Pesquisar este blog

sábado, 14 de fevereiro de 2015

PARTILHAR A RUA: O local do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo na disputa pelo sensível

Luiz Carlos Checchia*



A Lua Barbosa, in memorian

“Os radicais” ou “aqueles com quem é difícil negociar”, esses são alguns dos adjetivos com os quais os artistas do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP, costumam ser chamados  nos encontros ou mostras de teatro de grupo. Certamente há uma radicalidade na postura e nas ações políticas do MTR, toda ela facilmente perceptível, inclusive nos temas de muitas das peças montadas por seus integrantes. Todavia, faz parte dos esforços deste pequeno ensaio compreender as possíveis origens de tal radicalidade, seus desdobramentos e os desafios atuais e futuros que lhes são inerentes. Para isso, esboçaremos, ainda que genérica e ligeiramente, o panorama histórico e conceitual necessários para compreender o atual teatro de rua praticado no Brasil e, especificamente, no estado de São Paulo e, mais especificamente, o Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.

O teatro de grupo e o teatro de rua

O chamado teatro de grupo é é uma forma recente no Brasil, desenvolve-se no país a partir dos anos de 1970, como uma reação, ainda que tardia, ao divismo, ou seja, à lógica da produção teatral estabelecida pelas companhias teatrais comerciais, esquemáticas, cujos elencos, nem sempre fixos, orbitavam em torno de uma mesma personalidade, cuja fama e notoriedade atraia o público para as casas de espetáculo. O crítico Kil Abreu ofereceu uma definição bastante pertinente ao que seja o teatro de grupo, escreveu ele
grupo/agrupamento – a primeira coisa é que um Grupo de teatro – nos sinaliza a prática dos anos recentes – não é o mesmo que um agrupamento de artistas que se reúnem para fazer um trabalho determinado. O que marca a existência do grupo, no sentido que nos interessa, é uma Experiência comum colocada em perspectiva. Qual seja, a de um tipo de organização que não tem como finalidade a criação de pontual de um evento artístico, ainda que um evento, um espetáculo, por exemplo, possa estar entre os planos, como de fato, quase sempre está. Trata-se, antes, de um projeto estético, de um conjunto de práticas marcadas pelo procedimento processual e em atividade continuada, pela experimentação e pela especulação criativa, que pode inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de intervenção de outra ordem que não a estritamente artística (ABREU, 2008:22)

definição pertinente, entretanto, acreditamos que incompleta, pois lhe falta o construto histórico, encontrado em outro texto, do diretor teatral Luiz Carlos Moreira, integrante do grupo Engenho Teatral, que escreveu
Mas o exemplo acabado desse cadáver ambulante, dessa tina ideológica em que vivemos atolados, é o surgimento e desenvolvimento de uma outra aberração: os grupos de teatro, filhos bastardos da falência do mercado. E o sinal tem até data, 1979, quando surge a Cooperativa Paulista de Teatro para dar voz e representação a coletivos teatrais.
Intenções, desejos e discursos honestos ou não embutidos, os grupos surgem porque não existe empresários para contratar/explorar os “profissionais” disponíveis. Eterna e endemicamente desempregados, eles se juntam para produzir, para dar voz a seus desejos e tentar sobreviver de seu trabalho descartado pelo capital que, repita-se, salvo exceções, não consegue auferir lucro com essa mão de obra aplicada no teatro.
(…) A aberração é essa: numa economia capitalista, de mercado, como muitos preferem dizer para deixar a coisa mais natural, um segmento da produção é controlado por trabalhadores – pois é disso que se trata, não?
Ressalte-se: trabalhadores descartados, os artistas se organizam em coletivos. Não é pouca coisa: coletivos de trabalhadores excluídos controlam a produção. Desse lugar, ainda que intuitivamente, muitos acabam falando como tal: sua estética denuncia, exatamente, as contradições do capitalismo e o desmanche ou formas acentuadas da apropriação do Estado para fins privados a que se deu o nome de “Neoliberalismo” (MOREIRA, 2012, 21)

