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sábado, 28 de março de 2009

O Riso Bergsoniano*

Por Adailtom Alves Teixeira - Mestre em Artes e Historiador; ator e diretor teatral

Antes risos que prantos descrever, Sendo certo que rir é próprio do homem. 
François Rabelais 

Bérgson no seu tratado sobre o riso, investiga os processos da comicidade, tendo como objeto de estudo a comédia, a farsa e a arte do bufão. O autor deixa claro que o homem é um animal que ri e que faz rir ao apresentar-se como espetáculo ao outro. Portanto, “não há comicidade fora do que é propriamente humano.” Sendo que o processo do riso dar-se pela mecanização.

O riso é cruel e “destina-se à inteligência pura.” Sendo assim, “o maior inimigo do riso é a emoção.” Para se rir, deve haver distanciamento, não pode haver envolvimento emocional. Ao mesmo tempo, o riso necessita de eco, isto é, necessita de grupo, quanto maior a quantidade de pessoas, maior o riso. A comicidade será desencadeada pela insociabilidade (mecanização) do personagem e a insensibilidade do espectador. Estão dadas as condições de produção do riso.

Mas, por que rimos? Como se produz o riso? Para Bérgson o risível advém de “certa rigidez mecânica onde deveria haver maleabilidade atenta e a flexibilidade viva de uma pessoa.” Essa rigidez pode manifestar-se através de atitudes, gestos e movimentos ou através de uma falha de caráter, um vício etc., ou seja, “sempre que uma pessoa nos dê a impressão de ser uma coisa,” (o mecânico calcado no vivo), sempre que houver um desvio, haverá comicidade. “O personagem cômico é um tipo” e os efeitos que levam ao riso são atingidos de diversas maneiras: a) bola de neve – os acontecimentos vão numa crescente; b) repetição – um mesmo acontecimento pode ocorrer diversas vezes, seja com o mesmo personagem ou com outros; c) inversão – consiste em uma armadilha preparada para outro e o próprio autor da armadilha acaba por cair nela; d) a interferência das séries ou o qüiproquó – “uma situação que apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um simplesmente possível: o que os atores lhe atribuem, e o outro real: o que o público lhe dá.”

E para que nos serve o riso? Segundo Bérgson o riso tem uma função, uma significação social, que é castigar os costumes. O riso “obriga-nos a cuidar imediatamente de parecer o que deveríamos ser, o que um dia acabaremos por ser verdadeiramente. O riso tem por função precisamente reprimir as tendências separatistas. O seu papel é corrigir a rigidez convertendo-a em maleabilidade, reajustar cada um a todos, enfim, abrandar as angulosidades.” Sendo assim, “nada desarma como o riso” – por isso mesmo é tão perseguido nos períodos ditatoriais. Por fim, fica claro que é através do riso que nos revelamos e demonstramos quão humano somos.

FONTE E CITAÇÕES:
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

 *Publicado originalmente em A Gargalhada, nº 02, Maio/Junho de 2006, p. 02 e revisado em 28/03/2009, para publicação nesse blog.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Agora, nós vamos invadir sua praça!

Por Jussara Trindade e Licko Turle - Pesquisadores teatrais, organizadores do livro: Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel. 

