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domingo, 26 de fevereiro de 2012

Carta da RBTR ao Governo Federal

Foto: Adriano Mauriz


Carta da Rede Brasileira de Teatro de Rua ao Governo Federal.

A Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR, reuniu-se nos dias 26 a 30 de Janeiro de 2012, para seu X Encontro, juntamente com a "3ª Mostra de Teatro Olho da Rua" na cidade de Santos – SP   tendo em vista a continuidade de sua luta por políticas públicas para a Cultura com investimento direto do Estado que, garantam o direito de produção e acesso aos bens culturais a todos os brasileiros.
Considerando que nossa atividade artística, a qual, compreendemos como Arte Pública, e que vem sendo  debatida; desenvolvida; defendida e realizada por todo o Brasil, por: entidades,  grupos e movimentos teatrais e artísticos organizados; não recebem do atual governo o tratamento adequado. E, tampouco notamos o interesse em fomentar este seguimento artístico que se coloca em oposição a política desenvolvida até o momento que, trata a cultura e a arte como mercadorias, que visa somente o lucro e a auto sustentabilidade baseadas nas leis de mercado.
Considerando que a utilização da verba pública deve se dar através do financiamento direto do Estado com regras claras e transparentes, com a participação da sociedade civil organizada e acreditando que o poder público não deva e nem possa abrir mão de suas responsabilidades para com a manutenção e apoio das atividades artísticas populares, que não tem como premissa gerar lucro ou produzir mercadorias, é que:
 - Exigimos o repasse imediato da verba federal destinada à cultura através dos  editais lançados pelo Minc/ Funarte em 2011 (Myriam Muniz e Procultura).
- Exigimos que os editais deste ano sejam lançados e executados, no primeiro semestre de 2012, com maior aporte de verbas, liberadas sem atrasos, respeitando os prazos estipulados, a publicação da lista de projetos contemplados e suplentes, e a divulgação de parecer técnico de todos os projetos avaliados.
- Exigimos que os editais sejam estruturados com a participação da sociedade civil e divididos, pensando as realidades de cada estado, e que sejam criadas comissões igualmente regionalizadas e indicadas pelos movimentos, entidades e grupos artísticos organizados, bem como a criação de mecanismos de acompanhamento e assessoramento dos projetos selecionados.
- Exigimos que as comissões de seleção dos projetos sejam formadas, por pessoas ligadas a área cultural, indicadas por movimentos, entidades e grupos organizados de todo o Brasil. E que a lista de nomes sugeridos seja divulgada ampla e antecipadamente para que os proponentes dos projetos inscritos nestes editais votem nos nomes indicados e desta forma constituam as comissões.
- Exigimos que todos os editais criados pelos órgãos federais sejam transformados em lei, com financiamento direto do Estado através do Fundo Nacional de Cultura, se constituindo em uma política de Estado, garantindo assim sua manutenção e execução, independente do gestor público eleito.


Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Santos - A Liturgia de Libertação


Por LINO ROCCA
          Passados alguns dias após a nossa maravilhosa Mostra de Teatro de Rua, organizada pela Trupe Olho na Rua, fica a sensação que um Brasil vivo não sucumbiu à normalidade das coisas.
Idéias, discussões, visões e posicinamentos foram o que tivemos durante esses dias fantásticos de convivência teatral.
          Escrevo essas palavras pensando no dia de encerramento e no arrebatamento causado na coletividade presente e indagações surgem a todo instante. O que aconteceu?  Como o fluxo de energia fluiu de forma tão consistente?  O que se, pois em marcha nesse dia "mentes conscientes" ou "mentes libertas"?
         As três apresentações consecutivas que ocorreram primeiro com trabalho de palhaços do Circo Teatro Rosa dos Ventos com sua força cômica, logo em seguida o Cortejo ditirâmbico "politicus"da Cia Antropofágica e apresentação do que poderíamos chamar de Tragédia urbana do "Homem Cavalo e Sociedade Anônima" da Cia Estável nos levaram há um caminho duplo percorrido quase  simultaneamente entre  a "catarse coletiva" e "consciência política".
          Fico pensando de como uma ação tem um poder tão avassalador e me lembro sempre das palavras de Boal que parafraseio aqui: "a consciência livre é mais poderosas do que mil bombas".
          Daí, aos poucos, vou me aproximando do nascedouro do nosso Teatro Ocidental  com os suas Grandes Dionisias que aglutinavam toda uma coletividade para irem ao Théaton,  " lugar onde se vai ver", durante dias,  o dia todo para assistirem e se sentirem refletidos nas  comédias, dramas satíricos e tragédias ali postas, proporcionando a esta coletividade uma Liturgia que em grego significa, "trabalho público", ou seja, uma ação comum à todos.
           È a partir daí, que busco uma ligação com ocorrido em Santos à força do universo lúdico como potencia libertadora de consciência e do processo de alienação.
          Lúkács, no meu entender, em alguns dos seus textos sobre a produção Estética Marxista se utiliza do termo "particular" para determinar o sujeito histórico, creio que neste dia em Santos utilizando o mesmo termo, pudemos evidenciar o que chamaria de uma "particularização desalienada" onde o particular se tornou coletivo e o coletivo se tornou particular.
           Tomando a percepção do outro como princípio de libertação da consciência presumo que ao nos identificarmos  com a comunidade local, casebres, malditos e esquecidos pelo mundo capitalista, o fetiche "mercadoria" que marcar os nossos corpos se desmanchou inteiramente.
          Creio que quando entramos no "jogo lúdico dos palhaços", adentramos no "ditirambo politucus" e experimentamos a tragédia urbana de ser um "homem cavalo", nos colocamos como consciências livres no sentido coletivo da existência, e, nos igualamos diante da indignação de um sistema balizado pela exploração do homem pelo homem.
          Penso e relembro ecoando, ainda, potente no meu ser os risos livres de corpos libertos, os ditirambos  contemporâneos  que nos levaram a cantar as mazelas da opressão juntamente com marchinhas de carnaval e sátiras musicais do nosso Teatro de Revista. A Internacional Socialista aos brados retumbantes dilacerava a mixórdia situação de Pinheirinho.  A população marginalizada sentada nas arquibancadas assistindo um pedaço da sua realidade.  MAGIA!!
         Enfim, uma Liturgia de Libertação tomou as ruas de Santos através de nós, artistas do mundo, redimensionando o nosso sentido estético com a nossa ação política.
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domingo, 12 de fevereiro de 2012

REPRESENTAÇÃO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - CONTRA A MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA



REPRESENTAÇÃO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Curitiba, 02 de fevereiro de 2012.
Exma. Sra, Vice Procuradora Geral da República do Ministério Público Federal Débora Duprat.
Eu, MANOEL JOSÉ DE SOUZA NETO, pesquisador, produtor cultural, membro do CNPC - Conselho Nacional de Políticas Culturais, ente relacionado ao Ministério da Cultura por meio da lei 5.520/05, suplente da área de música erudita, portador do documento de identidade RG nº5.718.848-0, residente e domiciliado à Av Luiz Xavier, 68, complemento 1618, venho à presença de V. Exa. apresentar REPRESENTAÇÃO CONTRA A MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA, fruto da averiguação minuciosa dos fatos históricos, sociais e políticos relacionados às denuncias feitas pela imprensa que apontam fortes indícios de desrespeito no exercício da função pública por parte da MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA que precisam ser apurados pela Procuradoria Geral da República como órgão competente para dar resposta ao clamor popular e à indignação, amplamente manifestados nas redes sociais. Solicitação que se justifica pelas denúncias feitas pela imprensa que se forem verdadeiras pesariam contra a Ministra,acusações de desvio no exercício da função pública, nos seguintes termos:
- Uso de informação oriunda de fraude da primeira consulta pública da lei de direito autoral realizada em 2010, fraude promovida pelas empresas e escritórios relacionados ao direito autoral através da internet alternado a votação da consulta no site do Ministério da Cultura, o que serviu de justificativa de legitimar uma mudança no texto do projeto de lei que já estava no executivo, a caminho do legislativo. No caso, uso de informação inverídica como ponto de partida para mudança no rumo da gestão do ministério e da reforma da lei do direito autoral. Com agravante, ao não denunciar a tentativa de fraude aos órgãos competentes, apesar do aviso de seus subordinados e de previsão legal que a obrigaria a denunciar a referida fraude (Lei das Contravenções Penais - DL-003.688-1941, Parte Especial, Capítulo VIII Das Contravenções Referentes à Administração Pública, Omissão de Comunicação de Crime Art. 66); & Inserção de dados falsos em sistema de informações (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000);
- Associação a redes e aos grupos econômico nos direitos autorais, cruzando relações profissionais e pessoais no favorecimento de interesses externos ao MINC, em conflito com o cargo da Administração Pública de Ministra da Cultura, interferindo na tomada de decisões da reforma da lei de direito autoral; Prevaricação (Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal);Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário;
- Má condução na reforma da lei de direito autoral em favor de grupos de interesses econômicos nacionais e, inclusive, internacionais, considerando os próprios depoimentos da Ministra da Cultura que afirma categoricamente que os direitos autorais devem respeitar os tratados internacionais, desconsiderando o interesse interno e por afirmar categoricamente que o ECAD não deve ser fiscalizado pelo Estado;
- Ato de prevaricação, considerando que a ministra e os amigos são detentores de direitos autorais literários e musicais, e que a defesa radical de tais direitos de autores contra o equilíbrio dos diversos interesses sociais e o interesse nacional reflete uma busca por favorecimento de redes profissionais e pessoais. Portanto, ao paralisar a reforma que estava em andamento desde 2006, mudando os rumos do texto da lei no começo de 2011, a Ministra supostamente fez uso do cargo para interesse particular, corporativo ou de parentes e amigos gerando dano público. (Prevaricação Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal); Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário;
- Uso do site do Ministério para defesa de ideologia de modelo de negócios copyright em oposição ao modelo copyleft, em especial na exclusão do site do MINC do modelo de licença jurídica Creative Comons, com uso de artifícios e mentiras na imprensa como forma de justificar tal ato: (Prevaricação Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal); Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário;
- Descumprimento de determinação legal (PLANO NACIONAL DE CULTURA, LEI N 12.343, de 2 de dezembro de 2010), que atribui ao Ministério da Cultura a criação de órgão fiscalizador dos direitos autorais, o que foi ignorado na elaboração do novo projeto da lei de direitos autorais encaminhado pela Ministra da Cultura ao executivo em 2011; - Do descumprimento do Plano Nacional de Cultura na reforma da lei de direito autoral no caso do artigo: 1.9.1 Criar Instituição especificamente voltada à promoção e regulação de direitos autorais e suas atividades de arrecadação e distribuição(PLANO NACIONAL DE CULTURA, LEI N 12.343, de 2 de dezembro de 2010);- A decisão da ministra fere a I Conferência Nacional de Cultura de 2005, que revela no seu relatório geral, que os direitos autorais foram um dos pontos considerados cruciais, sendo aprovado entre as 30 grandes diretrizes, que: "Criar órgão regulador dos direitos autorais, com conselho paritário, formado por representantes do Estado, dos diversos segmentos artísticos nacionais e da sociedade civil..." (I Conferência Nacional de Cultura de 2005, Ministério da Cultura, 2006, pág 500);- Informação reforçada nos interesses do setor musical oficialmente manifestado no Colegiado Setorial de Música entre relacionado ao CNPC – Conselho Nacional de Políticas Culturais: "Promover a aproximação da Sociedade com as questões do Direito autoral (4) Fortalecer a gerência de Direito Autoral dentro do Ministério da Cultura" (Relatório de Atividades da Câmara e Colegiado Setorial de Música, Ministério da Cultura 2010, pág107);- Descumprimento das tomadas de decisão do Conselho Nacional de Políticas Culturais, da Conferência Nacional de Cultura e do Colegiado Setorial de Música (ente do CNPC) com relação a este tema dos direitos autorais e a outros inúmeros temas que precisam ser apurados dada a dimensão das irregularidades e do descumprimento da lei do Plano Nacional de Cultura;- Descumprimento das diretrizes do decreto do Plano Nacional de Cultura quanto ao fortalecimento da participação da sociedade civil na gestão pública, já que a formulação do projeto de lei de direitos autorais pelo MINC, correu em sigilo no grupo técnico no MINC sendo enviado direto ao executivo, ao invés de ter sido realizado em conjunto com a comissão de cultura da câmara e em parceria com o CNPC. Ferindo os seguintes artigos: 17.1 Fortalecer as comissões de cultura no Poder legislativo federal, estadual e municipal, estimulando a participação de mandatos e bancadas parlamentares no constante aprimoramento e na revisão ocasional das leis, garantindo os interesses públicos e os direitos dos cidadãos. (PLANO NACIONAL DE CULTURA, LEI N 12.343, de 2 de dezembro de 2010);- Manipulação da verdade, uso indevido da imagem da sociedade civil e do Conselho Nacional de Políticas Culturais afirmando que a reforma da lei de direito autoral foi aprovada e acompanhada pelo CNPC, o que não é verdade; desvio das funções de ministra, ao não dar voz aos interesses da sociedade, de acordo com o que foi determinado no Plano Nacional de Cultura, Conferências nacionais de Cultura e Caderno do Plano Setorial de Música: EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 48, DE 10 DE AGOSTO DE 2005 - Acrescenta o § 3º ao art. 215 da Constituição Federal, instituindo o Plano Nacional de Cultura; lei 5.520/05; PLANO NACIONAL DE CULTURA, LEI N 12.343, de 2 de dezembro de 2010; PORTARIA . Nº 16, DE 04 DE MAIO DE 2009 do Ministério da Cultura; Artigos 87, parágrafo único, inciso I, e 215, da Constituição Federal; decreto nº 5.520/05; Princípio constitucional (art. 4º, VI e VII); Artigo 216 da Constituição Federal; Portaria nº 04, de 3 de dezembro de 2009 do Ministério da Cultura; Decreto nº 6.973, de 7 de outubro de 2009; Resolução cen - ii cnc nº 2, de 2 de dezembro de 2009 do Ministério da Cultura; Regimento interno conselho nacional de política cultural CNPC; Portaria nº65 de 11 de setembro de 2009 do Ministério da Cultura; Emenda Constitucional 416/2005;
- Descumprimento dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º, 6º, 214 º, 215 º, 216 º, 220 º, 221 º, 222 º, 223 º, da C.F na execução das políticas do MINC com relação a não aplicação do Plano Nacional de Cultura no que tange a reforma do direito autoral e execução dos programas e projetos realizados por esta gestão nos anos de 2011/12;
Todos os fatos foram amplamente divulgados pela imprensa, portanto não se configuram como acusações pessoais. Venho apresentar um relatório e uma análise do que foi exposto pelos veículos de comunicação, por jornalistas e especialistas no assunto que vem revelando o mal estar provocado pela gestão da ministra e dos efeitos nocivos para a sociedade, cultura e educação brasileira.
*Denuncia anexa, informo que membros relacionados a funcionários da ministra que fazem parte de redes sociais e fóruns culturais com estreitas ligações com o caso vem me ameaçando, restringindo minha atuação como conselheiro, promovendo mentiras, me atacando com objetivo de desqualificar estas denuncias, provocando ônus moral, social, financeiro, físico e emocional há mais de um ano. Peço preservação da minha liberdade de expressão e integridade física e moral que estão sendo ameaçadas, com acompanhamento e proteção do Ministério Público;
Como Conselheiro Nacional de Políticas Culturais, representante da área de música como suplente da área erudita, ciente das responsabilidades do cargo para com o interesse nacional, encaminho a REPRESENTAÇÃO admitindo minha inexperiência jurídica para avaliar se as irregularidades apontadas pela imprensa são somente indícios de má conduta, ou se a reforma do direito autoral foi de fato conduzida em beneficio de um pequeno grupo de atravessadores, o que pode trazer enormes prejuízos para a Nação Brasileira.
Ainda assim, como observador de atitudes que, em minha opinião, são absolutamente questionáveis, apresento este REQUERIMENTO para a investigação da MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA, bem como para o seu afastamento das funções da administração pública relacionadas à reforma da lei de direitos autorais; e para a paralisação do projeto de lei do direito autoral encaminhado por esta Ministra ao executivo e a Câmara dos Deputados, ao menos até que as apurações apresentadas neste REQUERIMENTO e apresentadas pela CPI do ECAD sejam concluídas.
Coloco-me a disposição da Procuradoria Geral da Republica para esclarecimentos, apresentação do texto com justificativas complementares, resultado de uma pesquisa com 700 documentos e artigos de imprensa que motivaram esta denúncia. Declaro que as informações aqui contidas são verdadeiras e que não represento nenhuma organização no ato desta REPRESENTAÇÃO, sem mais para o momento, subscrevo. Respeitosamente.
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Manoel José de Souza Neto