            Com as escusas necessárias por transcrever tão longa citação, acreditamos ser ela pertinente por datar e explanar acerca do contexto histórico, econômico e social do desenvolvimento do moderno teatro de grupo. Pelo exposto, pensamos que em Raymond Williams (2000) podemos encontrar, então, a devida conceitualização desse fenômeno que chamamos de teatro de grupo, ou seja: o teatro de grupo se constitui como a evolução social da forma artística teatro ou forma dramática. Para Williams, o teatro constitui uma forma artística em geral, todavia, essa forma assume determinadas especifidades a partir das relações sociais às quais se submete. Assim, o atual teatro brasileiro, submetido às determinadas condições econômicas e políticas leva à composição de uma nova forma de prática coletiva, que tem seu início dos anos de 1970. forma essa, o teatro de grupo, que se consolida a partir dos anos de 1990. É justamente a essa forma que uma antiga prática teatral, talvez a primeira dentre todas, o teatro de rua, se aproxima e se modifica, sobretudo, mas não somente, por meio da organização de movimentos e coletivos. É preciso aqui fazer uma pequena digressão sobre o que queremos dizer com “aproximar-se” e “modificar-se”: o teatro de rua é uma prática das mais antigas, encontrada em quase todas as civilizações do passado. Dessa forma, ainda em temos propostos por Williams, o teatro de rua é uma forma residual algo que foi efetivamente formado no passado, mas ainda está no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento ativo no presente” (WILLIAMS, 1979:125), algo que, ainda vivo em nosso tempo histórico, tem seu nascedouro em um tempo já superado. Todavia, quando se organiza o teatro de grupo, quando toma a forma de uma emergência, tanto uma parte dos seus praticantes vão para a rua, quanto muitos dos antigos grupos, de longa tradição popular, se aproximam dos modernos grupos, e a troca dentre eles permitem novas agendas de luta e resistência. Assim, se o teatro de rua, prática das mais tradicionais e antigas, chega  aos tempos atuais como forma residual, sua aproximação com o teatro de grupo, a construção de demandas comuns e a troca de informações estéticas e políticas entre elas, as identificações e reconhecimentos, provoca no teatro de rua uma modificação profunda: de forma residual passa, também, a operar como forma emergente, suas bandeiras, antes de luta pela sobrevivência de uma forma tradicional, passa também a de ser a luta política por um outro amanhã. Assim, em termos práticos, percebemos, por exemplo, a convivência de um artista como Danilo Cavalcante, mestre na manipulação de mamulengos, partícipe de uma longa tradição de manipuladores oriundos do nordeste brasileiro, com outro artista, Fábio Resende, integrante da Brava Cia, um grupo que experimenta as mais elaboradas e contemporâneas formas estéticas para a realização de um teatro político vigoroso e provocador, e, entre eles, César Vieira, fundador do Teatro Popular União e Olho Vivo, grupo mais antigo da América Latina, quase cinco décadas de atividades ininterruptas, que se utiliza de elementos populares para fazer teatro militante. Todos, apesar de suas profundas diferenças, operando a forma teatro de rua e integrantes tanto da Rede Brasileira de Teatro de Rua quanto do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.

Assim, ainda que de forma esquemática, propomos pensarmos o teatro de rua a partir dessa condição histórica: por um lado, herdeiro de uma tradição, o que o coloca na conta de forma residual, em termos postos por Williams e, ainda sob essa ótica, que passa a operar também como forma emergente, a partir do encontro da tradição com as novas demandas e lutas por resistência e transformação postas pelo moderno teatro de grupo. Condição histórica ainda em aberto e que se constitui como contradição interna da forma teatro de rua.

Localizado, ainda que de forma limitada, a condição histórica do teatro de rua, passamos agora a pensar a sua organização enquanto movimento. A mais recente organização do teatro de rua, porém uma das mais importantes, é a Rede Brasileira de Teatro de Rua, a RBTR. Fundada em 2007, na Bahia, a RBTR mantem uma prática de dois encontros anuais, sempre evitando encontros seguidos na mesma região do país, garantindo a circulação e a facilitando a participação de articuladores de todo o país. Além da RBTR, existem as organizações estaduais, dentre elas, destacamos como as mais atuantes a do Rio de Janeiro, a do Rio Grande do Sul e a de São Paulo, que constitui o Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP.