Este texto é sobre a Mostra Estadual de Rua realizada dentro da Qüinquagésima Edição do FESTA SANTOS que aconteceu em setembro passado. É um pouco longo, mas a leitura vale a pena. Ou, então, leia aos pedaços, pois ele está dividido em partes onde tentamos comentar as apresentações de alguns grupos que dela participaram.
Na década de 80, o grupo pop rock paulista ULTRAJE A RIGOR projetou-se no mercado fonográfico brasileiro com um grande sucesso: AGORA, NÓS VAMOS INVADIR SUA PRAIA! Um grito de guerra bem-humorado que falava sobre o tema do suposto ‘bairrismo’ cultivado entre cariocas e paulistanos e brincava com a idéia de que a cidade do Rio de Janeiro seria melhor que São Paulo para se viver, por se localizar no litoral. Lembro que a cultura do vídeo-clip e dos DJs estava chegando ao Brasil e o filme desta canção mostrava os integrantes da banda paulistana desembarcando na praia de Copacabana com farnéis cheios de comida típica de uma farofada: frango, farofa, frutas e outras coisas que eles iam espalhando à sua volta; depois corriam para a água, jogando areia nos outros banhistas e causando grande confusão no local. Ou seja, chegavam de assalto à orla, tomando posse da praia e deixando os cariocas estupefatos com esta intervenção no cotidiano do famoso balneário.
Gosto muito dessa música, por ser uma narrativa fictícia cujo tom é fortemente satírico, e, principalmente, por ter uma estrutura rítmica que marcou o rock nacional dos anos 80 – ai, saudade... Desta vez, eu e Licko Turle, que continuamos nossa busca incessante para encontrar onde estudar e aprender o que é “teatro de rua” (uma vez que ele ainda não é ensinado em nenhuma academia...) fomos parar em Santos/SP, como comentaristas da Mostra Estadual de Teatro de Rua, evento forneceu a matéria-prima deste ensaio - AGORA, NÓS VAMOS INVADIR SUA PRAÇA! - uma homenagem-vingança carioca aos paulistas (tardia, reconheço) pelo ULTRAJE sofrido na década de 80 por aquele inesquecível clip, mas também porque o seu foco está principalmente na música e na musicalidade dos seis espetáculos que lá assistimos.
É verdade que ele está atrasado, em digamos... alguns meses, mas os vários lançamentos do livro Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel pelo Brasil afora tomou-nos todo o segundo semestre de 2008, dificultando a execução de tudo o mais. E 2009 chegou bombando, com o XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis! Não obstante, esperamos que os nossos comentários ainda sirvam como uma sincera e despretensiosa contribuição para os grupos da Mostra de Santos 2008 e para os artistas de rua que, como nós, também pesquisam e têm questões abertas sobre esta apaixonante modalidade teatral. Promessa feita, promessa cumprida!
Boa leitura!

ARRUMADINHO – Cia Olho da Rua (05/09/2008) 
Seis atores vestidos de mendigos andam a esmo pela praça. Em dado momento aproximam-se do público (já acomodado em banquinhos oferecidos pela produção do evento) e despem os andrajos, aparecendo agora como homens e mulheres “de negócios”, vestidos com ternos e tyllers. Assim é dado início a Arrumadinho, espetáculo que, segundo a Trupe Olho da Rua, pretende provocar uma reflexão sobre o homem moderno e seu patético sonho de prosperidade no mundo globalizado. A apresentação segue a tradição do teatro de revista, por quadros que iniciam com uma canção. O tema da exploração do homem, abordado cenicamente a partir do solo de cada artista, adquire um tom saborosamente popular ao incorporar, além do épico, elementos do circo, farsa e musical. Embora a ludicidade decorrente desta mixagem esteja presente todo o tempo, o grupo revela a preocupação de fazer um teatro de rua acessível não apenas ao público infantil, mas a todos os cidadãos. A capacidade de interação com o público, e a presença inesperada de um artista de rua – um “Carlitos” - passando delicadamente pelo espaço cênico, mostraram que a Trupe está sendo bem sucedida em seu propósito de levar o processo de criação para a rua, substituindo a noção de “espetáculo” pelo de “experimento”. Nessa mesma direção, cada ator traz a sua proposta singular de cena, estratégia que dá frescor à dramaturgia e imprime ao espetáculo características de obra “aberta”. O aproveitamento das habilidades técnicas de cada integrante não se dá apenas quanto à atuação propriamente dita, mas está presente também no trabalho musical que permeia todo o espetáculo. Logo na primeira cena, os atores assumem instrumentos musicais (alfaia, guitarra elétrica, flautas, caixa-de-guerra), utilizando como cenário-cidade as escadarias do histórico edifício atrás para entoar um hino. Nessa cena aparentemente simples, cada ator demonstra um empenho musical cuja importância não costuma ser enfatizada no teatro convencional e que, entretanto, parece ser imprescindível aos grupos cujas propostas estéticas – como é o caso da Trupe - enfatizam o caráter artesanal do teatro de rua. Ainda que o grupo lance mão de recursos tecnológicos, como a transmissão em vídeo e a amplificação sonora, é evidente que os mesmos têm uma função acessória em Arrumadinho; são úteis enquanto ferramentas - capazes de ampliar a presença cênica dos atores e instaurar ali a metáfora da industrialização - mas não sobrepujam nem substituem, em nenhum momento, o trabalho carnal do ator no seu fazer teatral. Desse modo, a Trupe consegue fazer a crítica da sociedade de consumo sem cair na armadilha de, ela mesma, submeter-se aos caprichos de uma excessiva e inútil “modernidade”. Ao contrário, utiliza instrumentos musicais e o canto a partir das possibilidades técnicas de cada integrante, (apenas um ator do grupo possui formação musical específica) mostrando que, apenas com alguns instrumentos acústicos, equipamento eletrônico simples e atores dispostos a investir na própria musicalidade é possível realizar uma “intervenção cênico-musical” de grande valor artístico - e sem perder a dimensão ética de sua proposta!