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O comum e a exploração 2.0

O COMUM E A EXPLORAÇÃO 2.0

11/02/2012
Por Universidade Nômade


O 3º FÓRUM DE MÍDIAS LIVRES
O 3º Fórum de Mídias Livres (FML), realizado em Porto Alegre no escopo do Fórum Mundial Temático 2012, foi marcado pelo apelo à convergência. Os desafios para a democratização das comunicações no Brasil dependem de uma mobilização abrangente, de amplo espectro articulado em rede, dos grupos, coletivos e veículos que trabalham à margem dos conglomerados das comunicações. A chegada de Ana de Hollanda como ministra da cultura de Dilma, com suas relações íntimas com o ECAD, a dita “classe artística” e a grande indústria fonográfica, acabou por fechar as portas do governo aos novos protagonistas do campo cultural e das mídias livres. Em menos de um ano, o MinC da Holanda tornou-se um reduto de defesa aristocrática da “arte” contra a cultura. Daí os apelos no 3º Fórum quanto ao respeito às diferenças para a expansão de redes contra-hegemônicas ao establishment representado pela indústria cultural nacional e internacional. No “espírito do tempo” dessa convergência, não há lugar para purismos, dogmatismos, academicismos, para qualquer esboço de retorno a formas ultrapassadas de militância, consideradas analógicas ou “1.0″.
A rede Universidade Nômade, inclusive por meio da Revista Global/Brasil, participou dos dois fóruns anteriores, no Rio de Janeiro (2008) e em Vitória (2009). Em ambos, não só debateu horizontalmente, como contribuiu para a formulação de uma frente transversal de construção para as novas mídias livres e/ou redes colaborativas. O que se traduziu, por exemplo, na política dos Pontos de Mídia Livre. Numa perspectiva materialista, de fato, não adianta aferrar-se a elaborações teóricas ou cartilhas utópicas, mas, sim, identificar movimentos e lutas reais que já estão constituindo uma alternativa ao modelo da grande mídia e grande indústria cultural. Desde os primeiros fóruns, consideramos acertado o diagnóstico da importância de colocarem-se tarefas concretas para a coordenação de movimentos sociais, redes militantes e/ou mídias auto-organizadas de cauda longa. No sentido que esses vários agentes (pontos, singularidades) se qualifiquem cada vez mais para, no limite, constituirem-se como uma teia múltipla e politicamente organizada contra o status quo. Noutras palavras, constituirem-se como um comum produtivo, material e antagonista ao capitalismo: seja ele 1.0 ou 2.0, analógico ou digital.
A 3ª edição do FML, no entanto, causou estranheza. Seu calendário, a composição das mesas e suas pautas, foram pré-definidos por um círculo fechado que, quando teve a legitimidade contestada, tentou legitimar-se apelando às atividades de um “comitê executivo”, instituído em 2008, e cujas atividades e deliberações não foram apresentadas aos midialivristas em lista aberta. Em princípio, participaram desse comitê os cabeças de algumas organizações já estabelecidas. Ou seja, a maioria dos midialivristas não participou da construção do 3º FML: um evento pré-formatado e pré-pautado. Essa centralização havia se tornado conhecida pelo vazamento de um e-mail assinado por Pablo Capilé, do circuito Fora do Eixo (FdE). Vide:http://www.4shared.com/office/sgjElRbI/2012_e_as_Redes_em_Rede.html?refurl=d1url 
A mensagem, dirigida a grupos “parceiros”, convoca a formação de redes em rede e contém um calendário e uma pauta completos para 2012. Esse pacote inclui o Fórum de Mídias Livres em Porto Alegre, mas também o Festival Digitália, o Grito Rock, os encontros anuais do próprio FdE e da Casa de Cultura Digital e, finalmente, a decisão já tomada de organizar um Fórum Mundial de Mídia Livre em ocasião da Rio + 20. Entre as redes “parceiras”, citadas porém não consultadas: Pontos de Cultura, Pontos de Mídia Livre e Espaços Hackers. Quando interrogações e vozes dissonantes começavam a se fazer ouvir, o próprio Capilé informou que “não precisamos mais ficar lotando a caixa de emails de ninguém aqui com um debate que será feito a partir de agora em outras listas” Vide:http://www.4shared.com/office/VGSr5KU9/2012_e_as_Redes_em_Rede_-_2.html?refurl=d1url
O 3º FML em Porto Alegre aconteceu num ambiente onde o dissenso foi rapidamente desqualificado, e onde a convergência veio pré-estabelecida de cima a baixo. Uma forma de organização que lembra não só a burocracia estatal, como também aparelhos meramente partidários, em que são camufladas a hierarquização e a fragmentação por meio da mística do consenso. Ao invés de momento para a construção democrática, o FML se tornou o lugar de ratificação burocrática de decisões tomadas antes, alhures e por outrem! O FML tornou-se assim o teatro de mais uma comédia da representação.
Diante disso, vale a pena problematizar o estado do processo de constituição de “mídias livres” e mais em geral o movimento da “cultura” de resistência à restauração no MinC. O que significa o apelo de convergência e ao que, afinal, se pretendem fazer convergir as redes? O que está em jogo nesses consensos cada vez mais impermeáveis e institucionalizados, que são reproduzidos, muitas vezes na sua essência acriticamente, nos fóruns e encontros culturalivristas e midialivristas? O que significa que as redes (no plural) agora devam constituir-se em uma só rede?

