Luiz Carlos Checchia
Não há dúvidas de que
vivemos um daqueles momentos extraordinários de grandes mudanças políticas,
econômicas e culturais em larga escala global. Ser extraordinário não significa
que se trata de um momento de avanços, mas, como é o nosso caso, pode ser um período
de gritantes e profundos retrocessos, cujas consequências podem ser duradouras
e devastadoras para as próximas gerações. Portanto, exige-nos esforços para
compreendê-lo e revertê-lo. Lamentavelmente, o mal-estar que essa situação
provoca faz com que muitos de nós se lancem corajosamente nesse empreendimento
de compreensão, porém, com poucos cuidados, resulta daí, pesquisas sinceras mas
superficiais. Prestando todos os respeitos merecidos a qualquer um que tente
pesquisar neste cenário, tentaremos aqui oferecer algumas considerações
iniciais sobre um conjunto de ideologias que nos parecem ser fundamentais para
compreender o momento atual: tratam-se do Destino Manifesto e a Tese
da Fronteira, ambas desenvolvidas por pensadores estadunidenses e da teoria
do Espaço Vital, desenvolvida por um alemão que a concebeu influenciado
pela materialização das duas primeiras, e que as conheceu quando de sua visita
aos Estados Unidos da América, na década de 1870. Essas ideologias se
amalgamaram e lançaram as bases para novas ideologias determinantes para a
conformação - ainda que por caminhos tortuosos e descontinuados - de
fundamentais experiências históricas de cunho autoritário do século XX e agora
do XXI, dentre elas, o fascismo. Sobretudo, para o nosso interesse neste
ensaio, destacamos que tratam-se das ideologias que animam atualmente as
diversas expressões da extrema-direita brasileira, que podemos chamar
genericamente de bolsonarista. O bolsonarismo é formado por pessoas comuns e
lideranças políticas e religiosas que se identificam como
conservadores-liberais e que pregam a livre-iniciativa do mercado, o
individualismo, os valores cristãos, o livre porte de armas, a luta contra
comunistas, feministas e outras causas que teriam como estratégia
revolucionária a corrupção do modelo familiar tradicional. Ademais, outro fator
distintivo do bolsonarismo é o comportamento de massa em alto grau,
graças à forte presença das redes sociais como meio de comunicação entre a sede
do bolsonarismo e o seu público.
Tratam-se de ideologias
que nasceram em um contexto muito próprio da história estadunidense: o longo
processo de revolução burguesa naquele país e que compreendeu um conjunto de
eventos desde a luta pela independência do jugo absolutista inglês, passa pela
conquista continental (que por sua vez envolve conflitos armados, anexações e
extermínio das comunidades indígenas) e a guerra civil entre o norte
industrializado e o sul rural escravocrata. Ao completar esse intenso e longo
processo, os EUA se abriram para as conquistas imperialistas, iniciando o
primeiro conflito interimperialista, a Guerra Hispano-americana, em 1898. Desde
então, a política externa estadunidense tem sido o contínuo processo de
realização de seus interesses econômicos por meio de guerras diretas e híbridas,
iniciativas de “smart power”, influências políticas e
econômicas, intervenções militares e golpes de Estado. Mas esse desenrolar
histórico não seria possível se seu povo não fosse convencido da necessidade de
se envolver em tantos conflitos; realizar e atualizar esse convencimento é o
papel da ideologia na história dos Estados Unidos da América. A sua construção
como uma “comunidade imaginada” exigiu a legitimação de violentos processos de
conquistas e extermínios por meio de narrativas que dessem conta tanto de
promover o apagamento desses conflitos quanto, ao mesmo tempo, recriá-los em
termos de heroicos mitos fundantes (ANDERSON, 2019). E isso é feito desde o
século XIX, tanto pela força da imprensa e da literatura, quanto nos sermões
nas igrejas e discursos de políticos, bem como nos filmes de “velho oeste” e
séries para a televisão.
O fato é que o século
XIX é o período em que surgem as raízes, os troncos e os frutos da ideologia
estadunidense que informa ainda hoje a mentalidade daquela população
convencendo-os de que são, ao fim e ao cabo, a referência civilizacional a ser
seguida pelas demais nações do mundo. O convencimento se estende, também, a
muitas pessoas ao redor do planeta, boa parte delas formadoras de opinião, que
veem naquela nação o farol da humanidade, sem perceberem que suas nações são
vítimas do imperialismo e do colonialismo estadunidense.
Assim,
este pequeno ensaio visa apresentar as três ideologias que surgem naquele
período e que moldaram não apenas as feições territoriais e políticas daquele
país, mas também abriram caminhos para que, a partir do final da Segunda Guerra
Mundial, os Estados Unidos da América se impusessem como juiz, júri e polícia
do mundo moderno (LUKACS, 2006). Também é de nosso interesse provocar debates
a respeito dessa temática e inspirar novos e renovados estudos sobre as
ideologias surgidas nos Estados Unidos da América e como elas se mantêm
influenciando tantas pessoas ao redor do planeta. Acreditamos ser fundamental
entender as matrizes ideológicas que animam o bolsonarismo, página de nossa
história que precisa ser superada.
O Destino Manifesto
Logo após a contagem
de votos encerrar as eleições de 2020 à presidência dos Estados Unidos da
América, o então presidente eleito, Joe Biden, fez o seu discurso de vitória.
