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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Ser tão urbano

A ALDEIA QUE HABITAMOS É O SERTÃO
Por Adailtom Alves[1]
O grande Guimarães Rosa, afirma que "o sertão está em toda parte", já o mestre russo, Tolstoi, propõe que ao falarmos de nossa aldeia seremos universais. Partindo dessas duas proposições o Buraco d`Oráculo realizou uma pesquisa em comunidades da zona leste da cidade de São Paulo. O projeto fazia parte da comemoração dos dez anos de existência do Grupo e foi realizado graças aos recursos do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. O objetivo era descobrir qual o sertão de um grande centro urbano como São Paulo. E o sertão se traduziu em muitas histórias de sujeitos desterritorilizados, muitos vindos do Nordeste brasileiro; vidas áridas, sofridas e um infinito de vivências. Encontramos o sertão que procurávamos, ao mesmo tempo, encontramo-nos, pois cada integrante teve que se reencontrar ao revisitar sua própria história.
Com tanta riqueza de material, não foi fácil selecionar sobre o que falar no espetáculo. Entretanto, em todas as comunidades repetia-se as lutas por moradia e tudo que de mais básico necessitam as mesmas. Estava feito o recorte: sujeitos que partem de seu lugar de origem e precisam organizar um novo lar. Todos os integrantes do Grupo residem na mesma região que esses cidadãos, portanto, falaríamos de nossa aldeia. Depois de montado o espetáculo, as primeiras apresentações foram nas comunidades por onde passamos registrando os relatos. Devolvíamos, em forma de arte, o que seus habitantes haviam vivido e nos relatado. Mas, e fora dali, daquela região será que o espetáculo funcionaria? Comunicaria?
Passo a relatar três experiências que marcou o Grupo profundamente, dando-nos a certeza das máximas propostas por Rosa e Tolstoi. A primeira ocorreu dentro de um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), na cidade de Sumaré. Ansiávamos por esse momento, pois entendíamos que o espetáculo refletia a luta desses cidadãos, ainda que tratasse de lutas antigas o tema continuava atual. Foi emocionante. Uma plateia de mais de quinhentas pessoas reconhecendo-se nas histórias ali narradas. Após o espetáculo, no debate, muitos relataram sobre como suas lutas estavam refletidas nas propostas apresentadas, outros empolgados em criar um grupo teatral para falar de suas angústias, ao que apoiamos e nos colocamos a disposição para auxiliar, até porque um teatro comprometido deve ser uma ferramenta do contra discurso da mídia hegemônica. Assim, com essa arte será possível reforçar a luta daquele acampamento e de todo o movimento.
Outra experiência se deu na cidade de Porto Ferreira. Após a apresentação uma senhora, já com cabelos brancos, acabara de sair da missa, foi pega pelo espetáculo e fez questão de conversar com cada um dos atores, explicando que sua história estava refletida naquele trabalho. Havia sido expulsa de alguns lugares que ocupara com os movimentos sociais da região, sempre duramente reprimida e até aquele momento ainda não tinha sua casa. Relatava que estava feliz porque nós estávamos tendo voz para contar aquelas histórias, pois ela e muitos companheiros seus não tiveram oportunidade de falar. Era nosso dever, continuar.
Quando começamos o nosso processo percebemos que seria uma mudança radical em nosso trabalho, tudo que havíamos criado anteriormente, ainda que fosse um teatro crítico, não cumpria o mesmo que se anunciava. Trabalhávamos basicamente com o universo farsesco. Política e estética andam juntas, por isso a forma modificou-se, pois forma e conteúdo são inseparáveis. Somos seres sociais e não era mais possível não colocar em cena o nosso universo de maneira mais contundente.
A terceira experiência deu-se dentro do Fórum Social Mundial, na cidade de Canoas-RS, no Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua da região sul. A programação compunha-se do encontro organizacional e uma mostra teatral. Encerramos a programação. Na plateia, atores do Rio Grande do Sul e de outros estados do Brasil, além do público da cidade de Canoas. Foi uma comoção, no sentido de co-mover, mover-se junto. Ali tivemos certeza de que o sertão está em toda parte e quão importante é falarmos de nossa aldeia. Mas a certeza maior foi de que havíamos dado um passo em nosso trabalho ao qual sempre almejamos: realizar um teatro que cumpra uma função social, que contribua para o enriquecimento crítico daqueles que fazem e daqueles que veem, permitindo entre ambos (atores e público) uma verdadeira troca de experiência, afinal estão todos no mesmo nível e pertencem ao mesmo estrato social: são todos trabalhadores, pessoas do povo. É provável que a obra ainda necessite de ajustes, porém o caminho apontado por ela, não.

Publicado originalmente em a Poética da Rua, caderno 2: 2009/2010, p. 34-5.




[1]Ator do Buraco d`Oráculo e mestrando do Instituto de Artes da UNESP.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Problemas com espaço público


Ocupação e Resistência: Trupe Artemanha é ameaçada de perder espaço, recém ocupado para criação da Escola Popular de Teatro.

Desde o início do ano instalados no espaço Nathalia Rosemburg (espaço público concedido pela subprefeitura), o grupo, juntamente com a subprefeitura, procurava espaço que atendesse ás necessidades de estrutura de uma escola.
O espaço da rua Aroldo de Azevedo, 20, na mesma quadra do espaço Nathalia Rosemburg, foi prédio da subprefeitura durante muito tempo, depois serviu de sede para o Instituto Oca e mais pra frente Uboé. Depois  do isso o local ficou abandona até que há cerca de um ano, quando a subprefeitura pegou fogo, serviu de abrigo para o CRAS/Campo Limpo, que pertence a Secretaria de Assistência Social, que se instalou no local por apenas 45 dias, se mudando para prédio próximo particular e deixando no espaço muitos equipamentos e patrimônios públicos já sem uso.
Neste curto tempo em que estiveram no local, o CRAS não realizou melhorias para o prédio que estava com problemas de esgoto, água, luz, cupim e até sofrendo saques e arrombamentos constantemente. O problema de água e luz foi resolvido através de um "gato" e sem nenhuma estrutura, já que as fiações estavam condenadas, correndo risco até de incêndio no local.
Há cerca de dois meses, quando soubemos da contemplação do Programa de Fomento ao teatro para a cidade de São Paulo, que viabiliza a criação da Escola, tivemos uma reunião com o subprefeito do Campo Limpo e o supervisor de Cultura, que alegaram não saber com quem estava as chaves do local e também não ter encontrado nenhum processo jurídico em andamento sobre cessão de uso prédio. Em reunião, acordamos que a Trupe faria no espaço, a Escola e iniciamos a parte legal de documentação para cessão de uso do espaço.
Como os trâmites burocráticos são lentos, mesmo sem a cessão oficial, trocamos as fechaduras e entramos no espaço para dar início aos reparos. O que encontramos foi um prédio completamente abandonado, sendo destruído por cupins, com o esgoto entupido causando enorme mau cheiro, focos de dengue e de bichos (ao lado da creche!), nenhuma estrutura de banheiros (todos arrebentados), com problemas de fiação, lixo e uma dívida de luz e água ainda da época da Uboé.
Há vinte dias, os dez integrantes da Trupe realizam os reparos de pintura, limpeza, higienização, organização do patrimônio abandonado em uma única sala, compra de equipamentos e de vasos sanitários, tintas, fios... toda preparação para colocar a escola em funcionamento.
Neste momento, o CRAS reivindica a posse do espaço, alegando invasão da trupe (que rompeu as fechaduras) e inclusive acusando os integrantes de furto do patrimônio público, devido ao sumiço de equipamentos como um microondas, que já não estavam no local quando a Trupe entrou, provavelmente por conta dos saques e arrombamentos ocorridos durante o abandono.
A subprefeitura apóia nossa permanência no local, mas está marcada reunião com representantes do CRAS, da trupe e da subprefeitura para semana que vem, quando as questões serão esclarecidas.
Importante salientar que por toda cidade de São Paulo, são inúmeros os prédios, casas, fábricas antigas, espaços públicos que estão completamente abandonados e sem uso e que poderiam servir para sedes de grupos, criação de centros culturais, projetos sociais... trabalhos de relevância para a comunidade e que trariam inúmeras transformações sociais, políticas e culturais, no local e nas proximidades.
Há já alguns grupos em diferentes regiões que realizam trabalhos incríveis com a comunidade, a partir do teatro e da arte, em espaços antes ociosos e que foram ocupados e a história é sempre a mesma. Assim que o trabalho se inicia, o espaço abandona vira motivo de disputa por diversos tipos de poderes, que até então não se mobilizavam para qualquer espécie de melhoria ou utilização da área.
Fiquemos atentos: de maneira geral, pode-se definir espaço público em um espaço central que dá realidade material e simbólica a cidade, ou seja, entendendo-o como um território específico dotado de suas próprias marcas e signos de delimitação e que é pensado como plural e condensador do vínculo entre a sociedade, o território e a política de forma democrática.
Também são espaços de livre acessibilidade, de uso comum dos cidadãos e de coesão da sociedade, apresentando como características o fato de ser geral (refere-se a cidade como uma totalidade), coletivo (para uso e desfrute de todos os habitantes), comum (pertence aos cidadãos e são regidos pelo direito público) e representam uma hierarquia no ordenamento urbano (corresponde a interesses superiores por representar o bem comum). Ainda, o espaço público constitui a cidade tanto em sua dimensão físico-espacial quanto sociocultural, sendo que os processos que ali se desenvolvem são capazes de dar sentido à vida pública dos cidadãos.
                É dever e direito nosso intervir em situações em que o Espaço Público está sendo destruído e onde inúmeras possibilidades de trocas e de experiências riquíssimas: culturais, sociais, de lazer, que poderiam representar forte potencial transformador nas comunidades, são desperdiçadas e ignoradas.
               