O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP

O MTR-SP surge de uma ação conjunta proposta por sete grupos de teatro de rua da capital paulista, chamada Se Essa Rua Fosse Minha, em 2002. Essa ação surge em função do não reconhecimento do teatro de rua pelo então secretário da Cultura de São Paulo, Celso Frateschi. No ano seguinte, foi realizado o I Seminário de Teatro de Rua, que contou com a participação de doze grupos, e ao seu final foi realizado a I Overdose de Teatro de Rua, que se constituiu de quinze apresentações teatrais, no Vale do Anhangabaú e Boulevard São João, todas em um único dia, 30 de novembro. O seminário foi fundamental para a consolidação do movimento, que em 2004, realizou a II Overdose de Teatro de Teatro de Rua e o II Seminário de Teatro de Rua, agora contando também com a participação de intelectuais e políticos que perceberam no teatro de rua um movimento organizado e de interesse social e político com forte poder de intervenção na lógica urbana. O MTR-SP publicou, até agora, três importantes revistas, a Arte e Resistência nas Ruas, que em seu segundo número, publicou
Desde a realização do primeiro seminário, o MTR/SP realiza encontros em que se estabelecem as bases de uma atuação propositiva para que haja a inserção da manifestação artística no espaço público aberto; a luta por políticas culturais específicas que atendam às necessidades de produção, de pesquisa e de circulação da arte popular, como também as formas de ampliar o acesso ao teatro. (Arte e Resistência, Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. Ano II, No 02, julho de 2010. Pag 6)

            Não nos parece coincidência o fato do MTR-SP nascer no mesmo ano em que Luiz Inácio Lula da Silva se elege presidente, e que o aprofundamento de sua radicalidade se dê durante a gestão petista frente o governo federal. O Partido dos Trabalhadores foi, durante mais de duas décadas, o grande aglutinador da esquerda nacional. Durante anos, diversos movimentos e coletivos encontraram no PT um ponto de convergência e de construção conjunta de uma plataforma unificada de lutas sociais, políticas, econômicas e culturais. Todavia, ao ascender ao poder federal, as propostas elaboradas ao longo dos anos, sobretudo a orientação ideológica que as alimentava, foram rebaixadas ou simplesmente abandonadas; houve a total troca, nos termos propostos por André Singer, do reformismo forte que norteia os documentos do partido por outro, pelo reformismo fraco, que visa arbitrar ente as demandas das classes subproletárias e os interesses das elites econômicas brasileiras. Embora esse acordo tácito entre as classes tenha permitido algumas das mais profundas transformações econômicas ocorridas no Brasil, permitindo a “entrada” de milhões de pessoas em um mundo do qual estavam completamente afastadas, qual seja, o do consumo de bens diversos, da universidade, via programas como PROUNI e FIES e do crédito popular, bem como o aumento real do salário mínimo e da garantia de sobrevivência a milhares de famílias via programas como Bolsa-Família. Ainda assim, todas mudanças ocorridas no país, e não foram poucas, são limitadas pelo pacto conservador assumido pelo PT e os setores mais conservadores da sociedade brasileira, permitindo o crescimento e o avanço de tais setores, levando a contradições como a ter na base aliada do governo petista no congresso políticos como Jair Bolsonaro, Blairo Maggi e Marco Feliciano, apenas para citar os mais emblemáticos. Mas não apenas isso, essa condição força o governo a recuar em algumas de suas principais bandeiras históricas, subjugado ao sistema de vetos da lógica política típica do congresso brasileiro denominada de pemedebismo, pelo filósofo Marcos Nobre. Por conta desse recuo político, ainda não foi possível a radicalização e aprofundamento do sistema democrático brasileiro, nem as mudanças imprescindíveis do sistema político para superarmos a crise representativa que o subjuga. Acreditamos que o reformismo fraco pelo qual optou o governo petista mergulhou a esquerda brasileira naquilo que Raymond Williams chama de estrutura de sentimentos, ou seja, o momento histórico em que paradigmas  e referências se fragmentam, se perdem, deixam de aglutinar e nortear, o vácuo deixado provoca a confusão, momento em que possibilidades até então submersas passam a se fazerem presentes, disputam espaços, públicos, locais, até que, em determinado momento, uma delas, ou um conjunto delas, assume a função paradigmática, ocupando a centralidade no processo histórico[1]. Acreditamos que, ainda que tenha promovido profundas mudanças na vida de milhões de brasileiros, tê-las promovidas dentro dos mais estreitos limites do capital e em profundo pacto com os setores mais conservadores da sociedade fez com que o Partido dos Trabalhadores deixasse de nortear e aglutinar vários dos movimentos, coletivos e sindicatos que o orbitavam e compunham suas fileiras. Sem a aquele que era referência principal de sua luta, tais organizações passaram a buscar novas formas de organização, de orientação, de métodos e referências. Acreditamos que não é por outro motivo em que ocorre as profundas mudanças nas formas de organização de movimentos e coletivos apontados pela socióloga Maria da Glória Gohn, que a respeito escreveu
Em termos de uma Sociologia dos Movimentos Sociais, reiteramos novamente: os atuais movimentos estão operando uma renovação nas lutas sociais de magnitude que os novos movimentos sociais operaram nas décadas de 1960, 1970 e parte de 1980. Eles estão reformulando a pauta das demandas e repolitizando-as de forma nova, na maioria das vezes independentemente das estruturas partidárias. (GOHN: 113, 2013)