AS REDES E OS NOVOS MODELOS DE NEGÓCIOS
De tempos para cá, se tornou costumeira a expressão “gestor de redes” e “redes em rede“. Por gestão de redes se entende a atividade de ligar os pontos e trançar os fios do que passa a ser uma cadeia produtiva. O gestor opera como um agregador dos múltiplos nós produtivos da economia da cultura. Por um lado, gere o fluxo de equipamento e trabalhadores (gestão de eventos, carreiras, plataformas); por outro, o fluxo do dinheiro (editais, patrocínios, investimentos, lucros). Na música, por exemplo, significa articular bandas, casas de show, plataformas, equipes técnicas, promoters, produtores, publicitários, críticos e intelectuais. Essas conexões compõem uma rede que o gestor administra, promovendo o empreendedorismo dos participantes e sob o guarda-chuva de uma marca. A marca, por sua vez, é construída como um modo de engajamento de seus trabalhadores, um jeito característico de trabalhar, vestir-se, negociar, em suma, uma ética e uma estética, uma forma de vida: um coletivo. O objetivo deste concerto passa a ser implementar a marca até se obter um conglomerado de redes, integradas ou “parceiras”. Funciona como um brand management, pelo qual se aplicam e aperfeiçoam processos e técnicas de marketing, determinados pelas oportunidades (e ameaças), com vistas a expandir, controlar e conservar os mercados. O processo vai produzindo sinergia e se constituindo como mercado (cultura) flexível, eficiente, sinergético, horizontal, em suma, livre como na expressão livre mercado . Tudo isso se ensina tranquilamente nas faculdades de economia ou administração da FGV, PUC, da COPPE/AD da UFRJ etc.

A REDE COMO NOVO MODELO DE NEGOCIO
Criado ao redor da música independente (indie), o Fora do Eixo opera mais fortemente na cadeia produtiva da música e se organiza no formato de coletivos de produtores. O FdE, aqui, é fora do eixo produtivo das grandes gravadoras e produtoras, e não somente fora do eixo RJ-SP. Para ser autônomo, é preciso não só fazer música fora do mainstream, mas passar a ter controle sobre os processos de distribuição, divulgação, organização de eventos, parcerias etc. Ele conta com gestores “orgânicos” que se entregam 24 horas para a “causa”, numa moral do trabalho que lembra tanto as vanguardas profissionalizadas de militantes liberados quanto o executivo workaholic das multinacionais. Desde 2005, o FdE se expandiu à margem das redes oligopólicas da indústria fonográfica, de laços amiúde familiares e muito verticalizados. Ele se propõe a desenvolver a cauda longa de produtores e bandas pelo país, sem se subordinar à indústria cultural. Nesse intuito, vem organizando shows, festivais, turnês, encontros, debates e fóruns, fornecendo plataformas e espaço para bandas menores e artistas jovens, iniciantes ou com pequenos públicos. Nos anos Lula, o FdE foi bem-sucedido em angariar sistematicamente verbas de editais do Ministério da Cultura (MinC), bem como patrocínios (que também são públicos) de empresas e bancos.
Assim como outros grupos político-culturais aliados ao MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira, encampou o discurso culturalivrista e digitalista, de contraposição aos atravessadores tradicionais e à supervalorização do artista criador. Trata-se de uma concepção de novos modelos de negócios, adaptados à era digital, às licenças Creative Commons e à riqueza das redes onde a informação não teria rivais.
 Mais recentemente, o FdE começou a se mover para o eixo. Nascido nas regiões centro-oeste e norte, instalou-se com sucesso em São Paulo e Minas Gerais, e agora tenta avançar mais decisivamente para o Rio de Janeiro e Pernambuco. Além disso, começou a buscar parcerias com bandas, por assim dizer, menos alternativas, contratando artistas de maior visibilidade, e também através de conexões mais fortes com o setor público (governos estaduais e prefeituras) e mesmo partidário (por meio do Partido da Cultura, de iniciativa do próprio FdE).

A PRIMEIRA GERAÇÃO DE CRÍTICAS AO NOVO MODELO DE NEGÓCIOS 
 O FdE como rede centralizadora de redes já foi objeto de uma série contundente de críticas. Em geral, essas associam uma análise correta do funcionamento material desse novo modelo de negócios a uma perspectiva teórica e política ambígua, como se o FdE fosse um “desvio” dos princípios da remuneração do “artista” ou até da luta revolucionária. Por corretas que elas possam ser no plano da análise, essas críticas são politicamente insuficientes. Contudo, merecem a atenção dos ativistas.
Dentre as críticas ao FdE, destacam-se: 1) a dependência de verbas estatais, 2) o caráter político do grupo, 3) a exploração dos artistas com o não-pagamento ou minoração dos cachês, e 4) um comportamento predatório dos mercados.
 1) Quanto às verbas estatais, argumenta-se que eles não são sustentáveis como projetos culturais, que o dinheiro público acaba aplicado em iniciativas mais amadoras e de pequeno público. Essa crítica tende a ser reacionária, na medida em que a grande indústria supostamente “profissional” também sobrevive de uma relação preferencial com os governos e, na prática, tende a se beneficiar de montantes bem mais vultosos a título de isenção fiscal, parcerias, facilitações e verbas de publicidade. Todos os artistas medalhões com os quais se identifica a Ministra Buarque de Hollanda recorrem aos subsídios estatais por meio das Leis de renuncia fiscal. Ademais, o Estado tem por função constitucional promover o acesso, a qualificação e a produção da cultura, que é por si mesma um retorno social dos investimentos. O sonho do capitalismo é todos viverem de salário e venda de produtos, duas formas sociais do mesmo fenômeno de mercantilização do trabalho, do mundo da mercadoria. A crise do capitalismo global colocou a nu essas abstrações.
2) Quanto ao componente político, à direita, a crítica tende a se contradizer, pois a indústria cultural e a grande mídia igualmente mantêm uma agenda política, rigorosamente ideológica mesmo ao silenciar a respeito de suas opções e tendências. A diferença do FdE é assumir agressivamente a pauta política, inclusive no jargão de seus membros. Já na vertente à “esquerda”, o FdE  banalizaria as lutas sociais e marchas, esvaziando o seu caráter conflitivo e antagonista. Sua aparência esquerdista não passaria de estratégia de marketing para cooptar o sentimento de revolta e insatisfação da juventude. Porém, diz-se, não ataca o sistema; pelo contrário, é parte dele. Essas avaliações, das quais o coletivo Passa Palavra é emblemático, acabam reduzindo a crítica à denúncia do desvio entre teoria e prática. É preciso avançar a análise sobre a matriz da exploração no contexto do capitalismo cognitivo, assim como a composição de classe que lhe resiste, o que falta nessas análises em comento. Não percebem como a teoria circula e viabiliza certas práticas e vice-versa, como a teoria é pensamento estruturado e organizado para fazer sentido e ser efetivo em determinado contexto de relações. Numa perspectiva materialista, não adianta acusar o FdE de anticapitalista de menos, ou de falsidade ideológica, mas destrinchar a matriz prático-discursiva que possibilite algo como o FdE avançar ao mesmo tempo sobre mercados e espaços tradicionalmente ocupados pelas esquerdas. O que interessa não é demonizar o FdE, como se fossem “traidores”, mas entender como, por quais mecanismos um novo modelo de negócio avança e consegue fazer operações de hegemonia nas redes de movimento. Até o ponto de ser – mundo afora – apresentado academicamente como “rede de ativismo descentralizado”.
3) Outro bloco de críticas circunda o pagamento dos cachês. O FdE aufere verbas públicas e de patrocínio, porém não remunera diretamente a maioria dos artistas que performam em seus shows e festivais. Geralmente paga passagens, alimentação e hospedagem apenas para os músicos (e não à toda a equipe), o que não deixa de consistir numa remuneração indireta, mas não os cachês. Em parte, isto decorre da própria concepção de cultura como cadeia produtiva. Em vez de ser encabeçada pelo artista-criador, como no discurso reacionário do ECAD e do MinC da Dilma, a economia da cultura se faz com a cauda longa de produtores, trabalhadores e serviços agregados. Daí a menor importância conferida aos cachês, em relação à retroalimentação do processo como um todo. Ao atribuir ao artista um papel quase sagrado na produção, deixando de lado o processo social como um todo, essa crítica também é insuficiente, embora legitima na boca de artistas que se recusam a entrar no esquema do Cubo Card: ou seja de receber pagamentos com base em títulos emitidos pelo próprio FdE, algo como uma moeda complementar.
4) Finalmente, quanto à predação, o FdE não esconde a sua estratégia de inserção e dominação dos mercados. Não à toa, num Fórum de Mídias Livres e no Fórum Social em geral, o extremo pragmatismo de seus membros em contornar debates para concentrar-se nas pautas do próprio grupo e suas possíveis convergências (parcerias e negócios). Atualizando o par estratégia/tática, o FdE não cansa de esclarecer que mantém a hegemonia sobre suas composições com grupos estatais ou privados: o MinC, a Petrobrás, o Itaú Cultural, a Coca-Cola etc, pois estaria “hackeando” essas instituições menos do que sendo “hackeado” por elas. Novamente, neste âmbito, o FdE lembra tanto uma vanguarda leninista (na luta expansionista por hegemonia), quanto uma multinacional (na luta expansionista pelo controle dos mercados). Se o linguajar é “pós-pós”, a prática é bem aquela de uma captura de novas redes produtivas dentro de uma só rede, sendo essa estruturada segundo os métodos mais tradicionais do século 20.   A pauta — importantissima — da flexibilização dos direitos autorais acaba sustentando como que uma “vontade geral”. Ora, quando tratada fora de um contexto de luta contra a mercantilização da vida, a flexibilização dos direitos autorais serve mais ao capital do que aos movimentos. Afinal, no novo modelo de negócios que o Facebook ou a Google expressam bem, enquanto muitos trabalham de graça (free, livre) em frente seus computadores, investindo suas vidas na internet, poucos ganham rios de dinheiro no mercado financeiro. O mesmo vale para o mercado fonográfico, e para cultura digital em geral, onde muitos trabalham de graça enquanto os gestores, ou produtores culturais dos grandes festivais e suas polpudas verbas de publicidade, negociam milhões. Esse é o novo modelo de negócios que tenta rearticular o capital no campo dos comuns, para rearranjá-lo no interior mesmo de sua nova crise. Assim, a multidão é liquidada à crowdsourcing, o objeto da exploração do trabalho livre, no sentido de gratuito.
 Mas, aqui também, o que interessa não é “denunciar” os novos modelos de negócios, mas entender como eles funcionam e por onde passam os conflitos que os atravessam.