Em pouco mais de quatorze minutos de fala, Biden falou sobre conciliação e cura
da sociedade política, recitou versos de um hino religioso para abordar a fé
que sustenta o seu país, reafirmou a “missão” dos EUA como farol do mundo e
concluiu com a frase “e que deus proteja nossas tropas”. No quase quarto de
hora em que discursou como presidente eleito, sem fazer qualquer menção direta,
Biden reafirmou uma das maiores ideologias de consolidação dos EUA, o Destino
Manifesto.
Uma das mais bem acabadas
sínteses do que significa o Destino Manifesto é a pintura em estilo
clássico American Progress, pintada
por John Gast, em 1872. Embora seja um trabalho de pequenas dimensões, pouco
mais de 16 por 41 centímetros, é repleto de significados e explicações sobre a
doutrina do Destino Manifesto. Na imagem pintada vê-se pairando no ar a
musa Columbia, uma representação da jovem nação dos EUA. Sua mão esquerda
segura um livro e pela ponta dos dedos da direita traz o fio do telégrafo.
Abaixo dela vemos alguns colonos já assentados em suas propriedades trabalhando
a terra em família; em outro ponto, vemos pioneiros avançando em suas caravanas
seguidos por diligências e estas pelos trens cujas estradas de ferro ainda
estão sendo instaladas, assim como estão sendo instalados os postes que
carregam os fios telegráficos que Columbia carrega delicadamente. Todo esse
movimento tem um único sentido, da costa leste dos EUA, já constituída com suas
grandes cidades e portos que se conectam com o Velho Mundo, para o oeste ainda
bravio e para onde fogem índios e búfalos assustados com o progresso imparável
do povo dos Estados Unidos da América. Essa representação artística pintada por
Gast traduz em uma imagem a crença de uma significativa parte dos
estadunidenses (dentre eles políticos, jornalistas, publicistas e outros
sujeitos de grande influência) de que os Estados Unidos da América eram
predestinados pela vontade divina a se tornarem um farol para o mundo. Para
isso, deveriam expandir-se a ponto de conquistar todo o continente americano, o
que significava povoar toda porção oeste de seu território, ligando a costa
leste – onde começou a colonização inglesa e se localizavam as históricas treze
colônias – até a costa do oceano pacífico. A crença dessa missão divina amparava-se
na certeza de que os EUA formavam uma nação com uma história particular,
radicalmente distinta das nações do velho continente, iniciada na luta
revolucionária pela liberdade do jugo colonial do absolutismo do rei inglês. A
particularidade do povo estadunidense se expressava tanto em sua virtude quanto
na solidez de suas instituições. Ou seja, a doutrina do Destino Manifesto
pode ser resumida como a missão atribuída por deus aos Estados Unidos da
América para resgatar e conduzir os povos.
Por volta do início
da década de 1840 a ideia já circulava intensamente entre os entusiastas do
conflito contra o México, mas foi em meados de 1845 que foi organizada como
doutrina em um editorial não assinado no The Democratic Review. Poucas
semanas depois, um artigo em termos quase semelhantes foi publicado no New
York Morning News. Como John O'Sullivan era editor de ambos os jornais e
ardoroso defensor da doutrina, acredita-se que foi ele o autor das duas
publicações. Os textos teciam veementes críticas aos opositores do processo de
anexação do Texas e exortava a população a unir-se em torno da materialização
da predestinação dos Estados Unidos da América, conclamando o “[...] cumprimento de nosso
destino manifesto de ultrapassar o continente atribuído pela Providência para o
livre desenvolvimento de nossos milhões que se multiplicam anualmente”.
O New
York Morning News voltou a conclamar a população em torno da doutrina do
Destino Manifesto em dezembro daquele mesmo ano quando da contenda com a
Grã-Bretanha em torno do território do Oregon então em disputa entre ambas
nações.
A
doutrina do Destino Manifesto não surge ao acaso, faz parte de uma
elaboração já em curso desde, pelo menos, outra formulação ideológica
estadunidense, a doutrina Monroe. Discursando para o Congresso dos EUA em 2 de
dezembro de 1823, o presidente James Monroe mandou um severo recado às potências
coloniais europeias, alertando-as a não voltarem à carga em seus interesses
coloniais sobre as nações americanas recém emancipadas ou em processo de
emancipação colonial:
Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência
que assumiram e mantêm, não devem, doravante, ser considerados sujeitos de
colonização por quaisquer potências europeias (MONROE, 1823).
Na
ocasião, afirmou o presidente dos Estados Unidos da América que o Novo Mundo e
o Velho Mundo formavam duas distintas experiências e que uma não deveria
intervir na área de influência política e econômica da outra. Algo que se
sustentou apenas até 1898, quando os EUA entraram em guerra contra a Espanha
pelas suas colônias iniciando uma longa era em que o
Destino Manifesto se espraia pelo mundo e ainda hoje avança contra os povos do
mundo (BANDEIRA, 2016).
O Mito da Fronteira
Frederick
Jackson Turner foi um influente historiador estadunidense, nascido em 1861 e
morto em 1932. Considerado o fundador da moderna historiografia estadunidense
foi responsável pela formação de uma grande e influente geração de
historiadores. Em 1893 publicou o artigo O Significado da Fronteira na
História Americana, com o qual apresentou a Tese da Fronteira
que defendia que a conquista do oeste formou um novo tipo humano, forjado na
dureza da luta contra a natureza selvagem e a luta contra os povos indígenas
por seus territórios. Em outros termos, a conquista da chamada terra livre.