Para mais informações sobre o trabalho da Trupe Artemanha e a Escola Popular de Teatro: www.escolacita.blogspot.com ou www.trupeartemanha.com.br




terça-feira, 24 de maio de 2011

Carta da CPT a Ministra Ana de Hollanda


São Paulo 10 de maio de 2011.



Á
Excelentí­ssima Senhora
Ana Buarque de Hollanda
Ministra da Cultura do Brasil.



A Cooperativa Paulista de Teatro, que representa cerca de oitenta por cento da produção teatral de São Paulo vem solicitar à Vossa Excelência, em caráter de urgência, a execução dos Editais para Teatro, Dança e Circo, que tiveram suas inscrições encerradas no dia 10 de janeiro de 2011.

Vem ainda reinvidicar o imediato lançamento dos editais Myriam Muniz (para Teatro), Klaus Vianna (Dança) e Carequinha (Circo) da Funarte, como aconteceu durante os governos do ex-Presidente Lula da Silva.

Estes programas têm por finalidade democratizar a produção cênica no país e a sua consequente circulação e na sua continuidade está a confirmação de promover a cultura brasileira e descentralização dos recursos, facultando a participação de artistas de todo o país nos referidos concursos públicos.

Por fim propomos que se torne realidade a Carta de Osasco, documento oficial do Congresso Brasileiro de Teatro, no qual a Senhora esteve presente em março último, onde, através do programa de fomento Prêmio Teatro Brasileiro, teremos uma plataforma de Estado para o teatro nacional.
 




Atenciosamente


Ney Piacentini
Presidente da Cooperativa Paulista de Teatro

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Relato de Arcoverde dia 12 de maio de 2011

 
Relato de Arcoverde dia 12 de maio de 2011
Salve salve rueiros!!!
Começou neste dia 12 de maio de 2011 a 2ª edição do Festival Cena Aberta em Arcoverde/Pernambuco.
Uma realização da Tropa do Balaco Baco - equipe teatral de Arcoverde.
O dia começou perfeito, nem quente nem frio. Noticias em três jornais sobre o evento. Circo Teatro Capixaba ensaiando a mil no terraço do hotel Monteirão.
13h almoço no SESC Arcoverde, um dos apoiadores, assuntos: comidas regionais, teatro, politicas, festivais e o cortejo. 
16h ida de onibus e van do festival pra Estação da Cultura onde teria inicio o cortejo. E foi o senhor cortejo! Um dos maiores em deslocamento que participei na vida, da estação até a sede da Tropa.
Lá estavamos, grupos e o Boi Maracatu do Sertão, todos reunidos na frente do prédio da Estação. Que se trata de uma antiga estação férrea pertencente ao governo federal, desativada, os trilhos ainda cortam a cidade ao meio. Segundo Romualdo o prédio de duas partes enormes estava abandonado até uma ocupação/invasão dos artistas por volta do ano 2000. Onde foi criado o 1º Ponto de Cultura do País. A ocupação/invasão cultural foi necessária não só pela precariedade de espaços pros grupos realizarem um trabalho continuado como também porque era pra ser transformada num terminal de vans (perueiros)!!!!! desde então o espaço é ocupado para oficinas de formação e trabalhos de artistas Pernambucanos. Este é um exemplo de ocupação cultural que deu certo, servindo de exemplo pro resto do país, deu tão certo que hoje o grupo que abriu o Festival oficialmente com espetáculo de rua é fruto do trabalho lá realizado. O Grupo Mandalá de Teatro (Arcoverde) é parte da segunda geração da Estação Cultural que segue muito bem seu caminho neste segundo espetáculo: Salomé - Filha de uma mãe chamada Calyn.
voltando ao cortejo. Houve uma parte da apresentação do Boi Maracatu (Arcoverde) energia pura. Olhei ao redor e via, Selma Bustamante (AM), Ligia Veiga (RJ) William e Ananda (ES), os Manjers Anelise e Samir (RS), todos boquiabertos com o que viam. Era o testemunho de uma folia autentica no estado de origem!! Hipnose coletiva gerando fervido nas pernas e corpo, ninguém parava de se mover. Uma histeria do bem, do prazer de dançar e foliar. Seguimos em deslocamento organizadamente. Na frente os estandartes, depois o Maracatu, em seguida uma cobra gigantesca com 6 pessoas dentro manipulando, na sequencia os artistas e o povo do Boi. Deslocamento infinito pela cidade, que parou de vez pra nos ver passar. Pra quem acha que Arcoverde é pequena se engana, é bem grande, todos os bancos, comercio a mil, muitos carros, etc!!
Singramos a cidade e depois de não sei quanto tempo chegamos na sede da Tropa do Balaco Baco. Esta é a quarta sede que a Tropa transitou na sua história. Estão há um ano e três meses neste espaço que compreende um enorme patio com um casarão ao fundo. Há na entrada um tapete vermelho (piso pintado) e estrelas pintadas nas laterais. Seria a calçada da fama do teatro popular? Logo na sequencia começa uma sonzeira, banda ao vivo tocando um forró junino (existe este termo?) muito bom. O povo se agitou bastante.
Depois os organizadores pediram a palavra e abriram oficialmente o evento com falas do representante do Governo Estadual de Pernambuco (cujo Funcultura e Fundarpe incentivaram o Festival) mais a respresentante do SESC e Ligia Veiga falando pelos teatreiros do Brasil. Everaldo, presidente da Associação da tropa deu as boas vindas e Romualdo fechou os discursos com chave de ouro.
Romualdo falou das mazelas de se fazer eventos de teatro popular e de rua neste país há decadas e a realidade dos dias de hoje. Não deixou de citar a sua inclusão na RBTR e o bem que ela está lhe fazendo. Desde a forma de se tomar decisões, as lutas, conquistas, derrotas, a organização de encontros presenciais ou não. Falou sobre as dificuldades e proibições dos artistas de rua neste país, que fere a constituição brasileira e da ausencia do governo municipal, representado por uma cadeira vazia na mesa dos convidados. Lembrou do Congresso em Osasco e as cartas e documentos que produzimos. Também da morosidade do Governo Federal e Funarte com relação ao 9º encontro da RBTR em Arcoverde de 06 a 10 de Julho deste ano. Aliás foi noticia dada pela primeira vez a população (artistas ou não) da cidade, ou seja é oficial esta data!  Conclamou a classe e pediu luta permanente com relação ao SNC - Sistema nacional de Cultura, que terá um encontro no Festival para esse assunto importantíssimo pro futuro da cultura no país. Um saneamento cultural que deve escoar com fluidez, caso contrário jamais um tostão chegará nem as instância públicas. Há que o Brasil se alertar com relação a construção de politicas efetivas, começando com planos de cultura, conselhos de cultura, fundos de cultura e instância apta para gerenciar. Enfim falou com propriedade e coragem, pois estava lotado o grande terreno que a Tropa aluga com muito trabalho e suor.
Findado os discursos, foi a vez de todos irem pra rua na frente da sede e assistir o já mencionado Grupo Mandalá de Teatro. Galera jovem segurando bem na rua, tocando, cantando, dançando e representando Salomé em versão cigana. Um drama/tragédia na rua cujo destaque vai para atriz Renata Cordeiro, pequenina e muito magra que segurou com pompa a personagem Salomé, cujo espetáculo e a historia ja classica é recheado de mentiras, invejas e sedução. A filha que se apaixona pelo pai, sem saber, e diante do desejo negado manda cortarem-lhe a cabeça e depois é assassinada pela mãe.
Eis uma metáfora do tempo, das histórias deste sertão e deste Brasil sem fim. Um espetáculo inicia o festival com a filha cortando a cabeça do pai. Poderia buscar na história de ícones que foram assassinados ou tiveram a cabeça cortada como Antônio Conselheiro em Canudos ou Lampião e Maria Bonita ou mesmo Tiradentes e tantos outros. Mas tudo me cheira apenas a questão do novo querendo espaço, conflituando com o velho, o antigo, o ultrapassado, etc. Novos ares, novas ideias e por consequencia mais anseios, dificuldades e lutas. Somos assim humanos, demasiado humanos! Numa luta é eterna por espaço e atenção/reconhecimento.
Evoé Baco!
Evoé Balaco Baco!
Eis o que me lembro, amanhã tem mais....sexta-feira 13!
vamo que vamo!!
Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão/RS
GRUPO TEATRAL MANJERICÃO/RS
2011 - 13 anos de estrada
skype: manjericao-rs