A PERSPECTIVA DO COMUM
 É urgente ir além dessas “denúncias”. Isso significa recolocar a questão de um ponto de vista crítico e materialista. Em vez de moralizar a questão ou contornar seus principais enovelamentos práticos-discursivos, se faz necessário tomar mais analiticamente a expansão das redes sob o discurso midialivrista e culturalivrista (da qual o FdE é apenas um detalhe). Trata-se de contextualizar essas dinâmicas produtivas sob a alcunha “cultura livre” ou “mídia livre” sobre o pano de fundo do ciclo de lutas e revoluções que se afirmou, claramente, ao longo do ano de 2011.
As lutas, ocupações, marchas e acampadas globais exprimem um desejo de mudança e uma forma de organização que as conferem um caráter antissistêmico. Contudo, a crise global, essa proliferação de acontecimentos e embates, tanto pode resultar numa ruptura com o capitalismo global financeirizado, quanto numa nova reestruturação e captura, uma nova síntese, em suma, em algo como um altercapitalismo (ou capitalismo 2.0). Esse capitalismo já se anuncia como um regime de acumulação que abre mão da retórica e até das instituições democráticas, servindo como exemplo o caso da Itália, onde o sistema financeiro global decidiu compor ele mesmo o gabinete de governo do país, com o primeiro-ministro Mário Monti. Por isso, é preciso assumir a situação de crise na sua dimensão ambivalente, propugnando pelo aprofundamento do ciclo de lutas, ou seja, pela radicalização da crise. Daí a relevância de uma perspectiva da crise que não perca de vista a dimensão antagonista, em vez de convergir convenientemente para uma síntese neutralizada.
Dito isto, uma boa maneira de apreender as alternativas da crise se dá por meio da perspectiva da constituição do comum.
O comum, na esteira do marxismo operaísta, da filosofia da diferença e da antropologia canibal, é uma organização política das relações produtivas e materiais. Não só como modalidade de convivência, cooperação e produção, mas também como base material para a auto-formação e auto-valorização do trabalho, das redes colaborativas, da criação de formas de vida a partir de formas de vida, da constituição antropofágica de perspectivas de mundos além do capitalismo. O comum está além do público-estatal e do privado, como esfera transversal onde cultura, economia e política se amalgamam gerando potências de vida: biopolítica e auto-valorização. Trata-se da ocupação intensiva do espaço e do tempo, sob outra gramática organizacional. Uma organização heterogênea que se constitui não para nivelar as diferenças, mas para produzir a partir delas, gerando novos entes e processos. Sob a perspectiva do comum, se podem abordar e elaborar estratégias para muitos campos políticos: a gestão de recursos naturais e da própria relação entre natureza e cultura; a produção e reprodução da vida social (saúde, educação, políticas da mulher, ações afirmativas); a geração, circulação, distribuição e alocação de energia, renda, conhecimento e direitos.
 Por outro lado, é preciso admitir que a constituição do comum não ocorre com a produção de um espaço homogêneo e consensual, como se superasse a luta de classe numa convergência definitiva. O comum é substância híbrida que não é eclética, mas atravessada por atritos e conflitos, e que troca energia a todo momento entre as divisões sociais e as pautas políticas, entre a materialidade da pobreza e a reapropriação da riqueza social. Ademais, o comum que interessa é necessariamente antagonista. Mas não é antagonista porque se opõe a alguma grande entidade chamada Capital, ao qual devêssemos convergir para efetuar uma luta contra-hegemônica. O discurso da contra-hegemonia não questiona o poder, mas se limita meramente a disputá-lo, numa prisão dialética. O comum antagoniza ao capital enquanto relação social, dentro da qual estamos todos, da mesma maneira que as relações de poder. Por isso, não tem cabimento dissociar fins e meios, o que geralmente está implicado no par estratégia/tática. A relação social do capital não pode ser combatida senão na afirmação de relações outras, além de seus rendimentos como métrica, exploração e subordinação produtivas. O comum, portanto, é menos o fim do caminho que o ponto de partida, é menos a saída da luta do que o próprio terreno onde a luta entre comunismo e capitalismo passa a acontecer. 
Discordando dos saint-simonianos digitais (ou tecnutopistas) e dos ultra-liberais das redes, é preciso admitir que a centralidade do comum não significa que as dinâmicas produtivas que o constituem não sejam objeto de novas investidas do capitalismo, pós-moderno ou cognitivo. Quer dizer, da reconfiguração das relações sociais atravessadas pela divisão de classe e pelo comando capitalista. O domínio do comum também (ou sobretudo) é passível de expropriação.
 Mas como se controla o trabalho em dinâmicas de comuns criativos e colaborativas? Qual é a tal diferença entre o capitalismo “analógico” e “capitalismo digital” (para usar um dos chavões binários dos intelectuais apologéticos do “pós-pós”)?
Com efeito, o que muda é a exploração: o capitalismo 1.0 organizava a cooperação entre as forças produtivas para poder explora-las. O “comum” era assim “produzido” (e imediatamente subsumido) na divisão capitalista do trabalho (na relação salarial) e explorado indiretamente, por meio dessa divisão técnica. O capitalismo 2.0, ao contrário, explora diretamente o comum (a colaboração) que já existe, como condição prévia: o trabalho colaborativo entre as singularidades (os pontos). No capitalismo 1.0, a exploração determina a colaboração. Um paradoxo que emerge na ambiguidade dos temas do “emprego”. No capitalismo 2.0, a colaboração é condição da exploração e por isso pode acontecer por fora da relação de emprego, na precarização da relação salarial, no terreno da empregabilidade (workfare).
A empresa capitalista, neste cenário, não pode mais controlar diretamente a produção. Porque, na economia da cultura e do conhecimento, a dinâmica do valor está concentrada no capital variável. Noutras palavras, não está mais atrelada ao domínio dos meios de produção e das máquinas, nas condições objetivas da produção, mas na própria subjetividade, na capacidade dos sujeitos cooperarem, criarem em conjunto e se reinventarem. A vida como um todo é investida, à medida que a subjetividade atravessa não só o tempo de trabalho propriamente dito, mas as ações mais cotidianas, o dia-a-dia, a linguagem, a ética e a estética dos sujeitos. É por isso que, no capitalismo cognitivo, a produção social ocupa todas as esferas da existência: o lazer, a educação, os esportes, as relações amorosas, a família, o Estado etc. Não admiram as atividades da publicidade, isto é, a cognição sistemática dos valores de uso, conseguir enxergar valor a ser expropriado por toda parte. Desta forma, busca subsumir as potências de vida em produtos vendáveis, em um imaginário ou em estilos de vida que determinada marca representa. A atividade por excelência do capitalismo cognitivo é o brand management, que opera nas condições subjetivas da produção social.
Por um lado, essa administração capitalista das subjetividades extrai uma quantidade imensa de mais-valor a partir do comum, ao passo que camufla a exploração ao contar com a participação direta dos explorados, assim neutralizando e mistificando o antagonismo entre exploradores e explorados. Por outro, a multidão dos expropriados pode organizar-se autonomamente e dispensar o gestor capitalista. Isto significa conferir um caráter afirmativo, radicalmente democrático e antagonista ao comum. Ou o comum é uma prática política, ou não é.