Esse novo tipo se caracterizava pelo individualismo, pelo egoísmo, operava
centrado em núcleo familiar e organizava-se com outros como ele em pequenas
comunidades, tendo à frente a floresta a ser conquistada e às costas o leste
estadunidense, onde estavam os centros urbanos com forte influência europeia,
amaneirados, por vezes mesmo rebuscados. A costa leste seria, assim, uma
fronteira sem mais possibilidades, fechada pelo Atlântico e, depois dele, a velha
Europa. Mas o oeste representava um manancial de oportunidades que exigia dos
que aceitavam o desafio a força dos músculos e de caráter, a retidão, a
disciplina e o vigor para superar as intempéries. Assim, a expansão dos EUA
rumo ao oeste forjou esse novo tipo humano que, por sua vez, animou um tipo
novo de sociabilidade, excepcional, diferente das demais sociedades sejam do
Novo ou do Velho Mundos.
Por trás das instituições, por trás das formas e modificações
constitucionais, estão as forças vitais que dão vida a esses órgãos e os moldam
para atender às mudanças nas condições. A peculiaridade das instituições
americanas é o fato de terem sido compelidas a se adaptar às mudanças de um
povo em expansão – às mudanças envolvidas na travessia de um continente, na
conquista de um deserto e no desenvolvimento em cada área desse progresso, das
condições econômicas e políticas primitivas da fronteira com a complexidade da
vida na cidade (TURNER, 2010, p. 02).
O
cidadão estadunidense é fruto, portanto, de uma síntese entre o que de melhor
criou a Europa mas que foi temperada pela dureza selvagem do continente a ser
conquistado e domado. Em seus termos:
A fronteira é a linha de americanização mais rápida e eficaz. A selva
domina o colono. É um europeu em roupas, indústrias, ferramentas, modos de
viagem e pensamento. Ela o tira do vagão e o coloca na canoa de bétula. Ele
tira as vestes da civilização e o veste com a camisa de caça e o mocassim. Isso
o coloca na cabana de toras do Cherokee e do Iroquois e mantém uma paliçada
indiana ao seu redor. Em pouco tempo, ele começou a plantar milho indiano e
arar com uma vara afiada, ele grita o grito de guerra e tira o couro cabeludo à
maneira indiana ortodoxa. Em suma, na fronteira o ambiente é inicialmente forte
demais para o homem. Ele deve aceitar as condições que ela fornece, ou
perecerá, e então ele se acomoda nas clareiras indígenas e segue as trilhas
indígenas. Aos poucos ele transforma o sertão, mas o resultado não é a velha
Europa, não simplesmente o desenvolvimento de germes germânicos, assim como o
primeiro fenômeno não foi um caso de reversão ao marco germânico. O fato é que
aqui está um produto novo que é americano (TURNER, 2010, p. 03).
Essa
síntese entre o legado civilizacional europeu e os esforços exigidos para a
conquista da terra livre criou também um novo espírito político, uma
democracia liberal em sentido pleno, composta por homens e mulheres fortes,
livres, forjados na labuta cotidiana. Sujeitos mais taciturnos, menos
intelectualizados, menos filosóficos, mas com um caráter mais firme, mais
operosos, mais responsáveis. Para ilustrar essa condição, Turner cita a
declaração de um congressista que declarou:
Eles logo se
tornam políticos que trabalham, e a diferença, senhor, entre um político
falante e um político trabalhador é imensa. O Velho Domínio há muito é
celebrado por produzir grandes oradores; os metafísicos mais hábeis em
política; homens que podem rachar os cabelos em todas as questões obscuras de
economia política. Mas em casa, ou quando voltam do Congresso, têm negros para
abaná-los enquanto dormem. Mas um estadista da Pensilvânia, de Nova York, de
Ohio ou da Virgínia Ocidental, embora muito inferior em lógica, metafísica e
retórica em relação a um velho estadista da Virgínia, tem esta vantagem, que
quando ele volta para casa ele tira o casaco e segura o arado. Isso dá a ele
osso e músculo, senhor, e preserva seus princípios republicanos puros e não
contaminados (TURNER, 2010, p.
13).
Para
Turner, portanto, a fronteira é o espaço e a experiência que forja o cidadão
estadunidense e sua sociabilidade única, distanciando-o das velhas tradições
europeias na medida em que avança rumo ao Pacífico: “O verdadeiro ponto de vista na história desta nação não é a costa
atlântica, é o Grande Oeste [...] a fronteira é a borda externa da onda – o ponto
de encontro entre a selvageria e a civilização” (TURNER, 2010, p. 03).
Subjaz à formação territorial dos Estados Unidos da América seja por meio da
guerra, da diplomacia e do extermínio dos povos originários a experiência de
solitários pioneiros que desbravaram as terras e formaram a nação metro a
metro, avançando metro a metro sobre a terra livre.
A Tese
da Fronteira de Turner mitifica a experiência real e concreta dos pioneiros
estadunidenses entre os séculos XVIII e XIX porque centra a formação da
sociabilidade dos EUA sem considerar diversos outros processos de suma
importância na história, como a Guerra Civil e a escravidão. Ainda assim, a Tese
da Fronteira foi e ainda é muito influente na cultura daquela nação, não
apenas como História, mas também servindo de tema à produção cultural de massa,
destacando-se dentre elas o cinema. Não apenas os clássicos filmes ambientados
no “velho oeste” trazem às telas colonos e cowboys corajosos,
impetuosos, moralistas e desbravadores, enfrentando hordas de indígenas,
domesticando cavalos selvagem e avançando rumo ao oeste distante, mas também em
filmes como Guerra nas Estrelas, que coloca em cena colonos desbravando o
espaço sideral em busca de um planeta que possa ser seu novo lar. O cinema
estadunidense tem colonos, heróis solitários, núcleos familiares e valores
comunitários atravessando suas produções em diversos gêneros: a comédia, o
drama, a tragédia, a ficção científica e o romance e servem de veículos para
recontar o velho mito da fronteira, o mito fundador do povo americano.