Assim, o MTR-SP, se organiza em um momento muito especifico, não apenas para si, mas para a esquerda nacional como um todo. Neste sentido, muitos dos articuladores do movimento, ex-filiados ao Partidos dos Trabalhadores ou, ainda, não filiados oficialmente, muito próximos ao partido, passaram a buscar novas formas de organização e atuação política. Nesse processo de busca, o MTR-SP, assume a posição não apenas de um ponto de encontro entre artistas e espaço de luta por reconhecimento e políticas específicas, mas também em um local para debater profundas mudanças necessárias para o pleno desenvolvimento social, político e econômico da sociedade, para muito além das estritas demandas do teatro de rua. Sob essa ótica, acreditamos que o MTR-SP passa a operar em outra lógica, não apenas a da defesa do teatro de rua, enquanto forma residual, mas tendo o teatro de rua como forma emergente, trazendo para o debate demandas de transformação social. Passa, o MTR-SP, a defender uma Ideia específica, no sentido que Pierre Badiou dá a essa palavra.

Badiou e a Ideia

            Em seu ensaio A Ideia de Comunismo, o filósofo francês Pierre Badiou escreve
denomino Ideia uma totalização abstrata dos três elementos primitivos: um processo de verdade, um processo de pertencimento histórico e uma subjetivação individual. Podemos dar de imediato uma definição formal de Ideia: uma Ideia é a subjetivação de uma relação entre a singularidade de um processo de verdade e uma representação da História. (BADIOU, 2012, 134)

a partir dessa premissa, Badiou desenvolve a lógica pela qual um Ideia, uma “verdade política”, se torna candente, emerge de um momento histórico específico, e o indivíduo que dela toma contato e que se percebe partícipe daquela condição histórica, assume tal emergência como sua, interiorizando-a ou, nas palavras do filósofo, “subjetivando-a”, fazendo parte de um Sujeito histórico maior que ele mesmo. Acreditamos que, por esse viés, o teatro de grupo e suas emergências, como defende o já citado Luiz Carlos Moreira, é o Sujeito histórico que porta tal condição, que porta uma verdade histórica, que carrega em si uma Ideia. Dentre tal Sujeito, destacamos outro, que por sua própria condição e especificidade, carrega tal Ideia de forma muito mais radical e candente. Esse Sujeito é o teatro de rua. Mas qual a Ideia que ele carrega?

Se não se trata da Ideia de Comunismo defendida por Badiou, ao menos ainda não, é patente que as bandeiras defendidas pelo MTR-SP são muito mais largas que aquelas específicas ao teatro de rua. Destacaremos aqui uma dessas bandeiras, a chamada Arte Pública. Embora seja um conceito ainda em elaboração, a Arte Pública pode ser pensado como o princípio que garante, por um lado, toda a facilidade de acesso à produção artística para a população, sobretudo, aquela que historicamente está dela apartada e, por outro lado, garante aos realizadores o acesso ao Fundo Público, garantindo a sobrevivência de artistas e técnicos bem como a manutenção de trabalhos que refletem a diversidade da cultura brasileira, bem como, por fim, o intercâmbio entre realizadores, permitindo o desenvolvimento de novas possibilidades bem como a proteção à tradição e à memória. Isso não é pouco, porque para sua realização não bastam apenas o engajamento em lutas pontuais pela arte, muito menos garantias legais dentro do reformismo fraco até aqui tocado pelo governo federal, é preciso, por um lado, uma maior articulação entre movimentos de diversas naturezas – desta vez não mais mediadas pelo forma-partido – e por outro lado, uma completa reconfiguração das relações de produção artística e a radicalização das bases de nossa democracia e de nossa república, invertendo sua lógica, de uma democracia de baixa intensidade para uma outra, no qual a participação da sociedade civil nos processo decisórios extrapolam os limites garantidos pela atual legislação brasileira. De certa forma, trata-se de, nas palavras do filósofo Jacques Rancière, trazer para a partilha do sensível, uma gama imensa de pessoas, entre artistas populares, artistas experimentais e artistas militantes, bem como as diversas parcelas da população apartadas da criação artística para a luz das relações sociais, econômicas e políticas, na qualidade de sujeitos autônomos e com poder de decisão na construção das políticas públicas que lhes são de interesse direto.
            Essa condição coloca o MTR-SP ao lado de outros movimentos organizados numa luta pelo reconhecimento e pelo alargamento dos limites da democracia, luta essa que extrapola imensamente os limites do chamado Estado de Direito, que, como demonstra o filósofo Wladimir Safatle, só amplia sua abrangência quando estes são desafiados pela sociedade civil. A especificidade que deve ser apontada sobre este ponto é que o teatro de rua tem, como tribuna de suas demandas, a própria rua. Por experiência, prática e natureza, o teatro de rua é uma atividade que encontra nos espaços públicos seu fórum natural de diálogo cotidiano com as diversas comunidades, seja por meio de seus espetáculos, seja por meio de diversas outras ações que tornam-se cada vez mais comuns aos grupos que integram o MTR-SP, tais como palestras, rodas de bate-papo e debates, dentre outros, realizados em plena rua e reunindo rotineiramente dezenas de pessoas em cada um deles.