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Gestus

O gesto, o gestual, o gestualizável... Experiências estético-sociais
por Alexandre Mate (professor do Instituto de Artes da Unesp,
pesquisador e militante do teatro de rua).
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
A procura da poesia. Carlos Drummond de Andrade.
            Referindo-se ao prédio articulado à linguagem estética, teatro significa lugar de onde se vê, miradouro. Primordialmente, quando o teatro foi batizado com este nome (Antiguidade clássica grega), o objetivo do Estado, ao criar o espaço e ao definir o que deveria ser escrito (os textos teatrais participavam de festivais), centrava-se, sobretudo, na composição de assunto, cuja história oficial precisava ser preservada. Assim, pode-se afirmar, a despeito da qualidade das obras do período que chegaram até nós, que o teatro se caracterizaria, também, em um miradouro de preservação da história oficial.
            Expulsos da ágora, e proibidos de apresentar suas obras nos espaços oficiais,  tanto por sua irreverência quanto pelos seus "textos" (ou por aquilo que diziam) não se alinhar à história oficial, os artistas populares encontraram na deambulação e na errância o único modo de conseguirem sobreviver e de se dedicar à sua arte. Os gregos não documentaram a produção popular, entretanto, e na medida em que houve muito trânsito entre gregos e romanos, a produção dos últimos serve de baliza e referencia ao que se produziu na Grécia. Os chamados flíacos ou mimos faziam comédia irreverente, rindo de modo iconoclasta (destruidor dos mitos e da história oficial) e, principalmente, dos mandantes do poder da vez.
            De origem latina, espetáculo significa o que chama atenção, atrai e prende o olhar; assim, essa ação ocorre apenas quando o espectador assiste a obra, pressupondo, portanto, relação, troca. O espetáculo é um fenômeno estético-social cuja tríade essencial compreende: ator, público e texto.
            Durante o espetáculo, ator e público promovem uma relação fundamentada em jogo de decifração de símbolos, tanto enigmáticos (mais difíceis de serem traduzidos) e de alegorias (símbolos facilmente traduzíveis). A troca entre ambos (atores e público) ocorre quando o texto que intermedia essa relação, na condição de um "tecido simbólico", transforma-se em gesto. Na condição de uma fratura do cotidiano, o espetáculo, que acontece no tempo e no espaço, compreende um grande arcabouço de gestualização estético-social.  O gestual passa pelo corpo do ator que, na condição de ser social, irradia complexa e múltipla gama simbológica. O poeta francês Charles Baudelaire afirma, em um de seus textos, que a arte é uma "floresta de símbolos", e que toda floresta é inexpugnável (na condição de organismo vivo e premida por mistérios ela não se dá a conhecer...).  
            Normalmente, em nosso cotidiano, não prestamos tanta atenção aos gestos que fazemos, mas todo ser social incorpora ao seu corpo atitudes gestualizáveis - herdadas do contexto histórico-social - com a incumbência de provocar, de emocionar, de estupidificar, de enviar sinais, de promover uma troca... Nas artes da representação, o corpo potencializa sua capacidade expressiva, redimensionando-se a partir de gestualização totalmente elaborada. Dentre gama infinda, e em acordo com o gênero e a recepção, tudo, na condição de índice, passa a ser passível de ser interpretado... Aliás, a palavra intérprete e interpretação têm a junção (do latim) de inter (entre) + pretium (preço) = portanto, espécie de corretor, aquele que trata e atribui um preço, um valor a... claro, o conceito ganha, ao longo da história outras conotações...
            O gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as determinações histórico-sociais, em seu sentido estrito e restrito). A literatura teatral, cuja essência pressupõe a organização de linguagem mediada por palavras escritas, em teatro, efetiva-se por meio de símbolos sonoros e duplamente gestuais (intenção por meio da qual a palavra se projeta) e atitude do corpo; então, o texto falado corresponde a uma linguagem corpóreo-sonora, cuja existência é traduzida gestualmente.
            "Vestido" ou não com a personagem, de modo a reproduzi-la critica ou a decalcá-la verossimilhantemente (colocar-se em situação, como se fosse a personagem, apresentar uma cópia muito e tão próxima do original), o teatro é um jogo, fundamentado no ludibrio por meio do qual se pode enganar ou explicitar as regras e evidências ao espectador: tudo depende da parceria que se queira estabelecer. De qualquer modo, Bertolt Brecht afirma ser preciso mostrar a personagem, na condição de um experimento de natureza social! Ainda para o pensador e dramaturgo alemão, a exteriorização do gesto é, na maior parte das vezes, contraditória e complexa e dificilmente transmitida por uma única palavra. Insiste em que é salutaríssimo desconfiar de tudo o que pensamos e fazemos...            
            Em português, a manifestação corporal apreensível e materializada pela fala; pelo movimento - em si e no espaço (sentido estrito e restrito); por índices visuais (tatuagens...) é apresentada por uma única palavra. Em alemão, a múltipla e complexa atitude do ser social tornar-se um tecido simbólico é apresentada pelas palavras-conceito: gestisch corresponde a linguagem gestual; gesten corresponde a conjunto de manifestações corporais (um dançarino, uma multidão); gestikulieren corresponde aos gestos que acompanham a fala, quase sem intenção fática, espécie de movimento reflexo; gestik corresponde aos gestos que acompanham a fala ou não, com função fática, expressiva (alegorias).
            Por conta de Bertolt Brecht fazer thäeter (linguagem artística contrária ao, por ele chamado, teatro culinário), o gesto social caracteriza-se no atributo social e no conceito central de sua estética. Desse modo, ao refuncionalizar a palavra latina gestus, e por estar convencido de que por meio do gesto o ator, por inteiro se faria social, Brecht cria um teatro épico-dialético, também, na dimensão gestual. Gerd Bornheim (Brecht: a estética do teatro. RJ: Graal, 1992, p.281) afirma que gestus pressupõe: "[...] a expressão mímica e gestual das relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam." Fredric Jamerson afirma, com relação ao conceito ser importante destacar que no trabalho do ator o gestus corresponde ao resultado de um infindável exercício e experimentação de múltiplas hesitações até uma escolha do modo de mostrá-lo. Assim, em O método Brecht (Petrópolis: Vozes, 1999, p.110): "Não é exatamente indecibilidade esta hesitação interpretativa: ela não resvala para o informe; por outro lado, ela incita o espectador a reelaborar seus pensamentos e testá-los contra o evento inicial ou o acontecimento que lhes serviu de pretexto." Ainda com Jameson, depois de substancial reflexão acerca da etimologia e do conceito de gestus, o conceito assim aparece, à p.139:
[...] gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário de mão poderia, em certas circunstâncias [...] contar como um fatídico ato histórico, com conseqüências sérias e irreversíveis. [...] é uma superposição e um estranhamento que não apenas nos faz entender o elemento narrativo específico a uma luz nova e transformadora, mas também muda nossas ideias sobre o que é um simples gesto físico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histórico.
            Para finalizar, na dimensão épico-dialética, o gestus, ao dividir a apreensão do espectador, provoca um conjunto de reflexões. Vê-se algo que, ao expressar variadas e contraditórias conotações, induz ao cotejamento, à contraposição de leituras. O espectador afasta-se do que vê para aproximar-se da vida que vive e, a partir daí, voltar à obra. Em movimento dialético, pode-se ver além do aparentemente apreensível.

Bibliografia
BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
JAMENSON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.


Publicado originalmente em A Gargalhada n 21, abril/maio de 2011, p. 4-5.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Oigalê e Buraco d`Oráculo

Entre um encontro e outro


A primeira vez que presenciei[1]um trabalho da Oigalê CAT foi em 2000. Naquele ano, meu grupo, o Buraco d`Oráculo, participavas do projeto Ademar Guerra, da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo, que destinava um orientador para grupos iniciantes, de maneira a contribuírem com o aprimoramento e a formação dos mesmos. O Buraco d`Oráculo recebia a orientação de Ednaldo Freire e todos os integrantes buscavam referências ligadas a um teatro de rua popular e foi nessa busca que assisti ao espetáculo Deus e o diabo na terra de miséria, desse grupo gaúcho que se apresentava no Sesc Ipiranga.
Costumo denominar a formação dos integrantes do Buraco d`Oráculo de espontânea, pois não nos formamos dentro de nenhuma escola técnica ou centro acadêmico voltado às artes cênicas, mesmo que no decorrer dos anos os integrantes do grupo tenham se graduado em outras áreas do conhecimento humano. A formação do grupo vem muito da vontade de nos manifestarmos artisticamente por meio do teatro. Neste sentido, na busca de uma formação que se dar fora das escolas é que lançamos um olhar observador sobre tudo aquilo que pode nos inspirar, motivar e, sobretudo, ensinar-nos. Naquela época, via-se pouco teatro de rua pelas plagas paulistanas, ainda que houvesse a existência de alguns coletivos, mas uma programação mais constante veio eclodir anos mais tarde. Por isso, sabendo da apresentação de um grupo vindo de fora, eu e alguns companheiros nos dirigimos para ver o supracitado espetáculo.
De inicio, já fomos fisgados com aquilo que hoje chamamos de esquentar a roda: os atores conversavam e brincavam com o público, procurando estabelecer um jogo enquanto se preparavam para entrar em cena. O espetáculo narra a historia de um tipo popular, um anti-herói, um sujeito que tem de usar da esperteza para sobreviver. O espetáculo nos cativou por apresentar expedientes populares dos quais buscávamos referenciais. Talvez por conta de nossas raízes, até aquele momento tinha mais referenciais relacionados ao Nordeste do Brasil. Para além do jogo e do popular, havia no espetáculo apresentado um excepcional trabalho de ator, aliado a um virtuosismo na utilização da perna de pau. Portanto, afirmo que a Oigalê, neste primeiro momento, apontou varias questões fundamentais à nossa formação. E ainda que mais jovem do que o Buraco d`Oráculo, a Oigalê tornou-se uma referência para nós que nos afirmávamos como grupo de teatro de rua e tinha o popular como fonte de inspiração.
Passado esse primeiro encontro, seguimos o nosso trilhar. Por diversas vezes ocorreu o retorno da Oigalê com outras produções a São Paulo, no entanto, por conta de compromissos não mais pude vê-los. Porém, em 2008, é realizado em São Paulo a 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, evento que, por si só, já demonstra um cenário bem diferente daquele apresentado em 2000, no qual pouco se sabia quem de fato estava fazendo teatro de rua. Juntamente com a Mostra, isto é, dentro de sua programação, ocorreu o 4° Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e este acontecimento possibilitou um reencontro com a Oigalê, visto que estava na programação e como articuladores da região sul no encontro da RBTR.  O encontro da RBTR é sempre significativo, pois permite a troca entre os grupos, o debate político e a possibilidade de se travar conhecimento das diversas realidades do Brasil, além de aproximar pessoas e coletivos de relevância histórica na área teatral.
Portanto, a RBTR nos aproximou daquele grupo que a oito anos atrás tinha nos mostrado possibilidades de atuação na rua. Feito as devidas aproximações de companheirismo, de nos colocarmos como parceiros de lutas e na articulação por um teatro de rua cada vez mais expressivo e digno, faltava estabelecer uma troca artística.
Quando o Buraco escreveu o projeto Narrativas de Trabalho, contemplado na 16ª Edição do Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, inserimos em seus objetivos uma ação pedagógica, que possibilita o aprendizado por meio da troca de experiências. Então, para efetivarmos as relações construídas com a Oigalê, convidamos Hamilton Leite para aplicar uma vivência com base no trabalho desenvolvido na Oigalê. Essa vivência, ocorrida na primeira semana de novembro de 2010, deixou-nos relevantes pontos para o nosso trabalho futuro. Hamilton não nos trouxe algo extraordinário, ou mesmo novo, mas sim o exemplo, por meio de diversos exercícios, de como o desenvolvimento do trabalho do ator está relacionado ao aprimoramento de seu repertorio pessoal. Por meio do trabalho com imagens e jogos, tomando o corpo como elemento central do jogo cênico, vivenciamos a possibilidade de criações cênicas por outros caminhos, o que nos deu uma noção de como são construídos os trabalhos da Oigalê.
Como forma de ilustrar o que discutimos e praticamos durante três dias, fomos agraciados com o belo espetáculo Negrinho do Pastoreio, apresentado na 5ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, ocorrido no mesmo período. Ali pudemos identificar também os elementos que havia no primeiro espetáculo, presenciado em 2000.
A relação de troca estabelecida com a Oigalê, é um exemplo claro de como, de fato, atualmente os grupos de teatro de rua estão conectados e atuando em rede, o que tem nos permitido construir um mecanismo de aprendizagem baseado na troca de experiência entre os grupos. E hoje, já somos mais que alguns, somos milhares espalhados de norte a sul deste imenso palco chamado Brasil.
Vida longa a Oigalê CAT!!!!!