A FARSA DO BOM ENGANADOR – Buraco D’Oráculo (06/09/2008) 
Com A farsa do bom enganador, o coletivo paulista Buraco D’Oráculo optou por fazer uma adaptação de La farse du maitre Pathelin, sátira francesa anônima do século XV que, do mesmo modo que outras peças desse período, critica as categorias sociais de uma classe burguesa em ascensão, como comerciantes e magistrados. Por meio do cuidadoso trabalho com personagens-tipo, construídos a partir de uma pesquisa de campo realizada sobre o cotidiano urbano, os atores conseguiram reunir elementos muito interessantes e divertidos para a composição corporal e vocal dos personagens, caracterizados de acordo com a tradição da Commedia dell’arte. Desta forma, o grupo expõe as suas referências estéticas, técnicas e éticas preferenciais: ao lado de elementos das manifestações da cultura popular e do circo aliam-se o improviso - procedimento que o elenco desenvolve com leveza e agilidade – e a ótima musicalidade do espetáculo. Tudo isto sem, entretanto, descuidar de uma bem-humorada crítica social baseada, como podemos ler no release do espetáculo, no realismo grotesco de Mikhail Bakhtin, trazendo consigo a questão da dialética dos contrários, tanto na aparência física quanto no julgamento moral. A farsa mostrou, antes de tudo, a competência do Buraco D’Oráculo em conciliar, com delicado equilíbrio, dois conhecidíssimos (porém, ainda problemáticos) pólos do teatro: teoria e prática. Se, por um lado, o coletivo demonstra a preocupação de fundamentar teoricamente os aspectos essenciais da montagem, elegendo espaço, brevidade das cenas e comicidade como os seus eixos norteadores, por outro fica evidente o cuidado com o acabamento plástico e técnico relacionado aos elementos sonoros e visuais em cena. Cabe lembrar que, ao contrário das convenções teatrais que tendem a mostrar, ao público, personagens “prontos”, não houve, aqui, mistério algum na preparação dos atores: a caracterização, com vestuário, adereços e maquiagem, foi feita diante de todos, assim como as trocas de adereços. Além de figurinos primorosos, os atores apresentaram também uma rara disposição para mergulhar sonoramente nessa autodenominada “quase alegoria arquetípica”, demonstrando o empenho digno de um trabalho de teatro musicado, inclusive pelo trabalho prévio de preparação vocal (Margareth Darezzo), e musical (J.E. Tico), devidamente apresentados na ficha técnica. Tal cuidado com a musicalidade dos atores e do espetáculo como um todo não passou despercebido aos ouvidos do público: a música foi um, senão o mais marcante elemento do espetáculo. Explico melhor: desde o início, houve o uso abundante de música popular brasileira como som ambiente, durante a preparação do espaço cênico na Praça do Sapo. Em seguida, os atores se afastaram para depois retornar em um cortejo musical que veio das imediações, cantando e atraindo mais espectadores. A partir daí, a música tornou-se parte integrante da história, assim como os efeitos de som produzidos numa espécie de ilha de sonorização montada ao lado do espaço cênico - e muito bem utilizada pelos próprios atores - com objetos e instrumentos musicais voltados para uma sonoplastia ao vivo. Estímulos sonoro-musicais permearam todo o espetáculo, contribuindo certamente para que o grupo alcançasse o propósito de imprimir dinamismo às cenas e às relações entre os personagens, por meio do instrumental citado ou pelo canto de um coro narrador. Além disso, a música foi um fator decisivo na consecução do objetivo do grupo em trazer aquelas situações (ambientadas na França do século XV) à contemporaneidade. É o que ocorria, por exemplo, quando os atores tocavam instrumentos nordestinos tradicionais, tais como a zabumba e o triângulo, em ritmos típicos (xaxado, baião), instaurando nesses momentos a famosa sagacidade nordestina, perenizada em figuras caricatas como João Grilo e Pedro Malazarte, que o imaginário do povo brasileiro guarda como um tesouro muito querido. Enfim, o trabalho sonoro do Buraco D’Oráculo não deixou nada a desejar, exceto para nos fazer lembrar o quanto a musicalidade é importante num espetáculo, embora nem sempre seja percebida como tal, ou colocada numa posição hierarquicamente inferior às consagradas linguagens “teatrais” do olhar e da fala. Creio, entretanto, que são ainda pertinentes a esta reflexão algumas observações sobre o uso de música “mecânica”, tal como aconteceu antes do início de A farsa do bom enganador. Uma delas é a constatação de como a música ambiente “fixa” o espaço da rua, determinando a existência de uma frontalidade no espetáculo a ser apresentado, e induzindo o público que chega a acomodar-se em frente à caixa de som, ainda que não seja essa a intenção do grupo ou da produção do evento. Como resolver esse problema? Com músicos em movimento e apresentador idem? Descarta-se, simplesmente, esse recurso técnico? Difícil saber... As pessoas naturalmente buscam a fonte sonora como referência espacial, mas isto se dá de modo subliminar, não totalmente consciente. A onda sonora se propaga em linha reta, desviando-se do mesmo modo a cada obstáculo que encontra pelo caminho. Daí a grande eficácia daquele saudoso megafone de quermesse, talvez ainda usado nos recantos mais remotos, amarrado a um poste central e voltado para baixo. A má qualidade sonora (atritos e ruídos causados pela vibração, etc) é, de certa forma, compensada pela propagação das ondas em linha reta, sem obstáculos, que alcançam uma área de contorno circular e “pegam” todos os que estiverem na área imediatamente abaixo, como um cone de som. Mas não precisamos mais do velho megafone. Temos, hoje, novos e mais potentes recursos sonoros. Que trazem, consigo, novos problemas...