O teatro de rua e o direito à cidade
Direito à Cidade é o termo apresentado pelo filósofo francês Henri Lefebvre e atualmente trazido ao debate por muitos intelectuais, destacando-se, dentre eles, o geógrafo marxista David Harvey. Para o filósofo francês, as cidades surgem como centros administrativos, ainda na antiguidades, às quais ele designa cidades políticas, com os desdobramentos históricos, assumem novas funções e configurações, são as chamadas cidades comerciais. Por fim, com o acentuado processo de desenvolvimento e circulação do capital surgem as cidades industriais, as atuais cidades urbanas. As cidades urbanas atraem as mais diferentes experiências e condições de vida, pessoas e grupos de diversas origens e histórias se encontram num mesmo e único espaço, sobrepondo tradições, conhecimentos, práticas e memórias, criando convivências, solidariedades e conflitos. Espaço de trocas materiais e simbólicas, construção e dissolução de identidades e fronteiras. Obra criada e criadora a cidade urbana, nas palavras de Lefebvre
é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção de objetos. A cidade tem uma história; ela é a obra e uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas.(LEFEBVRE, 2013, 52)

Todavia, a cidade é o locus da lógica do capital, fazendo da troca uma finalidade em si, necessária para a sua reprodução: a cidade, no mundo do capital, se pauta pelo valor de troca em detrimento do valor de uso. Nesta lógica, emergem classes hegemônicas que impõem suas ideologias sobre as demais, promovendo diferentes percepções a respeito dos espaços, eficientemente anotados por Rosana REGILLO, sendo eles
a) el espacio tópico: que alude al territorio propio y reconocido, es lugar “seguro” pero mismo tiempo amenazado;
b) El espacio heterotópico: que alude al territorio de los “otros” y que representa essa geografia atemorizante em la que se assume que “suceden cosas”;
c) El spacio utópico: que habla de um territorio que apela a un orden que se assume no sólo como deseable, sino que funciona como dispositivo orientador em la comprensión de spacio em sus relaciones com el spacio heterotópico. (REGILLO, 2005:204)

O teatro de rua, por sua própria natureza mambembe, ou seja, em que a prática natural é a circulação constante, tem um potencial poder de promover o diálogo entre os espaços tópicos e os espaços heterotópicos e, ainda, de colaborar para a formação dos espaços utópicos: o teatro de rua interrompe a lógica da circulação constante de mercadorias e do ritmo febril do capital; dá outra toalidade ao fluxo monocórdico da subjetividade reificada e instaura a efêmera, porém verdadeira, convergência dos olhares, levando seu público (RANCIÈRE, 2010, 101) “de um mundo sensível para outro mundo sensível”; na cidade urbana, espaço em que a luta de classes se faz visível nos menores detalhes do cotidiano, a condição do teatro de rua é a condição da lógica de resistência contra-hegemônica. Entretanto, poder em potencial não é garantia de sua realização, neste sentido, a organização dos coletivos de teatro de rua, como o MTR-SP, e a sua condição de forma emergente, constrói as articulações e as ações necessárias para se realizar, ainda que parcialmente, tal potencial, promove os debates acerca do spacio utópico; estabelece a crítica sobre os limites oficiais e oficiosos impostos pelas estruturas de poder. Faz da arte um poderoso instrumento de luta política, sobre o que escreveu o filósofo Herbert Marcuse
No outro polo da sociedade, no domínio das artes, a tradição de protesto, a negação do que é “dado”, persiste em seu próprio universo e por direito próprio. Aqui, a outra linguagem, as outras imagens, continuam sendo comunicadas, para serem ouvidas e vistas; e é essa arte que, numa forma subversiva, está sendo hoje usada como arma na luta política contra a sociedade estabelecida – com um impacto que transcende em muito um grupo privilegiado ou sub privilegiado específico. (MARCUSE, 1973:83)