Edson Paulo – ator do Buraco d`Oráculo

Publicado originalmente no Informativo da Oigalê CAT




[1]Apresento um relato em que misturo minha história e a de meu grupo, por isso o uso de primeira e de terceira pessoa.

sábado, 14 de maio de 2011

Ministra da Cultura na Cidade Tiradentes

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Breve Relato sobre a visita da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, ao Centro Cultural Arte em Construção, sede do grupo teatral Pombas Urbanas, no bairro Cidade Tiradentes no dia 09 de maio de 2011.


Hoje, dia 9 de maio de 2011, recebemos a visita da Ministra da Cultura Ana de Hollanda, no bairro Cidade Tiradentes no Centro Cultural Arte em Construção, sede do Grupo Teatral Pombas Urbanas, Ponto de Cultura desde 2005. Com pouco tempo para organizar e articular a recepção (já que contato para a visita foi feito no domingo,dia 08, à noite, por representantes do MINC, sendo que ela estaria na zona leste de São Paulo), o Pombas Urbanas comunicou-se rapidamente com as redes e movimentos que integra e grupos parceiros da região leste.


Às 11h30 do dia 09, a ministra chegou acompanhada do representante da regional do MINC de São Paulo Tadeu di Pietro e pelo coordenador da Funarte de São Paulo, Tadeu de Souza. No Centro Cultural estiveram presentes representantes do Ponto de Cultura Movimento Cultural da Penha, Ponto de Cultura Associação Raso da Catarina, Movimento Nossa Zona Leste, Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, Escola de Samba Príncipe Negro e grupos de jovens de teatro da Cidade Tiradentes que integram a Rede Livre Leste como Bico de Lata, Filhos da Dita e grupo de Maracatú Malungos Urbanos.


Os integrantes do  Pombas Urbanas apresentaram o espaço do Centro Cultural Arte em Construção e falaram dos projetos desenvolvidos e dificuldades na manutenção e realização de ações culturais do espaço que há alguns meses aguarda repasses de recursos por parte do Programa Cultura Viva. Foi colocada à Ministra as dificuldades de enfrentadas por nós e diversos movimentos sociais, organizações culturais e grupos artísticos que se encontram na mesma situação.

Adriano Mauriz, ator do Pombas e representante do Estado de São Paulo na Comissão Nacional dos Pontos de Cultura entregou a Ministra a mesma carta entregue ao representante regional do MINC que foi formulada pelos Pontos de Cultura do Estado de São Paulo com as dúvidas e questionamentos em relação ao MINC, conforme acertado na última reunião com Marta Porto, atual secretária da SCC – Secretaria da Cidadania Cultural, no mês de março. Também foi reforçada a necessidade da realização de um Seminário para debate do Marco Legal do Programa Cultura Viva na Funarte de São Paulo e realização da TEIA Paulista.


Durante a visita, Tadeu di Pietro, representante da Regional do MINC em SP, confirmou a realização de um mutirão de funcionários do MINC e um grupo voluntário do Movimento dos Pontos de Cultura de São Paulo com o objetivo de solucionar problemas burocráticos de Pontos de Cultura com pendências junto ao MINC no dia 16/05/2011 na regional SP, conforme solicitado pelo Movimento Paulista dos Pontos de Cultura durante encontro com a Sra. Marta Porto.


Na oportunidade da visita também foram entregues à Ministra Ana de Hollanda:

 - a carta da Rede Brasileira de Teatro de Rua lida no Congresso Brasileiro de Teatro realizado em 27 de março na cidade de Osasco e enfatizado a proibição de apresentações artísticas, teatrais e culturais pelo poder público contra os artistas de rua em território nacional ferindo o artigo 5º da Constituição Brasileira.Também foi entregue uma cópia do projeto da 6ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, a ser realizada em novembro do corrente ano, que terá como homenageado o diretor Krugli do grupo Vento Forte, como símbolo de resistência de ocupação de espaço público, reivindicação do Movimento de Teatro de Rua que luta pelo reconhecimento do poder público de que espaços públicos a céu aberto possam ser ocupados e  tornarem-se sedes públicas dos grupos de teatro de rua. Informamos ainda do adiamento do IX Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua em Arco Verde - Pernambuco, que seria realizado em maio e foi adiado para julho por falta de apoio da Funarte e do Ministério da Cultura.

- o Manifesto da Rede Livre Leste formada por jovens Grupos de Teatro da Zona Leste de São Paulo;
- o documento construído pelo Movimento Nossa Zona leste com a discussão de Metas para Políticas Culturais para região da Zona Leste da cidade de São Paulo.
  A ministra recebeu também o documentário "El Quijote" e documentos da criação da Rede Latinoamericana de Teatro em Comunidade, que integra dezenas de experiências e redes de 10 países latinoamericanos que estão transformando sua realidade social com o teatro e a cultura. Juntamente com este material, lhe foi entregue uma carta do movimento para implantação do Programa Pontos de Cultura em toda América Latina – proposta que vem sendo discutida por diversas redes e organizações culturais latinoamericanas em encontros e que em outubro de 2010, foi potencializada com a realização do Plataforma Puente, na cidade de Medellin, Colômbia.

 De acordo com a própria ministra, a visita faz parte de uma série de viagens que ela está realizando em todo país para conhecer de perto a realidade de trabalhos culturais desenvolvidos que recebem de alguma forma apoio do Ministério da Cultura.  Nesta segunda-feira, além do Centro Cultural Arte em Construção, a ministra realizou visitas a projetos e espaços que têm parceria com o Ministério da Cultura, como a Capela de São Miguel Paulista, um patrimônio histórico reformado recentemente com apoio do MINC."
Marcelo Palmares

Pombas Urbanas

terça-feira, 10 de maio de 2011

Teatro de Rua: manifestação política, pública e popular?