O Espaço Vital
Embora
criado por um alemão, o geógrafo e etnólogo Friedrich Ratzel, o conceito de Espaço
Vital, também muito conhecido no Brasil pelo seu termo original – lebensraum
– é totalmente influenciado pela doutrina do Destino Manifesto e pela tese
da fronteira. Ratzel visitou os Estados Unidos da América em 1873, ocasião
em que conheceu e se impressionou com ambas formulações e seus resultados
práticos tanto no que concerne à mobilização da população quanto nas conquistas
territoriais que propiciou.
Ratzel
foi responsável pelo desenvolvimento da geografia política e a sai ideia
de Espaço Vital foi determinante para entender os processos de
desenvolvimento político das populações humanas e suas conexões com o espaço
geográfico que ocupam. Nessa perspectiva, a luta por territórios são, antes de
tudo, luta por espaços vitais, e assim, torna-se legítima a conquista de
tais espaços pelos povos mais preparados para o fazê-lo, mesmo que isso
signifique tomá-los de povos tido como “inferiores”. Em seus próprios termos:
Semelhantes à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as
lutas dos povos dão-se quase sempre pelo mesmo objetivo. Na história moderna a
recompensa pela vitória sempre foi, ou tem pretendido ser, unir proveito
territorial (RATZEL apud
WERNECK, 1976, p. 50).
A
doutrina do Destino manifesto e a Tese da Fronteira foram
determinantes para a formação ideológica que animou os estadunidenses em seu
processo de colonização das que eram por eles chamadas de terras livres,
mas que de forma alguma eram desocupadas, levando à mobilização de suas forças
diplomáticas, econômicas e militares. Já o conceito de lebensraum serviu
como ideologia que mobilizou as reivindicações coloniais alemãs na virada dos
séculos XIX para XX. Poucas décadas depois de formulada, foi acolhido pelos
nazistas, que o consideraram fundamental para o desenvolvimento do Reich de Mil
Anos. Primeiramente, a vastidão territorial garantiria a segurança e a
liberdade, como Hitler escreveu em seu livro Minha Luta, principal referência ideológica nazista.
A garantia da segurança externa de um povo depende da extensão de seu
"habitat". Quanto maior for o espaço de que um povo disponha, tanto
maior é sua proteção natural; pois sempre foram conseguidas vitórias militares
mais rápidas e, por isso mesmo, mais fáceis e especialmente mais eficientes e
mais completas contra povos apertados em pequenas superfícies de terra do que
contra Estados de vasta extensão territorial. [...] Na vastidão
territorial, em si mesma, já existe uma base para a fácil conservação da
liberdade e da independência de um povo, enquanto que, ao contrário, a pequenez
territorial como que desafia a conquista (HITLER, 2000, p. 417).
Mas
para Hitler, não se trata apenas de garantir segurança e liberdade, mas de
assegurar campos para assentamentos de colonos que formassem uma ampla e unida
nação.
De fato, não há solução fora da conquista de território para
colonização que aumente a extensão territorial da mãe pátria e com isso não só
mantenha os colonizadores em contato íntimo com o seu país de origem como
também assegure as vantagens de uma unidade perfeita (HITLER, 2000, p.
1942).
Os
nazistas combinaram a conquista do que consideravam seu lebensraum com a
busca pela unidade do povo germânico, por isso iniciaram seus movimentos
expansionistas com a anexação da Áustria, em 1938, terra natal de Hitler, com a
ocupação do leste europeu e da Europa central e, por fim, voltando-se ao imenso
território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde almejavam criar
o maior campo produtor de commodities necessários para a manutenção do
seu Reich por meio da escravização e aniquilação dos povos daquelas repúblicas
e o assentamento de colonos germânicos.
Embora
o parágrafo acima parece se afastar do foco deste ensaio – que é a construção
de ideologias formadas nos EUA – cremos ser fundamental perceber como que o
fascismo alemão se formou também sob a influência do destino manifesto e
da tese da fronteira. Um dos principais ideólogos do nazismo, Alfred
Rosenberg, era significativamente influenciado pela política racial
estadunidense, inspirando-se nela para compor a política racial do III Reich
(WHITMAN, 2017, p. 28); e quando do julgamento de Nuremberg Göring foi
questionado como os nazistas tiveram a ideia de unificar a chefia de governo e
a chefia de Estado em uma só pessoa, o líder da Luftwaffe respondeu: “dos
Estados Unidos da América”.
Podemos
afirmar, portanto, que há estreitas e íntimas relações entre as ideologias que
animam o colonialismo estadunidense e o colonialismo nazista. Mas essa
afirmação precisa ser observada sem simplismos e reducionismos: tais conexões
não são diretas muito menos mecânicas, ainda que sejam reais e identificáveis
(KAKEL, 2011). São expressões ideológicas animadas por determinações do
desenvolvimento capitalista, sobretudo, do período que compreende os momentos
derradeiros das revoluções burguesas e o ascenso do conservadorismo que emerge
após a Convenção de Viena que coloca um ponto final aos princípios
revolucionários que as animaram. Em outros termos: o desenvolvimento da
burguesia exige vastos territórios e muitos corpos a serem explorados. E um dos
papéis preponderantes das ideologias é dar sentido e significado a esses processos
históricos que sem as ideologias não seriam mais que inexplicáveis experiências
de violência e conquista.