FAMIGLIA MILAN E O GRAN CIRCO GUARANÁ COM ROLHA – Circo Nosotros (06/09/2008) 
O espetáculo resgata um pouco da história do circo, através do trabalho de um simpático casal de artistas que diverte o público infantil com seus números de habilidade circense, baseados principalmente em elementos de equilíbrio, destreza e força física. Não só os pequenos ficaram encantados com a delicadeza da proposta; o público adulto foi também presenteado com a ingênua magia dos espetáculos “de antigamente”, principalmente através do recurso à mímica e dos figurinos “bem-comportados” dos atores.
Enquanto o público aguardava o início da função, o Circo Nosotros propôs uma ambientação sonora por meio de equipamento eletrônico e Cds com exemplos da música circense de diferentes épocas. Ao lado da trilha musical de O circo no Brasil, (primoroso trabalho dos Parlapatões, de São Paulo) foram relembrados temas musicais dos tempos de outrora, hoje eternizados na voz do Palhaço Carequinha, como E o palhaço, o que é? e O bom menino, verdadeiras músicas-símbolo de um cancioneiro tradicional que há décadas dá suporte musical à arte circense no país. Uma verdadeira homenagem ao circo. Infelizmente, num dado momento da apresentação houve um problema técnico com o equipamento, interrompendo a música e a magia da cena. Por alguns minutos, a ação dos atores se deu em meio às tentativas – infrutíferas - de se restabelecer a trilha sonora e o ritmo do espetáculo. Por várias vezes, iniciava-se a reprodução de uma das faixas, mas logo em seguida o aparelho começava a “engasgar”, e a música parava. O Cd foi trocado, mas o problema continuava. Um rapaz da produção do evento correu em auxílio da jovem que cumpria a função de sonoplasta. Nenhum sucesso. Uma cena paralela ao espetáculo começou a se desenvolver ao lado, no início apenas dividindo mas, depois, chamando a atenção do público, mais até do que a atuação dos dois atores. Em meio ao silêncio respeitoso da platéia que acompanhava os acontecimentos, comecei a divagar sobre a importância da chamada sonoplastia, função esta que ultrapassa a questão meramente técnica da sonorização de um espetáculo. Num espetáculo circense a música funciona como base, como apoio para a ação. É literalmente sobre ela que os atores atuam, todo o tempo da duração de um “número”: a fluência e a precisão dos movimentos, o equilíbrio entre impulsos e apoios, a intensidade de um gesto, a velocidade de um deslocamento, tudo depende da relação que os atores estabelecem com essa partner, a música. Um exemplo bastante eloqüente dessa interdependência mútua entre música e circo é que, apenas alguns momentos depois da tal falha de som o protagonista de Famiglia Milan escorregou em cena e caiu, chocando visivelmente o corpo no chão. Felizmente, não houve dano maior, nem para a cena, nem para o ator, que demonstrou ter grande habilidade física e presença cênica. Mas não creio que a queda tenha sido mera coincidência. Uma interrupção musical inesperada não só prejudica o clima circense estabelecido no início de um espetáculo, mas certamente pode também atrapalhar a concentração nos momentos de risco. É como se “tirassem o tapete” do ator, pois é a quebra repentina de uma estrutura organizadora que lhe oferecia referências ao nível de espaço e de tempo, conectando as ações a serem executadas com o mundo à volta. Quando a música estanca no meio de uma ação em curso, esse