VOLTANDO AO CASO DO FORA DO EIXO
A extração de mais-valor do comum no Circuito FdE não reside, como supõe certa crítica moralista, em algum desvio ou malversação de verbas públicas. Não é que as planilhas não fechem, como se houvesse um rombo escuso. O FdE é bem sucedido (a maioria das vezes) em abrir integralmente as planilhas orçamentárias e prestar contas da aplicação dos recursos. É que, dentro da lógica da teoria do valor, a expropriação do comum não aparece. Pensado isoladamente, caso a caso, o capital investido na produção dos eventos e na gestão das carreiras corresponde à remuneração das partes envolvidas e aos custos operacionais e comerciais. A questão é que, ao assumir o brand management “Fora do Eixo”, sucede uma valorização paralela e cumulativa. A acumulação de valor se dá na integração, na sinergia, na socialização dos múltiplos trabalhos e projetos tomados isoladamente. Daí a formação de um autêntico capital social, de uma intensificação da produção em rede. Essa valorização difusa supera, exponencialmente, a possível extração de lucro dos empreendimentos isolados. 
riqueza das redes (Y. Benkler) aparece, por conseguinte, não da produção de lucros por edital ou evento, mas por meio da apropriação global do valor cognitivo: exploração do comum! Se o FdE reúne confiança coletiva para emitir débitos contra si mesmo, como promessas de pagamento sob o seu guarda-chuva, como o cubocard, isto se deve, em boa parte, ao lastro conferido pelo capital social (“In FdE We Trust!“). O comum é expropriado e se torna renda: não é por acaso que o próprio Capilé fala de um subprime do FdE! Nessa gestão rentista, quanto mais redes parceiras (“redes em rede“), quanto mais expansível o FdE se afirmar como brand, maior a captura da produtividade difusa: as redes que caem na redeNesse sentido, o FdE é o antípoda da política dos Pontos!
Isso aparece, evidentemente, nas polpudas verbas de publicidade, no interesse que grandes marcas e empresas manifestam em relação aos enfim reencontrados representantes da nova juventude, das lutas da geração, do estilo indie, descolado, alternativo etc. Ao não pagar cachês e informar que a planilha fechou, que não sobrou nada, redes como o FdE deixam de divulgar a cadeia produtiva da cultura em sua inteireza, em sua verdadeira cauda longa de circuitos de valorização e apropriação. Num contexto nacional de ascensão de renda e consumo, no interior e nas periferias, o interesse pelos novos mercados consumidores é redobrado. Não soa ilógico, portanto, o FdE propor a participação da Coca-Cola em uma marcha da liberdade em São Paulo, mesmo sem a marca estar diretamente exposta no evento. E é aí, também, que aparece o caráter não-transversal do “movimento”. Não admira, ainda, o caminhar do FdE em direção ao eixo. Trata-se de um ciclo, onde o indie, o alternativo, o independente rapidamente se integram no novo mainstream. Os gestores 2.0 das redes em rede aos poucos mostram a face como os novos capitalistas, afinados com o discurso altercapitalista da sustentabilidade, do cool e da indignação seletiva. São gestores do comum que precisam abafar a qualquer custo o antagonismo e o dissenso, ao mesmo tempo em que mistificam a exploração dos comuns com discursos enviesadamente radicais e antissistêmicos.

… E O HOMEM CORDIAL VIROU “PÓS-PÓS”
O debate nas redes passou a ser patrulhado pelo mais último jargão: todo dissenso é rancoroso, desatualizado, analógico. O discurso tem que ser “novo” e “pós” e, nessa medida, será “digital”, plugado, pós-rancor. O homem cordial passou a esconder seu autoritarismo soberbo atrás do pensamento binário do “Pós-Pós”.
 Ao expor o processo interno de centralização dos calendários de eventos, o FdE não faz mais do que revelar novamente a relação do capital (social). Discordâncias e dissensos significam inscrição em “listas de queimados”, expressando o comando subjacente à gestão das redes. Ao pautar o Fórum de Mídias Livres com o discurso da convergência, ele e suas redes parceiras não fazem mais (e não permitem que se debata mais) do que uma reprodução e alastramento do modelo deles, que, do ponto de vista do novo negócio, vem dando certo. Vem dando certo porque se concilia bem com o funcionamento do Estado e do mercado, quiçá de modo mais eficiente e sinergético do que os modelos antigos, oligárquicos e familiares.
A apropriação do comum depende que todos não só participem da contra-hegemonia, mas invistam a subjetividade, que sejam subsumidos como subjetividades. Não basta trabalhar, é preciso se integrar 24 horas por dia à “causa”, e com entusiasmo. O discurso do pós-rancor aí se inscreve funcionalmente. Assim, se alguém dissente, só pode estar numa vibe ruim, rancorosa, e isso não é só ruim para o consenso, mas para a própria subjetividade que depende da cooperação engajada e integral em primeiro lugar. O capitalismo cognitivo prescreve mais uma subjetividade do que tarefas propriamente ditas. Daí é preciso que todos cooperem felizes numa lógica de trabalho grátis (free, livre), ou do contrário não se pode extrair a renda do comum. No fundo, talvez, o capitalismo desde sempre seja gestão de redes com o propósito de obter mais-valor e acumular a riqueza. E desde pelo menos o modelo japonês, que a sociologia do trabalho conhece por toyotismo, subsista a ideia de gestão horizontal de redes, um outro nome para o controle dos trabalhadores. Por isso, às vezes, a resistência por dentro do comum pode se dar com a não-colaboração. Através da não-colaboração, a ética hacker se mostra mais potente, hackeando consensos e comitês. A ética hacker nesse sentido é uma prática sabotadora e radical. A colaboração entre os hackers se dá através da não-colaboração com práticas antidemocráticas, cada ato de desestabilização e/ou destruição feito pelos hackers é também um ato de cooperação, entre singularidades que se mantêm enquanto tais: o fazer-se da multidão!