As ideologias, o
conservadorismo estadunidense e a cultura da supremacia WASP
O
conservadorismo é uma corrente de pensamento surgida no Reino Unido, seu
formulador foi Edmund Burke, advogado, político e intelectual irlandês radicado
na Inglaterra que em crítica ao entusiasmo promovido pela Revolução Francesa
escreveu o panfleto Reflexões sobre Revolução na França, em 1790.
Seu manifesto se tornou de imediato algo como os marcos do conservadorismo
moderno (WATKINS, 1966). Burke, apesar de conservador, integrava o parlamento
britânico como deputado eleito pelo partido Whig, de cunho liberal. Sua obra
exerceu decisiva influência nos Estados Unidos, mas o conservadorismo
estadunidense transcende a sua matriz europeia, distinguindo-se dela em muitos
pontos e formando seus próprios contornos (SIGLER, 1972). As ideologias aqui
apresentadas – o Destino Manifesto, bem como os valores plasmados na Tese
da Fronteira e o Espaço Vital –, são os construtos que contribuíram
para a formação desses contornos particulares do conservadorismo estadunidense.
Foram sumamente necessários para animar e legitimar o processo de revolução
burguesa dos Estados Unidos da América, ainda mais porque ela ocorreu de
maneira intensa e formada por distintos eventos de grande dramaticidade: a luta
de libertação colonial contra o absolutismo inglês; a conquista do oeste; a
violenta Guerra da Secessão; o assassinato do presidente Lincoln; e o início do
imperialismo, com o conflito contra a Espanha. Entre os primeiros conflitos
contra as forças inglesas, nas batalhas de Lexington e de Concord, em 1775, até
a vitória contra o absolutismo espanhol, em 10 de dezembro de 1898, são apenas
123 anos recheados de conflitos (inclusive uma guerra civil). Em apenas 123
anos e por meio de contínuo derramamento de sangue, os EUA consolidaram-se
territorialmente, forjaram sua identidade e alcançaram o início do século XX
como uma das nações mais poderosas do mundo.
Além
de dar os contornos do conservadorismo estadunidense, as ideologias aqui
apresentadas também animaram as duas premissas que orientaram sua política
externa entre meados do século XIX e o início do século XX: o isolacionismo
e o unilateralismo (PECEQUILO, 2003). Essas premissas só foram
parcialmente abandonadas no governo de Woodrow Wilson, quando o país deixa sua
condição de neutralidade e embarca seus soldados para lutarem na Primeira
Guerra Mundial, em 6 de abril de 1917. Sua entrada naquele conflito impulsiona
e revigora seu movimento expansionista, mas o isolacionismo e o unilateralismo
não são totalmente abandonados, continuam marcando sua política externa e
atualizando politicamente o Destino Manifesto, os valores da Tese da
Fronteira e a sua luta por Espaço Vital.
Outro
produto cultural desse processo ideológico é a cultura WASP, sigla em inglês
para “branco, anglo-saxão e protestante” (White, Anglo-Saxon and Protestant). A
cultura WASP resulta como a identidade do “estadunidense típico” e anima as
organizações supremacistas e patriarcais que ainda existem no “Estados Unidos
profundo”, sendo a Ku Klux Klan a mais antiga delas (McVEIGH, 2009). Não é à
toa que a maior realização cinematográfica estadunidense ainda é o filme O Nascimento de Uma Nação, de D. W, Griffith, de 1915. O filme, que retrata a reconstrução do
país após a Guerra da Secessão, apresenta a população negra como selvagens,
hostis, fraudadores e lascivos, enquanto a população branca são aqueles que
podem tornar os EUA uma grande nação. Nesta narrativa, os cavaleiros da Ku Klux
Klan são retratados como heróis honrados responsáveis pela defesa da moral e
dos princípios que tornam “grande” os Estados Unidos. O filme, ao retratar a vida de duas famílias, uma do sul e outra do
norte, coloca os valores defendidos pela Klan o grande elo entre as diversas
perspectivas de país: a Klu Klux klan e tudo o que representa são, assim, a
própria alma dos Estados Unidos da América.
Interessa
destacar que a cultura WASP não apenas se mantém, mas também se atualiza. A
atualização mais recente e que tem provocado grande preocupação para parte das
autoridades estadunidenses é o chamado QAnon (WENDLING, 2021; FANJUL, 2021).
Trata-se de uma organização política baseada em narrativas bizarras e
extremistas, que misturam cristianismo, implantes de chip em pessoas,
extraterrestres, organizações de esquerda que fazem pactos satânicos pelo poder
e outras fantasias. Por mais absurdas que possam parecer (e são), no fundo, as
crenças do QAnon reatualizam as crenças supremacistas brancas, patriarcais e de
excepcionalidade do povo estadunidense e da cultura WASP. O número de cidadãos
que acreditam nessas fantasias é de tal magnitude que a colocou sob preocupação
e, ainda, sob investigação por parte do serviço de segurança interna. O QAnon
faz parte de uma nova geração de agrupamentos que se formam já sob o
contexto das redes sociais, meio que tem sido solo fértil para a eclosão de ataques
contra a comunidade LGBTQIA+, negros, latinos, migrantes e outras populações
que não se enquadram à identidade WASP. Recentemente, os EUA enfrentaram um
auge desse movimento com a gestão Donald Trump (McVEIGH; ESTEP, 2019). Apesar
dos grandes esforços da militância do Partido Democrata e de todos os
opositores do governo Trump, a vitória de Joe Biden se deu por uma margem
estreita de votos, o que significa que, após quatro anos de gestão Donald
Trump, quase metade dos eleitores dos Estados Unidos da América ainda se
identificavam com sua visão política (MARS, 2020).