Teatro de Rua: manifestação política, pública e popular?[1]
Adailtom Alves Teixeira[2]
Podemos afirmar categoricamente que teatro em espaços abertos sempre existiu desde a Antiguidade, no entanto, se levarmos em consideração o substantivo rua que, colado a palavra teatro, se adjetivou, podemos dizer que é uma característica moderna, já que a rua como conhecemos atualmente é um advento da modernidade. Se seguirmos essa lógica, teremos no teatro de rua uma arte urbana, sendo produzida apenas nas cidades. Não obstante, se pensarmos nos rincões de nosso Brasil, o teatro de "rua" chega a trilhas, comunidades ribeirinhas, tribos, entre outros, universos bem distintos do que se entende por urbano ou cidade. E mesmo muitas cidades brasileiras mantêm o seu pequeno núcleo urbano e sua quase totalidade ainda é rural, como pude presenciar em uma temporada por dez cidades gaúchas (ainda que seja possível afirmar que as áreas rurais estejam hoje tomadas pela cultura urbana).
O tempo e a disposição ao aprendizado nos ensinam lições maravilhosas. Não faz muito tempo, exatamente em 2008, após dialogar com uma pequena bibliografia (devido à ausência de materiais teóricos sobre o assunto) defini teatro de rua nos seguintes termos:
"(...) teatro de rua é uma manifestação marginal que utiliza o corpo e o discurso no espaço aberto urbano a serviço do estético, apropriando-se ou não da paisagem urbana como cenário, de maneira a permitir a fruição a um público passante."
Naquele momento estava pesquisando o teatro de rua paulistano, dessa forma, o termo urbano presente na definição cabia muito bem, mas ao ampliarmos e pensarmos em termos de Brasil, não apenas o termo urbano não cabe, mas também o público passante, pois o que se tem visto na realização de alguns projetos como "Banzeirando"[3]do Imaginário de Rondônia, ou as atuações do Vivarte[4]nas tribos do Acre, para citarmos apenas dois exemplos, essa definição não cabe ou define apenas em parte o teatro de "rua" brasileiro. Nos dois projetos acima o adjetivo rua ganha uma conotação mais ampla, pois em ambos os projetos realizados pelos grupos supracitados chegava-se aos lugares de barco e seguia-se depois por trilhas para apresentarem-se em pequenas comunidades ou tribos indígenas. O Brasil é bem mais amplo que o espaço urbano, ainda que o último censo de 2010 nos apresente dados contundentes, mais de 80% da população brasileira moram em áreas urbanas[5]. O que se pode afirmar sem incorrer em risco é que o teatro de rua brasileiro é tão diverso quanto os espaços que ocupa.
Continuando abordando os vocábulos presentes no título desse texto, passemos ao termo manifestação. Segundo Antônio Geraldo da Cunha em seu Dicionário etimológico da língua portuguesa (2010), o verbo manifestar significa "tornar público, notório, apresentar, declarar, revelar, divulgar"; torna, portanto, manifesto (patente, claro, evidente) uma intenção, que por ser uma ação do homem, é política. Pois, desde Aristóteles afirma-se que o homem é um animal político. Dessa forma, o teatro de rua, revela-se como ações dos homens sobre os homens, logo, são ações políticas.
O termo política deriva do grego polis, que refere-se as Cidades-Estados da Grécia Antiga. "A polis se constituía como uma unidade política e territorial, sobretudo através do vínculo que seus cidadãos mantinham com ela por lealdade(sic), identidade cultural e origem" (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006: 220). Do aglomerado, da junção dos cidadãos em determinado território (na cidade) deriva o termo político, bem como de suas funções, isto é, cabe aos cidadãos o "destino" dos negócios e do governo da cidade.
Desse ponto de vista, o teatro de rua ao inserir-se na polis manifesta sua atitude política, pois reúne os cidadãos em torno de uma obra que propõe a discussão de algo, daquilo que apresenta o espetáculo. Cabe destacar ainda que o simples fato dos cidadãos se colocarem em roda em um espaço público aberto é uma atitude política, pois instaura a ágora (assembleia). E se pensarmos que a rua não foi pensada para a fruição das artes o sentido político se amplia, já que ao colocar-se em local aberto o teatro desorganiza a função inicial do espaço da "rua", dando-lhe nova significação, a saber, a possibilidade de fruição de uma obra de arte.
Se entendermos público em seu sentido lato, isto é, como algo "relativo, pertencente ou destinado ao povo, à coletividade" (CUNHA, 2010: 531), é possível entendermos o teatro de rua como uma manifestação pública, posto colocar-se no espaço que, em tese, é de todos, já que não seleciona os fruidores da obra artística. Por outro lado, é sempre bom atentarmos que o simples fato de está em local público, não faz dessas obras uma arte de todos, isto é, nem tudo que está em meio ao povo é do povo (Cf. CHAUÍ, 2003). Assim chegamos ao último e controverso termo: popular.
Démos é um termo grego que indicava parte de um território ocupado por um grupo de pessoas, por isso, depois ganhou o sentido de étnico povo e depois o sentido político em oposição ao rei, daí democracia (governo do povo). Ora, se há um grupo de pessoas que se opõe a outro grupo, isso significa que há um embate entre eles, existe disputa e nessa disputa uns saem vencedores e exercem a dominação sobre os demais. Na sociedade capitalista existem dois grandes grupos: a classe dominante e classe dominada, o povo[6]. Mas o povo é um universo amplo:
(...) lato sensu costuma-se considerar como povo não só o operariado urbano e rural, os assalariados dos serviços, os restos do colonato, mas, ainda, as várias camadas que constituem a pequena burguesia, não sendo possível agrupar em um todo homogêneo as manifestações culturais de todas essas esferas da sociedade (CHAUÍ, 2003: 45).
Se existe o povo, existe uma cultura do povo ou culturas do povo, como prefere Marilena Chauí (2003), fugindo do termo cultura popular, já que o adjetivo popular pode descambar para um populismo ou outros projetos de dominação das classes dominantes.
Assim, em um universo tão vasto como o povo, ou se preferirmos nas classes populares, não é possível entendermos que há unificação das manifestações culturais, logo não existe arte "popular", faz-se necessário ao menos pluralizarmos o vocábulo popular.
Focando na questão do teatro de rua, perguntando-nos se o mesmo é ou não popular; ainda que a resposta não seja definitiva, é importante termos claro e defendermos que o mesmo seja uma arte do povo. Logo, em sendo do povo ou para o povo, deve contrapor-se à outra forma de arte: aquela produzida pelas classes dominantes. Ora, se existem culturas populares é porque existem outras formas de culturas que não o são e ambas, tanto as populares como a arte de elite, via de regra, são nominadas por aqueles que detêm um saber formal, logo, existe valoração entre as culturas, afinal, como nos lembra Antônio Augusto Arantes em O que é cultura popular, "(...) na sociedade capitalista, o que é "popular" é necessariamente associado a "fazer" desprovido de "saber"." (1995: 14) Existe aí uma separação entre o pensar e o fazer, como se o fazer estivesse destituído de saber, logo há uma valorização de uma em relação a outra, sendo também uma forma de dominação. Nesse sentido, as culturas populares saem perdendo, posto seus praticantes não terem os canais de valorização das mesmas, isto é, lhes falta o saber acadêmico, que em uma sociedade dividida em classes, se sobrepõe aos demais saberes. Mesmo assim, adotemos aqui o conceito de popular, sem, no entanto, fazermos juízo de valor entre as culturas, mas tão somente para distinguir de qual lado estamos.
Do nosso ponto de vista nem todo teatro de rua é popular, sobretudo se tomarmos o embate entre as classes como discernimento sobre o que é ou não popular. E não podemos esquecer também que mesmo nas artes mais populares, no sentido daquelas que nascem do seio do povo, carregam elementos conservadores, pois as ideias dominantes de uma época, são sempre as ideias das classes dominantes, como já afirmou Karl Marx, e estas ideias – já que as classes dominantes têm os mecanismos de disseminação das mesmas – encontram-se presente também em meio as classes dominadas.
Podemos, então, adotar como teatro de rua popular, o ponto de vista apresentado por Bertolt Brecht em "O caráter popular da arte e arte realista", artigo presente no livro Teatro e vanguarda (s.d.). O texto de Brecht é de 1938 e afirma que o conceito de popular "(...) não é tão popular como parece" (s.d.: 8), pois o povo não alcançou "(..) o seu pleno desenvolvimento" (s.d.:9), já que foi impedido pelas classes dominantes, por isso o popular tornou-se estático. Assim, o seu conceito de popular
"(...) refere-se a um povo que não só participa plenamente no desenvolvimento histórico, como se apodera dele, o acelera, o determina. Referimo-nos a um povo que fazendo a História, se transforma a si mesmo, e consigo, o mundo. Um povo combativo, implica um conceito combativo de popular" (s.d.: 9-10).
Seu conceito é dialético e implica uma arte que chegue "as largas massas", enriquecendo suas expressões e adotando o ponto de vista daquela parte mais progressista, que tomará os rumos da sociedade; sem, no entanto, esquecer que é preciso ser compreendido pela outra parte do povo, bem como conhecer as tradições culturais e desenvolvê-las. Esses aspectos, requeridos por Brecht, exigem de todos nós muito empenho, pois trata-se de criar uma arte complexa e divertida, em que os elementos abordados dizem respeitos a própria produtividade do trabalhador (Cf. Pequeno Organón para o teatro). Segundo o ponto de vista do autor alemão, é preciso compreender o povo hoje para fazermos uma arte que dialogue com todos, tendo em mente que o popular não é estático, mas se modifica. E dentro dessa perspectiva, nem mesmo as clássicas obras populares podem ser tomadas como parâmetros: "Em cada caso particular, a representação da vida deve comparar-se com a própria vida, e não apenas com outras representações da vida" (BRECHT, s.d.: 16).
Não podemos perder de vista a realidade na qual atuamos, nem temermos um mergulho na complexidade de nossos trabalhos artísticos, achando que, por dialogarmos com uma vasta camada da população (crianças, idosos, pessoas com educação formal, analfabetos etc.), não seríamos compreendidos, Brecht alerta:
Falo por experiência, quando digo que não há que ter medo de apresentar ao proletariado coisas audazes, desusadas, desde que tenham unicamente que ver com a realidade. Haverá sempre gente culta, conhecedores que virão interpor-se dizendo: "O povo não entende isso!" Mas o povo afasta impacientemente esta gente e entende-se com os artistas" (s.d.: 14).
Assim, para concluir e retomando o título do presente texto, é preciso termos em mente a ampliação do conceito de teatro de rua. A adjetivação "rua" extrapola os ambientes urbanos, ainda que cada vez mais os ambientes rurais sejam permeados por uma cultura urbana. O teatro de rua, hoje, é uma arte que chega a muitos lugares. E, segundo os conceitos aqui discutidos, é possível afirmarmos que todo teatro de rua é uma manifestação política e pública, mas isso não o faz popular por extensão. Nem todo teatro de rua é popular, mas pode vir a ser, desde que adote o ponto de vista do povo, sobretudo daquela camada mais progressista. Para que o teatro de rua seja popular faz-se necessário que os seus fazedores conheçam sua época, seu povo e sua cultura e os coloque em cena de forma complexa, nas suas ricas contradições. A arte é uma forma de apreensão do mundo e quando esse mundo adentra a cena, tomando como referência os saberes, os fazeres, as tradições (mas sem se prender a elas, mas sim reinventando-as), esse mundo se enriquece e avança. Eis os caminhos de um teatro de rua popular.
Bibliografia consultada
ALVES Teixeira, Adailtom. A Rua Como Palco: o teatro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. Monografia. São Paulo, Universidade Cruzeiro do Sul, 2008.
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. 14ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BRECHT, Bertolt. "O Caráter popular da arte e arte realista". In: BRECHT, B. et al. Teatro e vanguarda. Trad.: Luz Cary e Joaquim José Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, s.d.
CHAUÍ, Marilena Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 10ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
_____. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro, 2010.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.