contato se desfaz subitamente e o elo mágico esgarça. Se uma outra música surge no lugar da anterior, é como se fosse dada ao ator, repentinamente, uma outra estrutura organizadora: novo ritmo, novo andamento, novo “clima”. É outro “roteiro”, outro “mapa sonoro” a seguir. São novas relações espaço-temporais que o cérebro precisa identificar, para poder apoiar o pé no momento exato, no lugar certo. E isso, numa fração de segundo! Por isso, música em cena não é qualquer música! E fazer a sonoplastia de um espetáculo não é só apertar o play e o stop. Esquecemos, infelizmente, que essa delicada tarefa é uma conseqüência de nossos “tempos modernos”, em que a máquina facilitou tanto a vida que tendemos a eliminar não só o trabalho braçal, mas também as sutilezas do fazer. Quanto à música, suas várias funções – comunicativas, celebrativas, rituais; sociais, enfim - foram quase que limitadas a uma só: “fundo” musical. Qualquer coisa que preencha o vazio, sinônimo de solidão na neurose das modernas cidades industrializadas onde o silêncio nem existe mais... Nem sempre foi assim: nem na vida, nem no circo. “Antigamente”, um circo contaria com a presença obrigatória de uma banda, munida principalmente de instrumentos de percussão e sopro – a charanga. Além de propiciar um ambiente de alegria, atraindo o público para a lona com o seu vasto repertório de marchinhas e valsas, os músicos davam vida a certos sons, produzidos em momentos específicos do espetáculo, cuja função era o acompanhamento dinâmico da ação. Esses signos sonoros, ritualizados pelo uso no tempo, são hoje verdadeiros símbolos sonoros que todos nós reconhecemos. Por exemplo, um rufar de tambor a proporcionar o devido suspense antes de um salto mortal e a finalização sinfônica tradicional ao término dessa ação arriscada, mostrando o seu pleno sucesso (o famoso “Tã-rã!!!”). Os temas musicais mais elaborados eram destinados aos números “completos”, no sentido de colocar o público “em sintonia” rítmica com o gestual do artista, como seria o caso de uma valsa suave, mais lenta e doce, a delinear os passos da etérea bailarina sobre o fio de arame; ou das marchas militares, metricamente marcadas, para os grandes deslocamentos, acrobacias e outros movimentos onde uma grande energia física fosse exigida. A tecnologia mudou isso tudo, é claro! Por isso, nos flagramos nostálgicos diante de uma magia circense artesanal que nem chegamos a ver com os próprios olhos (creio que nenhum dos espectadores presentes em Famiglia Milan tinha idade para isso), enternecidos diante das calçolas bufantes, dos lacinhos de cetim e da malha masculina pudica. Contudo, penso que o resgate dessa doce ingenuidade poderia passar também pelo uso da música como “antigamente”: como trilha sonora e sonoplastia, sim, mas principalmente como texto sonoro ao vivo que dialoga com a cena e amplifica sentidos, conectando atores e público na mesma “onda”. Talvez, toda essa reflexão seja apenas um desejo saudoso de rever e ouvir, “ao vivo e a cores” (e sons!), a velha, boa e insubstituível charanga e seus músicos fantásticos criarem todo um clima emocional com uma simples melodia do flautim... e isso não é nada simples, nem barato, em nosso mundo contemporâneo complexo, profissionalizado e caro. Como conciliar praticidade e magia, atualmente? Este é, certamente, mais um desafio para o circo de hoje que deseja manter vivo o encantamento de ontem.