Dessa feita, o teatro de rua torna-se partícipe das lutas pelo chamado direito à cidade. Sua existência e condição constituem espaço contra-hegemônico. Se há, nas palavras de Boaventura Souza Santos, um pensamento abissal a superar e uma ecologia de saberes a promover, acreditamos que o teatro de rua tem, nesse processo, um papel que não é apenas marginal: ser um privilegiado espaço de trocas simbólicas, o espírito mambembe e a solidariedade que lhe é peculiar, faz do teatro de rua um colaborador fulcral desse processo. Todavia, ainda falamos de potencialidades, de capacidades ainda por realizar. Falando especificamente do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, há desafios que precisam ser vencidos, sem o que todo o seu potencial corre  o risco de fenecer.

O desafios de hoje e de amanhã, à guisa de conclusão

Como qualquer processo histórico, o MTR-SP carrega em si suas próprias contradições, e qualquer avanço político por parte do movimento só será possível se os seus integrantes conseguirem lidar com elas. Destacamos nesse ensaio, apenas três dessas contradições, que ao nosso ver nos parecem ser aquelas que mais carecem de atenção no momento. A primeira delas diz respeito à tensão  entre os elementos residuais e emergentes da forma teatro de rua. Como argumentamos acima, o atual teatro de rua guarda uma dupla condição: trata-se de uma forma residual, uma tradição antiga que, ao entrar em contato com o moderno teatro de grupo, passa a ser, também, uma forma emergente, com novas percepções de si e de suas possibilidades e, em decorrência, assume novos papeis sociais. Entretanto, essa dupla condição ainda não recebeu a merecida atenção nem foi trazida ao centro dos debates internos do movimento. Sem o reconhecimento e o equilíbrio entre o residual e o emergente, as pautas do MTR-SP são ainda pouco definidas pois tentar dar conta de cada qual, sem no entanto atendê-las em suas especificidades, pois tudo é tratado, genericamente, como um mesmo “teatro de rua”. A segunda contradição inerente ao MTR-SP é a dificuldade em ampliar o seu alcance estadual. Nascido de uma ação de grupos sediados na cidade de São Paulo, o MTR-SP espraia-se lentamente pelo estado, reunindo grupos de diversos pontos do interior do Estado de São Paulo, bem como do litoral e da Grande São Paulo. Todavia, foi apenas em dezembro de 2013 que o MTR-SP realizou seu primeiro encontro estadual, na capital paulista, ainda com uma pauta difusa para o Estado, ao passo em que sua agenda municipal (considerando o município de São Paulo) está consolidada já há alguns anos, provocando uma assimetria no que tange as ações políticas dos grupos, por isso, por exemplo, é comum encontrar integrantes dos mais diversos pontos do Estado na capital paulista, em solidariedade a alguma pauta local, mas raramente existe o trânsito inverso, ou seja, integrantes paulistanos em ações fora da cidade de São Paulo. Por fim, acreditamos ainda que o MTR-SP careça de maior agilidade em seus processos decisórios por conta do critério pactuado entre seus integrantes, o consenso. Segundo esse critério, qualquer tema só é considerado resolvido quando uma proposta de solução for de consenso entre todos os participantes do seu debate. Caso o consenso não seja alcançado, considera-se que o tema ainda não está maduro e interrompe-se o debate até outro momento que seja considerado oportuno para novo debate. Se por um lado tal critério colabora para o debate profundo de temas importantes para o MTR-SP, por outro lado tem criado para o movimento graves entraves em momentos em que é preciso respostas imediatas a demandas urgentes. Além disso, discussões intermináveis em busca de consenso, sem nenhum tipo de arbitragem, provocam exaustão e frustrações que em certo momentos desestimulam os participantes a ponto de provocar o afastamento tanto dos integrantes mais antigos quanto dificultam a permanência dos mais novos.