[1]Texto criado para ser falado na I Feira de Teatro de Rua de Sorocaba, no dia 04/05/11.
[2]Mestrando do Instituto de Artes da Unesp; ator e diretor teatral.
[3]http://projetobanzeirando.blogspot.com/
[4]http://blogdovivarte.blogspot.com/2009/06/diario-de-bordo-8-dia-1906.html
[6]A discussão pede um aprofundamento, sobretudo em relação ao conceito de classe, mas optamos simplificar, dado o espaço e tendo em mente o objetivo para o qual foi preparado esse texto.


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Mostra Cia. As Marias de Artes de Rua


Olá a todos amigos e amigas, 

É com muito prazer que convidamos a todos a acompanhar, prestigiar, divulgar a MOSTRA CIA. AS MARIAS DE ARTES DE RUA que acontecerá durante os fins de semana do mês de maio em São Bernardo do Campo. 


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Cia.As Marias

(11)-4341-6524/ (11) 9180-4837(Cristiane)

(11)9921-2842 (Patrícia)

sábado, 7 de maio de 2011

Programação Boa Praça

segunda-feira, 2 de maio de 2011

1º de Maio

Primeiro de Maio: dia de luta (e festa) ou dia de festa (e luta)?

Por trás dos mitos fundadores do 1º de Maio, o caráter dúplice desta data - simultaneamente dia de luta e de festa - aparece desde suas origens, e não como "desvio" de um evento originalmente criado como dia de luta.
haymarketManifestação em Haymarket, em Chicago, Maio de 1886.
É sabido e consabido que o Primeiro de Maio é o Dia do Trabalhador, não o Dia do Trabalho como consta em nossos calendários de feriados; que a data surgiu do protesto da classe trabalhadora contra o Massacre de Haymarket, acontecido em 1886 em Chigago (EUA), no qual policiais abriram fogo contra uma multidão de manifestantes em resposta a uma bomba lançada contra a polícia; que por supostamente haver lançado a bomba foram condenados à morte Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, sendo que este último se suicidou para não ser enforcado; que em resposta a estas execuções, os trabalhadores de todo o mundo resolveram paralisar suas atividades todos os anos no dia Primeiro de Maio etc. Mas, como em qualquer dia comemorativo, nem sempre o mito fundador reflete fielmente a história real. Mitos, afinal, são histórias fantasiosas que se contam de geração em geração para registrar um evento marcante ou os feitos de determinada figura histórica, para marcar a passagem do tempo ou explicar fenômenos da natureza, enquanto a história se contenta, mais humildemente, em explicar o que se passou para que não cometamos os mesmos erros do passado.
A história tradicional do Primeiro de Maio, tal como é contada por sucessivas gerações de militantes do movimento operário, mesmo obscurecida pelo tempo e pela ação daqueles que quiseram usar a data para seus próprios fins – desde os nazi-fascistas, que recuperaram o Dia do Trabalhador como Dia do Trabalho para abafar a memória das lutas; até os capitalistas de todas as matrizes, que ou bem mudam a data do Dia do Trabalho para evitar a agitação socialista, ou bem usam o dia para sortear carros, casas, dinheiro e prêmios para os operários-padrão – contém ainda elementos de mito, de lenda, que não contribuem para expor na própria gênese da data comemorativa elementos que depois vieram a ser qualificados como elementos de sua degeneração.
Deixemos, então, a mera narrativa dos fatos e acontecimentos para as Wikipédias. É preciso resgatar alguns elementos menos conhecidos do Primeiro de Maio, levantar hipóteses sobre sua origem para analisarmos melhor seu conteúdo e desenvolvimento histórico. Teremos, para isso, que recuar até muito antes de 1886. Surpreendentemente para um artigo aberto com a crítica das lendas e mitos, nos vemos obrigados a recuar até as origens de uma data comemorativa que os místicos conhecem bem – a Noite de Walpurgis.
I
1_maio_mastro
Gravura que representa o Maypole, ou dança do mastro.
O primeiro dia de maio, no Hemisfério Norte, cai quase exatamente entre um solstício e um equinócio, marcando a transição entre inverno e primavera; por este motivo, antigas religiões européias, cada uma por seu motivo (celtas homenageavam Beltane, o deus do fogo, enquanto vikings invocavam seus deuses da fertilidade), deixaram marcada na tradição esta data como a da Noite de Walpurgis, na qual se acendiam grandes fogueiras e dançava-se algo semelhante ao que se conhece no Brasil e em Portugal como a Festa do Mastro: um grande mastro com fitas era erguido para que jovens dançassem ao redor dele segurando cada um a ponta de uma das fitas, resultando que ao final da dança, com as fitas já bastante embaraçadas ao redor do poste, poderiam – quem sabe! – arrumar alguém com quem se amarrar…
Apesar de a tradição destas comemorações de maio manter-se viva na Alemanha, na Grécia, na Suécia, na Inglaterra e em alguns outros países do Hemisfério Norte através de fogueiras, da festa da Rainha de Maio, da Morris Dance e da "dança do mastro", tanto a perseguição oficial – o Parlamento britânico chegou a declarar a festa ilegal em 1644 por força de sua "promiscuidade" – quanto a dessacralização do mundo promovida pelo capitalismo apagaram qualquer vestígio religioso da comemoração, que ficou restrita a um dia de celebração da fertilidade, hoje quase esquecido.
Tal como o Parlamento britânico muito depois, a Igreja Católica tentou eliminar os festejos sob o argumento de que esta festa seria, na verdade, o "aniversário do diabo" ou algum tipo de sabá; sendo infrutífera a estratégia, a Igreja incorporou a Noite de Walpurgis em seu calendário como celebração do martírio de santos, comemoração da descoberta de relíquias santas ou desculpas semelhantes; o mais curioso é o Dia de Santa Walburga (também conhecida como Walpurga), monja beneditina que teria vivido entre 710 e 779 e dirigido o convento de Heidenheim, na Alemanha. Além da evidente semelhança de nome entre a santa e a data comemorativa, celebrava-se sua memória queimando fogueiras contra os poderes malignos, tal como os "pagãos" acendiam fogueiras em homenagem a seus deuses…
II
Mas deixemos estas velharias para trás. Retornemos a 1886. Entremos brevemente na história da manifestação que desembocou no Massacre de Haymarket.
O Primeiro de Maio resultou de um crescendo nas lutas pela jornada de oito horas nos Estados Unidos. Já em 1829, trabalhadores reivindicaram do legislativo de Nova Iorque a implementação da jornada normal de trabalho. O movimento operário estadunidense estava então dividido em algumas grandes federações sindicais e organizações similares, que disputavam os sindicatos com as piores táticas. Enquanto a National Labor Union (NLU) e os Industrial Congresses eram organizações criadas de cima para baixo por lideranças sindicais, organizações como os Knights of Labor surgiram posteriormente a partir da base como grupos secretos contra as listas negras e dedos-duros [denunciantes e provocadores]. A Federation of Organized Trades and Labor Unions (FOTLU) – organização que viria a se tornar em 1886 a toda-poderosa American Federation of Labor (AFL), e que já era desde 1881 presidida por Samuel Gompers – surgiu a partir da iniciativa de membros dos Knights of Labor descontentes com a organização, e muito breve, após sua transformação em American Federation of Labor, viria a suplantar sua supremacia no movimento operário. A disputa entre organizações não era limitada por qualquer forma de solidariedade de classe: os Knights of Labor, por exemplo, chegavam ao ponto de não apenas proibir seus membros de participar de greves e mobilizações puxadas pela FOTLU, mas também recomendavam-lhes oferecer-se como fura-greves em tais situações.
Em 1884, deliberou-se no quarto congresso da FOTLU por um ultimato: ou bem a jornada de oito horas seria implementada por lei, ou bem os trabalhadores estadunidenses entrariam em greve geral no dia 1.º de maio de 1886. Andrew Johnson, então presidente dos EUA, promulgou ainda em 1886 a Lei Ingersoll implementando a jornada reivindicada, mas como ela não passava de letra morta a FOTLU decidiu manter o ultimato e convocou a greve geral. O primeiro dia da greve contou com a participação de dez mil trabalhadores em Nova Iorque, onze mil em Detroit, cerca de dez mil em Milwaukee e, no país inteiro, entre trezentos a quinhentos mil trabalhadores conseguiram implementar a jornada de oito horas através da greve e de manifestações massivas, ou de sua simples ameaça.
Só em Chicago a situação ficou mais tensa. A greve, que contou com quarenta mil participantes no dia 1º de maio, durou mais dois dias. Fura-greves foram contratados, e os grevistas, cuja paralisação, comícios e passeatas seguiam bastante tranquilos e sem incidentes até o dia 3 de maio, foram atingidos pela fuzilaria da polícia na porta de uma fábrica, evento que resultou em seis mortes. Este fato foi o estopim [rastilho] para a convocação, para a noite de 4 de maio, de um comício gigantesco marcado para a Haymarket Square ("Praça do Mercado do Feno") – não pela FOTLU, mas por uma organização anarquista chamada International Working People's Association (IWPA) fundada e liderada por Albert Parsons.
