. O universo popular caipira se manifesta em diversos aspectos do espetáculo: os figurinos e o cenário simples e funcional (basicamente uma carroça onde Ditinho entra em contato com os santos e no entorno da qual existe a própria casa da família da personagem), as músicas, o sotaque carregado dos atores e todo um modo de dizer, que comunicam ainda visões de mundo, um tipo de religiosidade e de humor até a referência a uma das mais conhecidas manifestações culturais do interior do Estado de São Paulo (também presente em muitos outros).

            Surpreende o esforço do grupo em evidenciar as contradições das situações vividas pela personagem principal. Transformado em curandeiro de um dia para outro, Ditinho passa ser visto como aquele que tem o poder de resolver questões de interesse público, que caberiam ao Estado. Além disso, ao se tornar uma figura influente em sua comunidade, é também cobiçado por certo político das redondezas, interessado em se beneficiar de seu prestígio. Sem desejar oferecer respostas definitivas ou elaborar julgamentos, os artistas do Nativos Terra Rasgada parecem estar mais preocupados em problematizar um complexo estado de coisas.

            O espetáculo apresentado na sequência, O perrengue da lona preta, tem como norte a desnaturalização da noção de propriedade privada numa discussão levada a cabo pelos palhaços (que se assemelham, muitas vezes, a bufões, pelo humor mordaz e pela crítica ácida) Rabiola e Chico Remela. Em processo de recuperação de uma tradição circense, os artistas protagonizam inúmeras cenas inusitadas, seja por sua lógica subversiva, seja pela escatologia das situações. Revezam-se em outras figuras, como policiais e sujeitos das classes dominantes. Por conta da chuva que caiu na cidade no início da tarde, o chão de terra da praça era agora de um barro molhado. Levando em consideração o espírito do trabalho dos palhaços da Trupe Lona Preta e a referência que fazem a uma certa podridão social, a escolha pela apresentação no ponto com maior concentração de lama do local não pareceu ter sido à toa.

            Ao final da apresentação, J.E Tico iniciou seus números de rua, o que já vinha ocorrendo entre um espetáculo e outro. Em intervenções que atraíam principalmente as crianças, o artista lançava mão de fantoches e situações cômicas com a participação direta do público. Estava acompanhado, desta vez, de um músico...

 

No contra-assalto

Possivelmente, poucas pessoas, entretidas com as brincadeiras de J.E Tico, atentaram de imediato para a presença de um estranho palanque e de determinadas figuras, encapuzadas, totalmente cobertas, mas que comunicavam o lugar que ocupavam socialmente – eram trabalhadoras e estavam a serviço da "segurança" daquela estrutura. Sujeitos anônimos e quase invisíveis, que, por outro lado, naquele contexto, destoavam no ambiente. Aos poucos, foram chamando alguma atenção para si... Corta. Próximo fragmento: um rapaz de chapéu na cabeça oferecia a uma criança uma bexiga que acabara de encher; em seguida, pergunta "Quem você gostaria de explodir?". Corta. Uma sirene atravessa a sonoridade do local. Onde? O que se passa? Garoto surge em uma bicicleta. Tem aparência "descolada", veste-se como um jovem de classe média de alguma metrópole. Também tem suas questões: chega afirmando que ali, naquela madrugada, aconteceu um assassinato. Mas quem sabe? Quem se importa? Nisso, outras figuras vêm se juntar àquele encontro... Safira (nome da linha de trem por meio da qual chegamos até ali) é vendedora de pipoca e não está muito interessada nos questionamentos do garoto, porque está na "correria" e tem de "cuidar do seu", como se costuma dizer. Outra mulher, esta mais enigmática, aparece. Mulher de rua, misteriosa, meio feiticeira, andarilha, que evoca a força do feminino e legitima as vozes de todas as mulheres negras. E um bando está prestes a ser formado. Constituído pela contradição e pela polifonia dos seus membros, este bando é composto por sujeitos que são muitos, cada qual dizendo respeito a um coletivo, mas que, paradoxalmente, apresentam-se de forma solitária, individualizada, como pedaços de um todo. A percepção de si como integrante de um coro muito maior já é parte conquistada da luta a ser travada.    

            A apresentação de cada um deles vai sendo realizada por meio da relação que passa a ser construída a partir do encontro. Nele, as músicas que os revelam também são significativas. Jota, o inquieto rapaz ciberativista, celular nas mãos para a qualquer momento captar instantes de realidade e compartilhar nas redes sociais, chama o músico de rua, aquele que se apresentava na praça anteriormente, para participar do acontecimento. Susto: batida certeira na letra cantada pelo ator-performador. E os estranhamentos continuam, desnaturalizando o que parece habitual e que não requer explicações...