O Bolsonarismo e suas
perigosas conexões
O
bolsonarismo, evidentemente, não criou o racismo ou o machismo e muito menos
criou o fascismo. Mas certamente atualizou-os em uma nova chave. Desde pelo
menos um ano antes das eleições, Bolsonaro entrou em evidência nacional. O
sucesso na popularização do então deputado pelo Rio de Janeiro se fez graças a
uma ampla rede nacional formada por lideranças políticas e religiosas
espalhadas por diversas cidades brasileiras, também contou com vereadores e
deputados estaduais que organizaram as estruturas locais necessárias para
recebê-lo e promover encontros e palanques. Também se beneficiou de polêmicas
participações em programas humorísticos de TV. Toda essa intensa movimentação
fomentou rapidamente um “caldo de cultura” reacionário que trouxe para a luz do
dia e para um quase grau de normalidade toda uma subcultura fascista que se
movia nas sombras e apenas em poucas ocasiões se colocava publicamente. A antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias se notabilizou pela pesquisa
que realizou sobre a atuação na internet de grupos de extrema-direita. Em
2019, ela identificou 334 grupos de extrema-direita, entre fascistas,
supremacistas brancos, nazistas e outros, em atividade e formando ampla e
capilarizada rede de disseminação de ideologias nazi-fascistas. Essa rede
também se articula em ações concretas de grupos e gangues. Esses grupos mantêm
com o bolsonarismo uma conexão antiga, como demonstra o portal UOL em 06
de abril de 2011 – portanto, sete anos antes da eleição de Bolsonaro à
presidência da República, em outubro de 2018 - “Neonazistas ajudam a
convocar "ato cívico" pró-Bolsonaro em São Paulo”. Tratou-se de ato em apoio ao então
deputado Jair Bolsonaro que se via envolvido em polêmica provocada por suas
declarações racistas feitas em um programa de televisão. Se o ato de 2011 pode
parecer algo eventual, a matéria do jornal eletrônico El País de 09 de junho de
2020, escrita pelos jornalistas Gil Alessi e Naira Hofmeister, traz o título: “Sites
neonazistas crescem no Brasil espelhados no discurso de Bolsonaro, aponta ONG”,
e denuncia as atrações mútuas entre tais agrupamentos e o ex presidente da
república. O fato é que tais organizações e os militantes nazifascistas têm
destacado e fulcral papel na ascensão do conservadorismo no país e que culminou
com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Mas a aproximação do
bolsonarismo às organizações de extrema-direita não se limita àquelas de
orientação europeia. Como apontamos acima, há uma corrente do conservadorismo
de feições estadunidenses e é com ela que os adeptos do bolsonarismo mais
interagem e tecem suas mais firmes costuras. Não por outro motivo que estão
intimamente ligados à Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla
em inglês), maior organização conservadora do mundo, criada em 1974, nos EUA.
Em 2019, elementos diretamente ligados ao bolsonarismo, como o deputado Eduardo
Bolsonaro, realizaram o primeiro CPAC-Brasil, que contou com sua segunda edição
em 2021, com presenças de importantes figuras do conservadorismo estadunidense,
como Donald Trump Jr., filho do ex-presidente dos EUA. Também deve-se destacar
a presença no CPAC-Brasil de Jason Miller, assessor e conselheiro de Donald
Trump e criador da rede social Gettr, voltada ao público que se identifica com
as ideologias ultra-conservadoras. Miller, além de participar do CPAC-Brasil,
encontrou-se tanto com o presidente Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado
Eduardo Bolsonaro.
Outro ponto de conexão que deve ser percebido entre as ideologias que
formam o conservadorismo estadunidense e o bolsonarismo é a forma como
vivenciam o cristianismo. Embora o catolicismo tenha sido a religião que
historicamente mais se aproximou das esferas do poder no Brasil e as
influenciou, a ascensão do bolsonarismo está associada à ascensão das
denominações neopentecostais no país. O neopentecostalismo tem uma história
própria no Brasil, muito mais antiga que a do bolsonarismo, mas quando essas
duas forças se encontraram criaram uma íntima associação, uma parceria de
fortalecimento mútuo. O catolicismo tem uma prática política que se constitui
muito mais na influência que exerce sobre os governantes e as classes
dominantes (SILVA JÚNIOR, 2006) ao passo que os neopentecostais optam pela
participação direta no governo, comprometendo publicamente políticos e
candidatos, levando-os aos seus púlpitos e cultos e, mesmo, elegendo pastores
tanto para cargos no executivo quanto no legislativo. O livro The Family, do jornalista Jeff Sharlet,
apresenta com rigoroso detalhamento como grupos religiosos atuam diretamente no
núcleo do poder político e econômico nos Estados Unidos da América, sobretudo,
em tempos recentes, chegando até a era Donald Trump. De maneira semelhante, o jornalista
Andrea Dip publicou em livro a investigação que fez sobre a relação entre
denominações neopentecostais e política no Brasil recente. Em comum, ambas as
reportagens demonstram como as denominações neopentecostais tornaram-se, em
tempos recentes, potentes forças políticas, tanto nos EUA quanto no Brasil, e
estão por trás da inflexão ideológica vivida por ambos os países. Mas ainda é
preciso fazer mais uma importante consideração a respeito: os EUA são uma nação
que nasce eminentemente protestante graças à forte presença de puritanos entre
os seus primeiros colonos. O Brasil, por sua vez, é fruto de uma colonização
católica. No entanto, a ascensão protestante no país, sobretudo as
neopentecostais e baseadas no que ficou genericamente conhecido como “teologia
da prosperidade”, parece ser fruto da influência político-religiosa
estadunidense (SHARLET, 2008). Ainda em comum, o que ambas as reportagens
demonstram é que os grupos políticos-religiosos neopentecostais se baseiam em
valores ultraconservadores, misoginia e patriarcado.