            Desafios constantes fazem parte de qualquer organização social. Tantos os desafios internos quanto os externos surgem e são superados na medida em que tais organizações mantenham-se em atividade constante. A construção de novas realidades passam, assim, pelo exercício contante de se reconstruir cotidianamente. Neste sentido, acreditamos que os desafios que o Movimento de Teatro de Rua do Estado de São Paulo tem pela frente são muito menores do que a importância que o movimento tem para a tempo presente. Acompanhamos, diariamente, o recrudescimento radical do conservadorismo, bem como a formação de um Estado policialesco, militarizado, em que qualquer cidadão ou cidadã que exponham publicamente sua crítica na forma de participação em mobilizações e manifestações são tratados como suspeitos de crime. A cada dia, os limites dos sonhado e desejado em termos sociais tornam-se mais estreitos e o consumo torna-se a nova identidade das mais diversas classes sociais. Num cenário como esse, todo e qualquer espaço que possa converter-se em espaços de novas sensibilidades, em exercícios de outras subjetividades, é espaço crucial na construção de uma nova sociabilidade, uma nova sociabilidade que garanta o direito à participação coletiva e plena de cada cidadão e cidadã. Mais uma vez, recorrendo a Jacques Rancière, precisamos defender e ampliar qualquer espaço que permita a ampliação da partilha do sensível, que inclua mais e mais pessoas e categorias na esfera política. Assim, acreditamos que a defesa do teatro de rua e a existência do Movimento de Teatro de Rua do Estado de São Paulo são bandeiras pertinentes e necessárias a se levantar. A nós, artistas, intelectuais, estudiosos ou fruidores dessa arte cabe a escolha de empunhá-las bem alto e colaborar nesse processo que, ao fim e ao cabo, é de interesse de todos e todas que acreditam num mundo de maior participação política, de respeito aos direitos humanos e plena justiça social.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Kil. A Dialética das condições e a fatura estética no teatro de grupo. In Subtexto revista de teatro do Galpão Cine Horto. Ano 5, dez 08, número 05.
BADIOU, Alain. A ideia comunista, in A Hipótese comunista. Boitempo Editorial. São Paulo. 2012
BRANDÃO, Tânia. Teatro brasileiro do século XX, as oscilações vertiginosas. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico, 29, 2001. 301-364.
FABRIZIO, Cruciani e FALLETTI, Clelia. Teatro de rua. Hucitec. São Paulo. 1999.
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância.Perspectiva.São Paulo.2004.
GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais.Cortez editora.São Paulo.2013
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Centauro editora, São Paulo.2013
MOREIRA, Luiz Carlos. There Is No Alternative, in Teatro e Vida Pública, o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. SP: Hucitec Editora. 2012
NOBRE, marcos. Imobilismo em movimento. Cia das Letras. São Paulo. 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.
_________________. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
REGILLO, Rosana. Utopías y heterotopias urbanas. La disputa por la ciudad posible. In Diversidad cultural y desarrollo urbano. SP: ed Iluminuras. 2005
SAFALTE, Vladimir. A democracia para além do Estado de direito? Cult, 137, julho de 2009, 42-44.
SANTOS, Boaventura Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, outubro de 2007. 3-46
SILVA, Noeli Turle. Teatro de rua é arte pública - Uma proposta de construção conceitual (tese de doutorado).UNIRIO – Centro de Letras e Artes.2011
SINGER, André. Os sentidos do lulismo, reforma gradual e o pacto conservador. Companhia das Letras.SP.2012
teatrais de São Paulo. Hucitec Editora. 2012
WILLIAMS, Raymond. Cultura.Paz e terra. São Paulo. 2000
_________________. Marxismo e literatura. Zahar Editores.RJ.1979.



*    Mestrando em Ciências Humanas, Diversitas/USP

[1]            “As estruturas de sentimentos podem ser definidas como experiências sociais em solução, distintas de outras formações semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata. (…) mas essas solução específica não é nunca um mero fluxo. É uma formação estruturada que, por estar na margem mesma da disponibilidade semântica, tem muitas das características de uma pré-formação (...)” (WILLIAMS,1979,136)