            Bandido é quem anda em bando, da Cia. dos Inventivos, é surpreendente e vem se fortalecendo e se repotencializando a cada experiência. Não necessariamente um espetáculo, é mais um trabalho de caráter intervencionista, em sua dimensão de invasão do espaço público, uma tomada de assalto aos passantes distraídos, primando-se justamente pelo inacabamento. Constrói-se no movimento mesmo da apresentação, na relação que os artistas estabelecem entre si, com o público e com a rua – chega de supetão, ainda que em fragmentos, e parte num espanto, em fuga, mas agora numa totalidade coletiva. É de se comemorar a tentativa de colocar em xeque a própria noção de bandido, como aquele se junta com outros e se contrapõe ao fluxo hegemônico, pagando, por isso, com a estigmatização. O debate evoca a recorrente e já histórica tendência em criminalizar os movimentos sociais em um discurso que demoniza os que se organizam e lutam. A problematização do bandido, como alguém que reage à violência que sofre, foi também feita, por exemplo, por João Bosco e Aldir Blanc na música Profissionalismo é isso aí:

Era eu e mais dez num pardieiro
no Estácio de Sá.
Fazia biscate o dia inteiro
pra não desovar
e quanto mais apertava o cinto
mais magro ficava com as calças caindo
sem nem pro cigarro, nenhum pra rangar.
Falei com os dez do pardieiro:
do jeito que tá
com a vida pela hora da morte
e vai piorar
imposto, inflação cheirando a assalto
juntamo as família na mesma quadrilha
nos organizamo pra contra-assaltar.

 

O popular em chave político-encantatória

Um grande cenário, que lembra uma "coxia", foi armado na Praça do Casarão. Uma cortina simples no meio e uma interessante moldura. Nesta, uma série de pequenos quadros onde se via delicados objetos coletados, desses sem serventia específica que revolvem lembranças afetivas incertas. Uma obra de jornal, purpurina e essas miudezas que nos levam a paralelos com a arte de Arthur Bispo do Rosário. O trabalho cenográfico, depois soube, assim como os belíssimos figurinos e acessórios do espetáculo, foram criados pelo artista plástico Cleydson Catarina Catarina. A peça que estava prestes a começar e a encantar o público do Vila Mara tem o sugestivo nome de Imaginário – a odisséia de um guerreiro brincante, do Grupo Arte Juká, da cidade cearense Arneiroz, localizada no Sertão de Inhamuns.

            O espetáculo tem seu universo ficcional delineado por elementos de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, magistral obra de Miguel de Cervantes, e, principalmente, das culturas populares. Além disso, é possível identificar a referência à Odisseia, de Homero, por conta do arquétipo do herói na figura do guerreiro que enfrenta diversos desafios em sua travessia, vencendo a todos os antagonistas. Dessa forma, o trabalho transita por contextos culturais e históricos diversificados, deslocando-se da Grécia Antiga para a Espanha do século XVII, chegando ao sertão nordestino. 

            Imaginário se constrói de forma extremamente épica, ao lançar mão de recursos como o prólogo, em que os artistas afirmam a própria origem, anunciando de onde vêm, e passam a apresentar a fábula que será contada. Há também uma explicitação do narrar, que se dá pela presença de rapsodos e de músicas que costuram a apresentação episódica, espécie de saga. Existe ainda uma relação bastante clara com o público. Vale lembrar que é possível, em muitos momentos, reconhecer o ponto de vista assumido pelo grupo, o das classes populares, em detrimento dos sujeitos das classes dominantes. Em um dos perigos enfrentados pelo guerreiro, acompanhamos um embate entre ele um coronel, isto é, um déspota, que, ao final, é vencido pelo herói. A canção traz um comentário preciso: "olha lá, que formosura, mais um tirano para a sepultura".

            Sem temer o clichê, é preciso afirmar a dificuldade em traduzir em palavras a experiência de ter assistido ao espetáculo. Com imagens belíssimas, de encher os olhos, muito em decorrência da confecção e da manipulação cuidadosas e hábeis dos grandes bonecos que invadem as cenas, mas também da presença plena dos atores e das canções que nos transportam para mundos mágicos, a peça é toda ela uma grande manifestação popular que parece acionar determinados arquétipos e nos irmanar em uma comunhão ancorada em elementos humanos ancestrais. Foi a apresentação de maior público, que se mostrou totalmente fisgado pelo o que se passava no espaço de representação. No momento em que uma grande cobra é revelada, era possível observar a entrega e a atenção quase total das pessoas. "Isso é encantamento", atestou Edson, integrante do Buraco d'Oráculo. Foram dele também algumas das falas finais daquele dia: "Viva a cultura popular! Viva o Arte Juká!".

            Viva! E, assim, encerrou-se a série de apresentações na Praça do Casarão, em plena ágora paulistana-nordestina, e a VII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista foi deambular, no final de semana seguinte, em paragens outras.

 

Daniela Landin é estudante do curso Licenciatura em Arte-Teatro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisa as relações entre teatro e culturas populares e participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com), sobre teatro e teatralidade de rua.


Publicado originalmente em A Gargalhada nº 26 fev de 2013.