LÍNGUAS DISCORDANTES - Grupo Confraria da Criação (06/09/2008) 
Esta companhia apresentou-se pela primeira vez na rua, mostrando o seu (também) primeiro trabalho. Foi uma decisão dos integrantes fazer esse experimento em espaço aberto, uma vez que um dos personagens do texto de Wolff Rothstein é morador de rua e o autor pretendia pesquisar a relação deste com um público casual. Foi escolhida uma travessa do centro comercial da cidade, com grande movimento de pessoas que se esbarram constantemente, no seu ir e vir apressado. Enfim, um ótimo local para uma interferência artística! Depois de um aquecimento corporal e vocal, o ator que representava o mendigo deitou-se debaixo da marquise (chovia fino) sobre papelões no chão, cobrindo o corpo com grandes sacos plásticos, vazios, de lixo. Durante essa preparação minuciosa, o outro ator permanecia fora da cena, anônimo entre os espectadores. Não usavam equipamentos de som, nem microfones... De repente, em meio àquele momento de expectativa, uma voz potente e solene invade o espaço: “Senhoras e Senhores, bem-vindos ao Festa Santos, etc etc. Por favor, queiram desligar os seus celulares. Bom espetáculo!” Era a vinheta do FESTA, desmontando toda a preparação realista criada pelo grupo para “pegar” os transeuntes (que já começavam a parar perto do mendigo-ator) de surpresa, e que virou motivo de riso para os atores de outros grupos presentes. Apesar da graça, foi uma situação que evidenciou o quanto as formas convencionais do teatro “fechado” estão arraigadas no imaginário social, fazendo com que até aqueles que trabalham no meio teatral cometam esse tipo de gafe, nivelando toda e qualquer arte cênica aos parâmetros do palco à italiana. Talvez pela opção consciente de manter o clima realista do início, talvez por inexperiência de uma atuação em espaço aberto, os atores em cena ignoraram esse fato e partiram para um embate verbal de concepções (opostas) sobre os mais abstratos temas filosóficos, da liberdade do homem à sociedade de consumo. A concepção de performance, presente no início, parecia estar baseada no Teatro Invisível de Augusto Boal, mas os banquinhos levados pela produção e colocados na calçada em frente denunciavam que se tratava de teatro. Além disso, o Teatro Invisível propõe detonar uma discussão sobre um tema social, abrindo a roda em seguida para a participação ativa do público no desfecho do conflito instaurado em cena. Aqui aconteceu o oposto: a peça detonava uma discussão que, entretanto, permanecia fechada na relação conflituosa, quase pessoal, entre os dois personagens (mendigo/professor/filósofo versus trabalhador/senso comum/classe média). Com a utilização de marcações tradicionais, “deixas” e muito texto, a relação com o público não esquentava: os espectadores paravam um pouco para assistir, mas sem conseguirem estabelecer um envolvimento maior com as questões apresentadas, permaneciam passivos e, assim que a curiosidade era saciada, iam embora. Infelizmente, a forma dramática adotada pela Confraria da Criação terminou, deste modo, por obscurecer a riqueza de um conteúdo fortemente existencialista, transformando questões de caráter universal em uma discussão intimista, quase moralista, repleta de acusações mútuas e muita culpa. Foi uma pena; o local onde se apresentaram foi, sem dúvida, o melhor lugar do festival para uma experiência teatral que pretendia realizar uma interferência no cotidiano da cidade e instaurar o encontro desta consigo mesma através de um público eminentemente adulto, trabalhador, apressado, em eterno deslocamento. Além disso, os atores tiveram o mérito de se aventurarem num terreno que lhes era, até então, totalmente desconhecido: o espaço aberto da rua. Todo artista de rua sabe o quanto de coragem e determinação é preciso, para investigar, aí, as suas proposições teatrais. Para o pesquisador de teatro de rua André Carreira trata-se, sugestivamente, de um teatro de invasão. Por isso, não basta transportar para a rua as formas já estabelecidas, realizando na rua um espetáculo que, por sua natureza dramática, não chega a penetrar de fato nos fluxos dinâmicos da cidade, apesar de estar espacialmente inserido nela. Enfim, talvez passe por aí aquela questão, aparentemente ainda irresolvida, que se resume no debate “teatro de rua versus teatro na rua”. Cabe ressaltar que a população de rua presente se interessou bastante; os meninos que lá estavam, envolvidos em seus cobertores, assistiram atentamente e, no fim, foram cumprimentar os atores. Para nós, isso mostrou que, acima de qualquer teorização possível, a rua é sempre o lugar do inesperado... por isso a amamos!