O BRASIL VIVO COMO POLÍTICA DO COMUM
Nos últimos tempos, tem ficado claro como é indispensável produzir o dissenso por dentro dos fóruns, congregações, discursos e práticas do culturalivrismo, midialivrismo e digitalismo. Da mesma maneira que tem ficado claro que a democracia depende das praças Tahrir, Puerta del Sol, Liberty Park e de Pinheirinho. Para que tudo isso não convirja nalguma matriz para um novo capitalismo e não a sua ruptura. É preciso, imediatamente, romper certos consensos, não só sobre a cultura livre, mas também sobre o código aberto, o software livre, a horizontalidade de redes e os creative commons.
Isso pode acontecer, como propomos, dentro de uma perspectiva antagonista de comum. Sair dos cercamentos (enclosures), com efeito, não significa contornar a apropriação do trabalho, mas somente um tipo dela. Tem acontecido uma verdadeira multiplicação das formas rentistas de valorização do capital, que poucos têm se proposto a analisar, mais preocupados em ver a questão como um problema jurídico ou de sustentabilidade profissional.
Embora o software livre conviva bem com marcas consagradas, ele permanece como importante terreno de lutas, que pode e deve ser articulado com as lutas pelo hardware livre e pela banda larga, onde persiste uma gigantesca extração de renda. As lutas não podem ser resumidas às frentes digitalistas, nem a um retorno nostálgico ao 1.0, de tomada dos meios de produção simplesmente objetivos. De qualquer modo, é fundamental repensar as formas de organização, para contestar o núcleo do modo de produção na apropriação do trabalho social. Só assim se pode manter aberto o horizonte de lutas, contra as sínteses conciliadoras. Confrontado pelo ciclo de lutas, o capitalismo se reinventa, e as teorias precisam se colocar à altura das lutas que estão a um passo a frente.
Não há solução dos quebra-cabeças da gestão e da sustentabilidade, a não ser em lutas e políticas públicas que assumam as dimensões biopolíticas da produção do comum. Está em questão o reconhecimento das dimensões produtivas da vida e da diferença como condição da geração da própria vida. Enfim, não se trata de organizar um show, ou um festival, ou um projeto, mas uma política viva, permanente, da cultura do trabalho, uma política do Brasil vivo. A política dos Pontos de Cultura, aliando dinâmicas de redes e formas transversais com uma base material de renda e liberdade, já é um esboço dessa saída potente à crise, contra todas as tentativas de reestruturação do altercapitalismo ou capitalismo 2.0. A política dos Pontos afirma experiências do comum, tão inovadoras e potentes, ao intensificar a produção desejante e os processos de auto-valorização e autonomia e, assim, abrir todos os mercados e marcas à multidão de diferenças e à proliferação de lutas sociais que é o comunismo mesmo, aqui e agora.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Pinheirinho, Cracolândia e USP: em vez de política, polícia!


Raquel Rolnik - 02/02/2012
Domingo, 22 de janeiro de 2012, 6h da manhã, São José dos Campos (SP). Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir — já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta feira – os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação  dramaticamente violenta  que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos.
Nos últimos 8 anos, os moradores da ocupação lutam pela sua permanência na área. Ao longo desse tempo, eles buscaram firmar acordos com instâncias governamentais para que fosse promovida a regularização fundiária da comunidade, contando para isto com o fato de que o terreno tem uma dívida milionária de IPTU com a prefeitura. O terreno pertence à massa falida da empresa Selecta, cujo proprietário é o especulador financeiro Naji Nahas, já investigado e temporariamente preso pela Polícia Federal na operação Satiagraha. No fim da semana, várias foram as idas e vindas judiciais favoráveis e contrárias à reintegração, assim como as tratativas entre governo federal, prefeitura, governo de Estado e parlamentares para encontrar uma saída pacífica para o conflito.Com o processo de negociação em curso e com posicionamentos contraditórios da Justiça, o governo do Estado decide armar uma operação de guerra para encerrar o assunto.
3 de janeiro de 2012, região da Luz,  centro de São Paulo. A Polícia da Militar inicia uma ação de "limpeza" na região denominada pela prefeitura como Cracolândia. Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da região foram presos pela polícia  com uso da cavalaria, spray de pimenta e muita truculência. Em seguida, mais de trinta prédios foram lacrados e alguns demolidos. Esta região é objeto de um projeto de "revitalização" por parte da prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la "limpinha" para a iniciativa privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança no local. Moradores dos imóveis lacrados foram intimados a deixar a área mesmo sem ter para onde ir. Comerciantes que atuam no maior polo de eletroeletrônicos da América Latina, a Santa Efigênia , assim como os moradores que há décadas vivem ali, vêm tentando, desde 2010, bloquear a implantação deste projeto, já que este desconsidera absolutamente suas demandas.
8 de novembro de 2011, 05h10 da manhã, Cidade Universitária, São Paulo. Um policial aponta a arma para uma estudante de braços levantados, a tropa de choque entra no prédio e arromba portas (mesmo depois de a polícia já estar lá dentro), sem deixar ninguém mais entrar (nem a imprensa, diga-se de passagem), nem sair, tudo com muita truculência. Este foi o início do processo de desocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, ocupada por estudantes em protesto à presença da PM no Campus. Os estudantes são surpreendidos por um cerco formado pela tropa de choque e cavalaria, totalizando mais de 300 integrantes da Polícia Militar. Depois de horas de ação violenta, são retirados do prédio e levados presos mais de 73 estudantes. Camburão e helicópteros acompanham a ação.
O que estes três episódios recentes e lamentáveis têm em comum?
Os três eventos envolvem conflitos na gestão e ocupação do território. Os três são situações complexas, que demandariam um conjunto de políticas de curto, médio e longo prazo para serem enfrentados. Os três requerem um esforço enorme de mediação e negociação.
 Entretanto, qual é a resposta para esta complexidade conflituosa? A violência, a supressão do diálogo, o acirramento do conflito.
Alguém poderia dizer — mas por quê os ocupantes do Pinheirinho resistiram? Por que não saíram imediatamente, evitando os feridos e as feridas da confrontação?
Porque sabem que, para quem foi "desocupado" ou" lacrado" nestas e outras reintegrações e "limpezas", sobra a condição de sem-teto. Ou seja, para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muitos menos as razões que levaram aquelas pessoas a estar lá naquela condição e seu enfrentamento e resolução. "Resolver" a questão é simplesmente fazer desaparecer o "problema" da paisagem.
Mais grave ainda, nestas situações a suposta "ilegalidade" ( ocupação de terra/uso de drogas) é motivo suficiente para promover todo e qualquer  tipo de violação de leis e direitos em nome da ordem, em um retrocesso vergonhoso dos avanços da democracia no país.
* Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Alguns apontamentos para entender certos processos de birutagem do homem contemporâneo e proposições estéticas enlouquecidas