O comício corria bem, e após a fala de diversos oradores não houve qualquer sinal de violência – mesmo o prefeito [presidente da Câmara], que havia parado para ver o comício, voltou para casa mais cedo, talvez acreditando que nada fosse acontecer – até que a polícia decidiu dispersar a multidão às 10h30min; alguém lançou uma bomba contra a formação policial que já marchava contra a multidão, e o que se seguiu foi uma fuzilaria descontrolada que durou cinco minutos e causou a morte de quatro trabalhadores e seis policiais, deixando feridos sessenta policiais e um número desconhecido de trabalhadores – poucos dentre os feridos "civis" buscaram cuidados médicos, pois temiam a prisão.
O resto é história: Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, lideranças do movimento operário local, foram presos sob acusação de haverem planejado e executado o atentado a bomba, depois condenados à morte etc. Basta voltar ao primeiro parágrafo que está tudo lá, e quem quiser pode ir a qualquer fonte atrás de informações. Não obstante Samuel Gompers, presidente da FOTLU e depois da AFL, dizer que "embora os militantes de base mais equilibrados da AFL não concordem com os radicais, eles não podem abandoná-los ao inimigo comum", ele não hesitava em dizer também que "divergiu por toda a vida com os métodos dos condenados". Já Terence V. Powderly, líder dos Knights of Labour, diria que "os Knights of Labour não têm filiação, associação, simpatia ou respeito pelo bando de assassinos covardes, degoladores e ladrões conhecidos como anarquistas".
Observem que coisa curiosa: o Massacre de Haymarket, fato que, segundo o mito fundador, dá origem ao Primeiro de Maio, na verdade aconteceu no dia 4 de maio. Para a posteridade ficou não a data do evento, mas a data determinada pela FOTLU para a paralisação inicial. Pior: nem a AFL – criada 17 dias após o Massacre de Haymarket – nem os Knights of Labour apoiaram os condenados.
III
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Ben Shahn, Desemprego, 1938.
Trairagens [traições] à parte, como o Primeiro de Maio foi transformado na data internacional de luta dos trabalhadores?
Rosa Luxemburgo, no artigo Quais as origens do Primeiro de Maio? (publicado no jornal polonês Sprawa Robotnicza [Causa Operária] em 1894), afirma que a primeira tentativa de criar um "feriado proletário" como parte da luta pela jornada de oito horas surgiu na Austrália, em 1856; a data originalmente prevista pelos australianos não foi o Primeiro de Maio, mas o dia 21 de abril. Resgata que a ideia do "feriado proletário" fermentou mundo afora e que foi bastante discutida em 1889 no congresso de fundação da II Internacional, em julho de 1889:
"(…) o movimento operário na Europa havia se fortalecido e animado. A mais poderosa expressão deste movimento ocorreu no Congresso Internacional de Trabalhadores em 1889. Neste Congresso, assistido por quatrocentos delegados, foi decidido que a jornada de oito horas deveria ser a primeira reivindicação. Foi então que o delegado dos sindicatos franceses, o trabalhador [Raymond] Lavigne de Bordeaux, fez uma moção para que esta reivindicação fosse expressa em todos os países através de uma paralisação universal do trabalho. O delegado dos trabalhadores americanos [Hugh McGregor] chamou a atenção para a decisão de seus camaradas de fazer greve no dia 1.º de maio de 1890, e o Congresso deliberou que esta data seria de celebração proletária universal."
Mas Rosa resumiu demais as coisas, como seria de se esperar num artigo jornalístico. Na verdade, a mesma American Federation of Labour cujo presidente buscava não se associar com a imagem dos "radicais", alguns anos depois, já havia adotado o Primeiro de Maio como data oficial para suas manifestações. Ponto para o "golpe de gênio" de Samuel Gompers, que deu ordem direta para que a delegação da AFL ao congresso apresentasse a proposta de data. Nas palavras do próprio:
"Na medida em que os planos para a jornada de oito horas eram desenvolvidos, estávamos constantemente pensando em como alargar nossos objetivos. Como a data de realização do Congresso Internacional de Trabalhadores de Paris se aproximava, me veio a ideia de que poderíamos ajudar nosso movimento com uma moção de simpatia daquele congresso."
Logo Gompers contatou Hugh McGregor para enviá-lo ao congresso, onde, mesmo enfrentando a oposição da delegação alemã – que incluía Wilhelm Liebknecht e August Bebel, líderes da poderosa social-democracia germânica –, fez aprovar a moção cujo texto original é este:
"Uma grande manifestação internacional deve ser organizada numa data fixa, de modo que os trabalhadores de todos os países e de todas as cidades possam, num dia determinado, dirigir simultaneamente às autoridades públicas uma reivindicação para fixar a jornada de trabalho em oito horas por dia e para colocar em prática as demais resoluções do Congresso Internacional de Paris. Tendo em vista o fato de que tal manifestação já foi deliberada pela American Federation of Labour na sua convenção de dezembro de 1888 em St. Louis para acontecer no dia 1.º de maio de 1890, este dia é aceito como o dia para a manifestação internacional. Os trabalhadores das várias nações devem organizar a demonstração de modo apropriado às condições de seus países."
IV
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Max Beckmann, A Noite, 1918-1919.
Há quem pergunte a esta altura: "que diabos têm a ver Primeiro de Maio, uma festa pagã perdida no tempo e essa trairagem toda?" Não pensem que a Igreja Católica é a única a fixar suas datas comemorativas com base em festas populares; o movimento operário, ou ao menos suas organizações mais ostensivas, também faz das suas. É tanta coincidência que não parece que esta data haja sido escolhida inocentemente pelo movimento operário para grandes paralisações.
É difícil saber, hoje, o que realmente se passou pela cabeça dos delegados aos congressos da FOTLU de 1884 e da AFL de 1888, mas é razoável supor que, no congresso de 1884, uma vez que os Estados Unidos são um dos países onde, ao menos no século XIX, a tradição das festas populares do Primeiro de Maio se mantinha, estes delegados hajam escolhido como dia de paralisação justamente um dia de festas populares para unir a propaganda e a ação militantes aos festejos – ou seja, unir o útil ao agradável. Em 1888, se esta hipótese estiver correta, o que a AFL fez foi ligar o Massacre de Haymarket ao Primeiro de Maio ao invés de rememorá-lo em sua data correta, pois assim, mais uma vez, a agitação poderia ser feita durante os festejos populares.
A hipótese é arriscada, mas não surge à-toa. Já em 1894 o poeta Walter Crane escrevera um poema chamado The Worker's Maypole (O Mastro de Maio dos Trabalhadores), que ligou diretamente o Primeiro de Maio com a dança do mastro remanescente da antiga Noite de Walpurgis. (Maypole, que se traduz diretamente para o português como "mastro de maio", é o nome inglês para o mastro usado na dança de mesmo nome, típica das festas de Primeiro de Maio no mundo anglo-saxão.) Além disso, não faltam registros de que, apesar de a Noite de Wapulrgis ser uma festa eminentemente anglo-saxã, germânica e nórdica, no início do século XX o Primeiro de Maio celebrava-se em regiões do mundo não afetadas por estas culturas não apenas com grandes comícios, mobilizações e paralisações – que invariavelmente encontravam violenta oposição das autoridades, especialmente da polícia e das forças armadas –, mas também com festas, piqueniques e outras atividades aparentemente menos "militantes".
Se esta hipótese estiver correta, o duplo caráter do Primeiro de Maio – dia de festa e luta – não parece ser invenção recente, mas sim elemento constitutivo seu desde o princípio, embora tudo indique que, postos seus dois aspectos na balança, nesta época o prato da luta pesasse mais.
V
Apesar das trairagens de suas origens, o Primeiro de Maio foi vigorosamente adotado pelos trabalhadores de todo o mundo como seu dia de luta – e de festa. Não foram poucos os trabalhadores, nestes primeiros anos do Primeiro de Maio, a ter sua consciência social despertada a partir da história dos Mártires de Chicago e das ações militantes de todos os anos.
A simbologia do Primeiro de Maio, a bem da tranquilidade da exploração capitalista, precisava ser extinta, morta, soterrada por cem mentiras contadas pelo menos cem vezes. Vimos que tanto a AFL quanto os Knights of Labour já haviam tentado lançar uma pá de terra sobre a memória dos condenados; esta segunda pá de terra pretendia ser definitiva, pois não era lançada apenas sobre a memória dos condenados, mas sobre o caráter combativo do Primeiro de Maio. Surgiu, assim, uma longa fila de indivíduos, grupos e classes sociais dispostas a mistificar o significado do Primeiro de Maio e aproveitar a mobilização social provocada pela data em seu próprio favor.