sábado, 21 de março de 2009

VAMOS PRA RUA!*

Precisamos ir para as ruas! Temos de destruir esta arquitetura que separa os homens. 
Julian Beck 

Desde a revolução industrial que caminhamos de forma alucinada para a especialização, para o conhecimento compartimentado, para a competitividade exacerbada e, conseqüentemente, para o isolamento e isto só nos têm alienado. Romper com a estrutura imposta pelo capitalismo, sem utilizar as suas ferramentas, a sua violência, é uma necessidade.

A Arte é o caminho para a “humanização” do homem e o teatro de rua uma de suas formas. Esta modalidade teatral é um veículo de comunicação poderoso e uma ferramenta de sensibilização do outro, em que regras e limites, quase não há e no qual o comunicador (o ator) não está acima de seu espectador, mas no mesmo nível, podendo interferir em sua realidade e ficando aberto a modificações propostos por estes, ou seja, uma via de mão dupla no qual se acrescentam e se modificam mutuamente.

A rua é o espaço de todos e, mesmo com todas as amarras da sociedade, é onde a liberdade acontece. É onde as lutas por melhores dias ocorrem, é o lugar da manifestação, é o espaço da democracia por natureza. Sendo este lugar tão importante, faz-se necessário que seja também lugar de fruição das artes e da desalienação.

O teatro de rua pode cumprir o papel de sensibilizar as pessoas e discutir problemas da nossa realidade nos espetáculos. Como já afirmou Julian Beck (apud CRUZIANI; FALLETTI, 1999: p, 91): “há duas formas de teatro: uma que acorda as pessoas, e uma que as faz adormecer. Um teatro pode, a rigor, até não falar de política, de sociologia, mas pode ter, dependendo das escolhas de quem o faz, um resultado de tomada de consciência da realidade pelo público”. Devemos optar pela primeira. A rua deve ser o lugar do encontro, do reconhecimento do outro e de suas diferenças e o teatro pode ser uma ferramenta para cumprir este papel.

  Por Adailtom Alves – Historiador e ator

*Publicado originalmente em A Gargalhada, n 01, março/abril de 2006. Revisado para esta publicação.