Alguns apontamentos para entender certos processos de birutagem do homem contemporâneo e proposições estéticas enlouquecidas[1]
Eu posso o que pode o pensamento.
(frase francesa, bastante recorrente aos idealistas de todos os tempos.)
            No século XIX, premido por inúmeras dificuldades (em meio a um processo de mudança de mentalidades - que pressupõe o arbítrio, mas não aquele aludido de modo religioso), o homem, estimulado por inúmeras questões, questiona a existência de Deus.
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*         *
            Na chamada belle époque (por volta de 1870 a 1914) passando ao largo da experiência russo soviética - Revolução Russa (1905-1917) e a vitória dos "vermelhos" (bolcheviques), parte do Naturalismo e, também, as vanguardas históricas, como o Futurismo, Cubo-futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo contestam, mais e menos, a forma hegemônica do drama. A mimese é paulatinamente abandonada para, em seu lugar, a diegése (narração) e a performance serem desenvolvidas. Tais expedientes reaparecem por necessidades de novas relações  serem buscadas.
            A perda do caráter estético pelo "império do simulacro", como se referiam alguns simbolistas, contraposta pela irreverência paródico-debochado - de modos mais e menos controlados - convulsiona todos os parâmetros estéticos canônicos. Tendo em vista os processos de dissolvência por que passava o mundo, o teatro, por intermédio das vanguardas, reteatraliza-se e volta a ser teatro, debochado, performático, assume-se representação, provocação, choque. Em muitos casos, a destruição da quarta parede vem assumida e metateatralizada; por conta de os velhos cânones do teatro não darem mais conta sequer de inexpugnáveis e abissais processos de tantos duplos do homem.
            Entre Karl Marx, Arthur Schopenhauer e Augusto Comte, muitos serão os duplos "colados ao homem"; a partir destes - e cujos objetivos e concepções são os mais diferenciados, outros tantos, apologistas do apocalipse contemporâneo surgem: Heidegger, Sartre, Camus, Barthes... O homem cindido por guerras - revoluções, levantes, niilismos, spleens de diferentes naturezas, mesmo nas mais numéricas fileiras - vaga sozinho, absolutamente desesperançado, impotente. Entre Atlas e Prometeu, Sísifo preenche as lacunas de tantas paisagens inóspitas e catastróficas, na aparência e na realidade devastadas.
            Múltiplos males estares da civilização.
            Drummond no épico Tempo de partido insiste que vivemos em um tempo de homens partidos, já Fernando Pessoa, atravessado por Álvaro de Campos, acidamente afirma: "[...] conheceram-me logo por quem não era, não desmenti e perdi-me."
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            A arte do século XIX, dividida genericamente entre certa arte social (social art) e arte pela arte (l'art por l'art) cria inúmeras trincheiras para marcar, feito machos no cio, territórios, fatias de espaço. Novas tipologias, novas topografias... O palco redimensiona-se. Manifestos aparecem antes de as obras surgirem. Desde Victor Hugo, passando por Zola, as obras artísticas apresentam seu a que viemos. Marcam seus terrenos por onde as trocas simbólicas devem acontecer.
            Invadida literalmente a "cidade luz" pelos nazistas, Jean-Paul Sartre, em 1943, tem publicada sua obra O ser e o nada. Homens nadificados e em estado de suspensão, desesperançados das razões de ser. A liberdade de um concerne à de todos. Surge, ainda que sem manifestos, interesses comuns, aproximações de seus artistas, o teatro dito da absurdidade (tomando de empréstimo conceito da obra de Albert Camus), como manifestação sufocante, catastrófica, de memória traumática. Daí, a estupidificação descompromissada do Dadaísmo, em sua apologia de negação a tudo: redimensiona-se; apologias ir refreadas ao onírico (dogmatizado por Breton) buscado pelos mais heterodoxos expedientes; aliada à consciência arquetípica do "nada a fazer" resulta em sua superconsciência: a vida e a arte negadas em processos vitais precisam ser (re)ritualizadas em grandes coletivos e grandes cerimoniais improvisacionais e psicodramáticos. Dessa necessidade surge, em 1960, no Café de la Paix (na Praça de l' Ópera, em Paris), para os iniciados ou para aqueles que quisessem iniciar-se, o, então, teatro pânico.
            Importante não esquecer que desde Büchner - e as questões da marionetização, do grotesco e do patetismo das figuras do último romantismo - a obra perde o caráter crível para tornar-se pesadelo.
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            Originalmente, a partir de um grupo denominado Burlesque (juntando o burlesco e o gongórico[2], os já multiartistas e primeiros arautos da tendência: Fernando Arrabal, espanhol (1932), o chileno Alejandro Jodorowisky (1930), e o francês Roland Topor (1938), depois de tertúlias amistosas e grande clima de camaradagem: preconizam uma espécie de caráter endêmico (entre iguais, literalmente). Em 1962, trocam o nome Burlesque por Pânico, por conta também do conhecimento e de certa adesão aos princípios do movimento criado em 1945, denominado Postiço (alusão a pós tudo). No movimento havia a crença, por exemplo, que uma revista deveria "morrer" sempre no número 1. Visualmente, os pressupostos vão de Bosch a Matisse, tomando assento em Duchamps. Em literatura, de Góngora a Strindberg, tomando assento em Calderón, Kafka e Poe.
            A raiz do nome encontra-se a palavra grega pan, referindo-se a tudo e à totalidade. Retomando o conceito de "tudo ao mesmo tempo agora", a ação, de recorrência mítica, ritual e psicodramática pressupõe o trânsito com frenesis entusiasmados ou irrisões anímicas: ser absoluto na efemeridade do ir repetível, busca no efêmero coletivo - na comunidade ritualístico-provisória - estados de criação. De modo, absolutamente redutor, "os pânicos" buscavam, a partir de uma obra existente, mas não partiturizada (fechada), "tirar o teatro do teatro". O efêmero resultante disso seria o cerimonial pânico, que deveria ser desenvolvido em terrenos baldios, bosques. Assim como as performances futuristas, cubo-futuristas, dadaístas/surrealistas, tais cerimoniais chamavam-se velada (do espanhol srão, sarau), próximo das soirées e dos happenings.
            De certa forma, há uma aproximação ao dadaísmo, mas de modo diferente, digamos tolerante e conciliador. As proposições destrucionistas deveriam ocorrer apenas quando o ser do cerimonial psicodramático assim o exigisse. Teatro, portanto, livre de tantas outras linguagens: no rito cerimonial, a necessidade da não personagem, mas a persona - nada poderia ser decorado: falas ou gesto, com abandono do figurativo e do abstrato. Na festa, a busca da euforia na manifestação concreta (espécie de object trouvé, de Marcel Duchamp; do du frottage, de Marcel Janco; do teatro peste de Antonin Artaud...) Nesses efêmeros, rigorosamente antiacademicistas, deveria existir a explosão de todas as rebeldias reprimidas.
            A partir de 1968, vários dos conceitos do teatro pânico migram para o teatro guerrilha (explicitação de manifestações de enfrentamento, com caráter rigorosamente ligado à contracultura).
            De lá para cá, a chamada espetacularização (aquela aludida por Guy Debord) só fez aumentar no ainda "império do simulacro", cujas tintas tingidas pela antemanhã deixa apenas antever o "império da mercadoria", como uma máquina que tende a transformar inocentes, alienados, aqueles que sempre pedem para deixar para lá... em blocos de solitários e manipulados sujeitos, coisificados pelo capital avassalador.
            Que estética se deve (é necessária) abraçar em momentos como este?


[1] Por Alexandre Mate, professor do Instituto de Artes da Unesp. O texto, com pouquíssimas modificações, serviu de base para discussão da obra O Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal a pedido do grupo Kaos de Teatro, em evento apresentado no SESC Santana, em 2010.
[2] Alusão ao poeta dos séculos XVI e XVII, Luís de Góngora y Argote, como excesso de metáforas, antíteses e inversões, amalgamando, ainda, Goya e Valle-Inclán.