Em primeiro lugar na fila dos mistificadores vieram os capitalistas. Os Knights of Labor, conhecidos por sua postura colaboracionista frente aos empresários com quem negociavam, inauguraram a tradição de um "dia do trabalho" fazendo passeatas e manifestações na primeira segunda-feira de setembro a partir de 1882; esta data foi decretada Dia do Trabalho nos EUA pelo presidente Grover Cleveland, que pretendia, explicitamente, evitar qualquer forma de agitação socialista fundada no Massacre de Haymarket. Em 1958, no auge da Guerra Fria, o Congresso estadunidense decretou que o 1º de maio seria não o Dia do Trabalhador ou do Trabalho, mas sim o Dia da Lealdade: um dia "dedicado à reafirmação da lealdade aos EUA e ao reconhecimento da herança da liberdade americana", segundo o texto da lei que o instituiu. Mais modestamente, Pio XII tentaria em 1955 enfiar pela goela dos católicos um certo "Dia de São José Operário" para substituir o Primeiro de Maio, com menos sucesso.
Em segundo lugar na fila dos mistificadores vieram os burocratas da União Soviética. Já em 1918 o 1º de maio havia sido transformado em assunto de Estado; segundo um decreto de 12 de abril de 1918, as estátuas em homenagem aos czares e seus servos já deveriam ter sido retiradas nesta data, e outras novas, criadas por uma comissão da diretoria do Departamento de Belas-Artes do Comissariado para a Educação, deveriam ser inauguradas durante o evento. A mesma comissão teria o dever de "organizar a decoração da cidade para o 1º de maio e substituir inscrições, emblemas, nomes de ruas, brasões etc. por outros novos que reflitam as ideias e o sentimento da Rússia revolucionária e operária". Anatoly Lunacharsky, um dos signatários deste decreto, registraria em seu diário a respeito do 1º de maio em Petrogrado:
"Sim, a celebração do Primeiro de Maio foi tornada oficial. Foi celebrada pelo Estado. A força do Estado ficou evidente de várias maneiras. Mas não é inebriante pensar que o Estado, até recentemente nosso pior inimigo, agora nos pertence e celebrou o Primeiro de Maio como seu grande festival? Ainda assim, (…), se este festival fosse meramente oficial, não teria produzido nada além de frieza e vacuidade. Mas não, as massas do povo, a Marinha, o Exército Vermelho, todos os trabalhadores sinceros direcionaram seus esforços para ele. Podemos dizer, portanto, que este festival do trabalho nunca foi tão bonito."
Daí para as grandes paradas e marchas sob Stalin não faltou muito.
Em terceiro lugar na fila dos mistificadores vieram os fascistas italianos. As massivas paradas fascistas tinham como modelo nada mais, nada menos que as comemorações do 1º de maio na União Soviética sob o stalinismo. O dia foi incorporado às comemorações fascistas, dada a origem sindicalista de sua militância.
Em quarto lugar na fila dos mistificadores vieram os nazistas. O Primeiro de Maio na Alemanha sob o nazismo foi transformado, como outros eventos, num palanque para os inflamados discursos de Adolf Hitler perante milhares de nazistas enfileirados sob gigantescas suásticas desfraldadas. Além disso, os responsáveis pela propaganda e arquitetura nazistas trataram de resgatar a tradição nórdica da Noite de Walpurgis – era comum encontrar "Mastros de Maio" em meio às torres com suásticas, tal como no bombástico festival do 1º de maio de 1934 testemunhado por James D. Mooney – executivo da General Motors que, mesmerizado, entraria no gabinete de Hitler no dia seguinte ensaiando um desajeitado sieg heil e facilitaria as relações entre a Opel (subsidiária da GM) e o governo alemão – ou no 1º de maio de 1936, realizado no Lustgarten berlinense.
Estas quatro formas de mistificação do caráter de luta do Primeiro de Maio frutificaram mundo afora, a leste e a oeste, em países capitalistas ou "socialistas". Nâo é à-toa que Getúlio Vargas cooptou a data durante o Estado Novo e transformou-a em Dia do Trabalho, uma festa repleta do culto à personalidade de "Gegê, o pai dos pobres" na qual os dirigentes sindicais que contavam com a aprovação do Ministério do Trabalho eram chamados a bajulá-lo. Salazar, ditador de menos sorte neste aspecto, bem que tentou seguir o caminho americano e transformar o Primeiro de Maio no dia de São José Operário – coisa tão estapafúrdia que a proibição pura e simples de qualquer comemoração do Primeiro de Maio pareceu-lhe mais adequada.
Mas há um porém. O que fazem estes mistificadores além de tomar em mãos a balança onde fragilmente se equilibram os aspectos combativo e festivo do Primeiro de Maio e lançar mais pesos no prato das festividades? O dia de São José Operário e o Dia da Lealdade são, sim, artificialidades, mas por acaso os soviéticos inventaram alguma coisa nas comemorações do Primeiro de Maio além da gigantesca ornamentação para a festa? Os fascistas italianos, o que fizeram além de amplificar à exaustão as comemorações sindicais já existentes e submetê-las a seu controle direto? Os nazistas inventaram, sim, a mise en scène e a parafernália propagandística por trás dos discursos hitlerianos, mas por acaso inventaram Walpurgis ou o mastro de maio?
Daí a provocação: o que fazem os sindicatos de hoje com seus mega-espetáculos, seus sorteios de carros e casas, suas comemorações anódinas, o que fazem eles além de seguir a mesma trilha de seus antecessores no esforço hercúleo de ressaltar o caráter festivo do Primeiro de Maio em detrimento de seu caráter combativo?
VI
Um corte abrupto – e, convenhamos, estranho – para as Olimpíadas de 1984. Vinte minutos após a primeira colocada, Gabriela Andersen-Schiess, 39 anos, maratonista suíça, entra no estádio, para o horror da platéia. A insolação e a desidratação faziam dela a mais pálida imagem de uma atleta, ou mesmo de um ser humano. Semi-desmaiada, o tronco recurvado e a força da gravidade a empurrá-la para a frente, quase desabando a cada passo, tentava evitar a desclassificação afastando todas as equipes médicas que vinham atendê-la; ocasionalmente, parava e segurava a cabeça com o braço direito – o esquerdo pendulava desorientadamente, rijo de cãibra – enquanto os quatrocentos metros da reta final pareciam-lhe cada vez mais longos. Quase seis torturantes minutos após sua entrada, cruzou a linha de chegada e desmaiou, exausta, nos braços dos médicos. Apesar de seu fracasso competitivo, seu tempo de 2h48min45s teria-lhe valido a medalha de ouro nas cinco primeiras maratonas olímpicas. Por que não abandonou a prova antes? Quis terminar o percurso porque, segundo contou a jornalistas, devido a sua idade aquela talvez fosse sua primeira e última chance de concorrer numa Olimpíada - e seguiu seu objetivo até muito além do limite de suas forças.
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Primeiro de Maio na Coreia do Norte
O Primeiro de Maio vem quase no mesmo passo. Apropriado para os fins mais diversos por capitalistas, nazistas, fascistas, burocratas e toda escroqueria correlata; amplamente superado como dia de luta por eventos como os Dias de Ação Global, o Grito dos Excluídos, a Outra Campanha, o Abril Vermelho e outras datas menos vetustas; solidamente incorporado aos calendários oficiais de diversos países como feriado; sua origem de luta resta hoje drástica e irremediavelmente desfigurada; seu aspecto festivo serve apenas para engordar o bolso dos artistas que cobram altos cachês nos shows organizados por sindicatos e para alimentar a ilusão dos trabalhadores que a eles comparecem sonhando com o carro cujo sorteio em tais eventos é tão certo quanto a mais-valia nossa de cada dia. Por que dar-lhe ainda crédito como data de mobilizações, cento e treze anos após sua controversa origem?
Mesmo sob os regimes mais autoritários, mesmo sob a mistificação mais cerrada, a celebração do Primeiro de Maio é tradição tão arraigada que não há data mais propícia para mobilizações massivas, ou mesmo atos isolados de resistência – os eventos de 1962 em Portugal e de 1968 no Brasil bem o testemunham. Além disso, não há movimento social autônomo que não o recupere em suas atividades de formação política – que o digam o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento de Sem-Teto da Bahia (MSTB), o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD), a Liga de Camponeses Pobres (LCP) e tantos outros – ou em suas ações militantes – que o digam os autonomen alemães, os piqueteros argentinos, os ativistas que participam do MayDay e tantos outros.
Combalido, enxovalhado, trôpego, o Primeiro de Maio chegou até nós, que vivemos num mar de trabalhadores cada vez mais precarizados a cercar ilhas de hiper-qualificação laboral praticamente inatingíveis e também postos de trabalho formal, com direitos garantidos, que se disputam a unhas e dentes. A instabilidade e a fragmentação são traços marcantes deste momento vivido pela classe trabalhadora. Será possível pormos mais peso na balança do aspecto combativo do Primeiro de Maio para reequilibrá-lo com seu aspecto festivo? Como fazê-lo? Com quem? E para quando? Ou tentá-lo servirá, hoje, apenas para recolocar aos olhos do público o mesmo espetáculo da maratonista suíça de vinte e cinco anos atrás – uma demonstração de esforço sobre-humano, de gana e perseverança, fadada, entretanto, ao mais absoluto fracasso? Passa Palavra