À guisa de conclusão
Vivemos
atualmente um período de grande retrocesso em escala global. As tensões
começaram a se formar no cenário geopolítico a partir da crise de 2008,
levando, entre outras consequências, à ascensão de governantes de
extrema-direita em muitos processos facilmente identificados como fascistas. O
quadro se tornou ainda mais drástico com o advento da pandemia de COVID-19 em
2020, arrastando muitas nações às condições catastróficas, como é o caso da
Índia e do Brasil, mas pela qual passou também o próprio Estados Unidos da
América, com mais de 600 mil vidas perdidas. Mas mesmo aquela nação que pôde
disponibilizar uma grande quantidade de vacinas para sua população amargou a
falta de interesse de seus cidadãos em buscarem a imunização, o que fez com que
99% das mortes de estadunidenses pela doença em 2022, fossem daqueles que se
negaram a vacinar-se. Não é à toa que os EUA viveu surtos de COVID-19 nas
regiões em que o discurso negacionista tem sido mais forte, como no estado do
Arkansas, o mais baixo índice de imunização daquela nação, com apenas um pouco
mais de 30% da população vacinada.
No
Brasil, as tensões entre as classes estão na própria origem de nossa nação e
com o acréscimo de serem atravessadas pelo legado colonialista formado,
entre outros elementos, pelo patriarcalismo e pelo racismo. Todavia, as
recentes crises econômicas e políticas intensificadas pelos políticos de
extrema-direita acirraram tais tensões, levando à ascensão de Bolsonaro ao governo
federal, mesmo com sua agenda fascista avisada e publicizada desde antes de sua
candidatura: suas iniciativas governamentais que combinaram o ultra-liberalismo
com o ultra-conservadorismo não foram absolutamente nenhuma surpresa. E estando
avisadas com antecedência, os mais de 57 milhões de votos que Bolsonaro
conquistou nas eleições de 2018 foram dados por pessoas que concordaram com
seus posicionamentos, alguns mais outros menos, mas todos deram, ao fim e ao
cabo, seus votos a ele. Foram motivados, certamente, por valores e significados
apresentados pelas consignas de campanha bolsonarista que ecoaram junto a mais
da metade da população brasileira. Não é possível apenas considerar que foram
“enganados” por massivas mensagens de WhatsApp: acreditar nisso seria crer que
a população brasileira é por demais ingênua e infantil. Nos parece que as
coisas são muito mais densas e complexas do que isso. Acreditamos que há grandes construções ideológicas que permeiam os mais profundos construtos de nossa cultura
comum e que foram acionadas por setores ultra-conservadores da política
nacional, que ascenderam no bojo das crises política e econômica provocadas
pela atuação de parlamentares interessados pela desestabilização do governo
Dilma Rousseff através da tática que ficou conhecida como “pautas-bombas”
(SANTOS, 2017). Bolsonaro é, tão somente, parte desse movimento, um de seus
agentes que soube aproveitar aquele conflituoso processo e ascender
politicamente por dentro dele, capilarizando sua influência junto a população e
aglutinando apoios de lideranças populares e sociais até alçar a posição de
representante máximo dos anseios ultra-conservadores da sociedade brasileira.
A
influência da ideologia conservadora estadunidense é de tal ordem que nos
invade, ainda, com o culto ao rebaixamento intelectual e a uma espécie de
“praticismo” empreendedor que a molda e que tem sido, nos parece, a ideia-força
que alimentou o discurso governamental de que “a economia não pode parar”,
mesmo quando todas as evidências científicas deixaram claro da importância das
políticas de fechamento para contenção da pandemia de COVID-19 naquele
momento. Não à toa, mesmo um historiador conservador estadunidense de origem
húngara, John Lukacs (2006), escreveu:
Os Estados Unidos “podem se tornar os ditadores do mundo”, um potencial
contra o qual John Quincy Adams advertiu em 1821. Ele advertiu aos estadistas e
o público que mantivessem um limite consciente em suas ambições ideológicas,
políticas e geográficas. De uma maneira geral, o fizeram por muito tempo [...]
Mas chegou a mudança. Os Estados Unidos se tornaram os ditadores de grande
parte do mundo, uma circunstância encorajada por seus próprios ‘conservadores”.
Isso aconteceu com o embrutecimento dos norte-americanos, de suas maneiras e
tradições. Quando presidentes do país agora, incorporaram a farda de
comandante-chefe; quando os aviões de guerra são chamados de “predadores”,
“raptadores”, “falcões negros”, “javalis”; quando a imaginação de milhões de
jovens norte-americanos é inspirada por monstros, dragões, dinossauros, Guerra
nas Estrelas, isto nada mais são que sintomas superficiais de uma ideologia
nacional embasada em um tipo perigosamente superficial de espiritualidade: a
crença de que, naturalmente como ordenado por Deus, os norte-americanos são o
povo escolhido do Universo. Daí sua propensão a pensar que todos os que se
opõem a eles são do mal; são o oposto da América, do bem; um emprego corrompido
dos termos do Velho Testamento, uma surpreendente evidência de um necessário
autoconhecimento (LUKACS, 2006, p. 423).
É
claramente perceptível a correlação entre o conteúdo desse excerto de John
Lukacs e os contrassensos em palavras e atos de boa parte dos adeptos do
bolsonarismo; inclusive os proferidos e praticados pelo próprio Bolsonaro. Sendo
assim, uma das mais importantes tarefas históricas que se colocou para nós é
compreender tais construções ideológicas, suas origens, suas dinâmicas, suas
adaptações e acomodações. E como são acomodadas e atualizadas em nossas
relações cotidianas. Isso passa por percebermos o que há de específico no
desenvolvimento de cada nação e o que há em comum entre elas. Neste quesito,
destacamos que tanto os Estados Unidos da América quanto o Brasil, apesar da
clássica distinção feita em seus processos de colonização, segundo a qual
aquele foi no sentido do povoamento e no nosso de exploração, o fato é que
ambos os países se consolidaram por meio de agressivos processos de colonização
interna, nos quais suas elites utilizaram e utilizam os mais agressivos
aparelhos repressivos de Estado para garantir seus interesses antes da
população em geral.
Nos
parece que a grande aproximação do conservadorismo atualizado estadunidense ao
brasileiro tem logrado êxito porque compartilham, justamente, de experiências
coloniais internas muito semelhantes, ainda que, em termos de relações externas ocupam posições distintas no arranjo global do sistema
capitalista (HORNE, 2010). Por outro lado, não podemos deixar de notar que há
um intenso movimento de ascensão do conservadorismo no mundo, inclusive por
meio de organizações e instituições que promovem e coordenam esse movimento,
como o já mencionado CPAC e suas edições brasileiras. Além do CPAC, há as
diversas entidades (tipo think tank) que mantêm intensa atividade de
formação ideológica conservadora no país, como Instituto Mises, Instituto
Liberal, Instituto Millenium. Também há uma rede
de influenciadores conservadores brasileiros dos quais destacamos Oswaldo
Eustáquio, Caio Coppola, Paulo Figueiredo, Ana Paula Henkel e o que veio antes
de todos, Olavo de Carvalho (falecido em janeiro de 2022), todos os anteriores
possuem milhares e milhares de “seguidores” nas redes sociais, participam
protagonicamente de programas de televisão e rádio e ministram cursos e
atividades de formação política. E enquanto tornam-se cada vez mais populares e
influentes, reivindicam afirmativamente a tradição conservadora oriunda da
história dos Estados Unidos da América. Tradição essa baseada na doutrina do Destino
Manifesto e na Tese da Fronteira, e que terminam por transformar o
Brasil em um imenso Espaço Vital para o imperialismo estadunidense.
Fato
é que o conservadorismo estadunidense, direta e indiretamente tem influenciado
uma significativa parte de nossa sociedade; e é notório o entusiasmo do ex presidente
do Brasil e sua família pelo conservadorismo estadunidense. Todo esse intenso
movimento ultraconservador tem ampliado os riscos às comunidades LGBTQIA+,
negra, indígena, quilombola, das religiões de matriz africana, bem como
militantes de esquerda, ativistas culturais e outros mais que são considerados
“perigosos” ao modelo ideológico de família e sociedade defendido pelo fascismo
bolsonarista. A experiência recente tem demonstrado que o bolsonarismo se
constitui numa inflexão societária preocupante: apesar de todas as centenas de
milhares de mortes por COVID-19 que poderiam ser evitadas, do fracasso
econômico, do aumento da violência de Estado, das tragédias ambientais e
perseguições políticas, o bolsonarismo mantém uma margem de aprovação alta, que
entre os índices de “ótimo”, “bom” e “regular” se encontra, em setembro, em
45%. Corre-se o risco do bolsonarismo ser muito mais duradouro que a presença
de Bolsonaro na presidência da República, assim como o trumpismo se mantém sua
potência política nos Estados Unidos da América, a despeito da vitória de Biden
sobre Donald Trump. Isso porque as forças que animam e sustentam tais
ideologias e governo não estão restritas às pessoas que apoiam e ocupam as
cadeiras de governos. Ocupar um cargo eletivo público tem muito a ver com uma
contingência, um contexto político. Mas ser uma força política constituída é
algo perene, constante, que atravessa os governos. E o bolsonarismo tem servido
de vetor a uma força dessa natureza, com grande penetração popular e que se
consolida. E se consolida sobretudo pela força de sua ideologia, que nos
parece, tem fortes raízes nas crenças de excepcionalismo estadunidense. E essas
ideologias, por sua vez, é formado por meio de experiências históricas que
envolveu o genocídio de povos originários, a escravização, a subalternização de
mulheres e a valorização do homem hiper-masculizado. Por isso, a sociedade que
se ergue sobre tais valores será fechada para a formação de sociedades
democráticas, participativas, plurais e diversas, abertas para o acolhimento de
pessoas e povos migrantes. Debater o bolsonarismo tanto em termos políticos
quanto ideológicos é, acima de tudo, debater projetos de sociedade e
país.
Chegou
o momento, cremos e propomos, em que é preciso que nos debrucemos com seriedade
e profundidade sobre tais problemas e questões. Compreender e superar a atual
situação vivida por nosso país passa, incontornavelmente, por compreender a força
da ideologia que a anima.
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