André Breton e Leon Trotski
1) Pode-se pretender sem
exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos perigos
quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de seus meios bárbaros, isto é, deveras
precários, destruíram a civilização antiga num canto limitado da Europa.
Atualmente, é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino histórico,
que vacila sob a ameaça das forças reacionárias armadas com toda a técnica
moderna. Não temos somente em vista a guerra que se aproxima. Mesmo agora, em
tempo de paz, a situação da ciência e da arte se tornou absolutamente
intolerável.
2) Naquilo que ela conserva
de individualidade em sua gênese, naquilo que aciona qualidades subjetivas para
extrair um certo fato que leva a um enriquecimento objetivo, uma descoberta
filosófica, sociológica, científica ou artística aparece como o fruto de um
acaso precioso, quer dizer, como uma manifestação mais ou menos espontânea da
necessidade. Não se poderia desprezar uma tal contribuição, tanto do ponto de
vista do conhecimento geral (que tende a que a interpretação do mundo
continue), quanto do ponto de vista revolucionário (que, para chegar à
transformação do mundo, exige que tenhamos uma idéia exata das leis que regem
seu movimento). Mais particularmente, não seria possível desinteressar-se das
condições mentais nas quais essa contribuição continua a produzir-se e, para
isso, zelar para que seja garantido o respeito às leis específicas a que está
sujeita a criação intelectual.
3) Ora, o mundo atual nos
obriga a constatar a violação cada vez mais geral dessas leis, violação à qual
corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais patente, não somente
da obra de arte, mas também da personalidade “artística”. O fascismo hitlerista,
depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas que expressaram em alguma
medida o amor pela liberdade, fosse ela apenas formal, obrigou aqueles que
ainda podiam consentir em manejar uma pena ou um pincel a se tornarem os
lacaios do regime e a celebrá-lo de encomenda, nos limites exteriores do pior
convencionalismo. Exceto quanto à propaganda, a mesma coisa aconteceu na URSS
durante o período de furiosa reação que agora atingiu seu apogeu.
4) É evidente que não nos
solidarizamos por um instante sequer, seja qual for seu sucesso atual, com a
palavra de ordem: “Nem fascismo nem comunismo”, que corresponde à natureza do
filisteu conservador e atemorizado, que se aferra aos vestígios do passado
“democrático”. A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre
modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades
interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem
que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse
apenas para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e
permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados
atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução social
pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer
solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque
no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais
pérfido e mais perigoso.
5) Sob a influência do regime
totalitário da URSS e por intermédio dos organismos ditos “culturais” que ela
controla nos outros países, baixou no mundo todo um profundo crepúsculo hostil
à emergência de qualquer espécie de valor espiritual. Crepúsculo de abjeção e
de sangue no qual, disfarçados de intelectuais e de artistas, chafurdam homens
que fizeram do servilismo um trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso
testemunho venal um hábito e da apologia do crime um prazer. A arte oficial da
época estalinista reflete com uma crueldade sem exemplo na história os esforços
irrisórios desses homens para enganar e mascarar seu verdadeiro papel
mercenário.
6) A surda reprovação
suscitada no mundo artístico por essa negação desavergonhada dos princípios aos
quais a arte sempre obedeceu, e que até Estados instituídos sobre a escravidão
não tiveram a audácia de contestar tão totalmente, deve dar lugar a uma
condenação implacável. A oposição artística é hoje uma das forças que podem com
eficácia contribuir para o descrédito e ruína dos regimes que destroem, ao
mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um mundo melhor e todo
sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
7) A revolução comunista não
teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem fazer sobre a formação
da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona, a determinação
dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o
homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. Essa única
conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta adquirir, converte o
artista em seu aliado potencial. O mecanismo de sublimação, que intervém em tal
caso, e que a psicanálise pôs em evidência, tem por objeto restabelecer o
equilíbrio rompido entre o “ego” coerente e os elementos recalcados. Esse
restabelecimento se opera em proveito do ”ideal do ego” que ergue contra a
realidade presente, insuportável, os poderes do mundo interior, do “id”, comuns
a todos os homens e constantemente em via de desenvolvimento no futuro. A necessidade
de emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural para ser levada
a fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de
emancipação do homem.
8) Segue-se que a arte não
pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a
vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para
fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de
prefiguração que é o apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo
de resolução (virtual) das contradições mais graves de sua época e orienta o
pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma
nova ordem.
9) A idéia que o jovem Marx
tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada vigorosa. É
claro que essa idéia deve abranger também, no plano artístico e científico, as
diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O escritor, diz ele,
deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em
nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro... O escritor não considera
de forma alguma seus trabalhos como um meio. Eles são objetivos em si, são tão
pouco um meio para si mesmo e para os outros que sacrifica, se necessário, sua
própria existência à existência de seus trabalhos... A primeira condição da
liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício. Mais que nunca é oportuno
agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade
intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações
históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de
Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição
absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista
um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de
criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer
coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que
nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a
uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios,
opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à
fórmula: toda licença em arte.
10) Reconhecemos, é claro, ao
Estado revolucionário o direito de defender-se contra a reação burguesa
agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte. Mas
entre essas medidas impostas e temporárias de autodefesa revolucionária e a
pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um
abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à
revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação
intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime
anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o
menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e os grupos
coletivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão
grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de
uma livre amizade criadora, sem a menor coação externa.
11)
Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação,
não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está
de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário
serve aos objetivos mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito
muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da
sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é
participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o
artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado
subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus
nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma
encarnação artística a seu mundo interior.
12) Na época atual,
caracterizada pela agonia do capitalismo, tanto democrático quanto fascista, o
artista, sem ter sequer necessidade de dar a sua dissidência social uma forma
manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver e de continuar sua
obra pelo bloqueio de todos os seus meios de difusão. É natural que se volte então
para as organizações estalinistas que lhe oferecem a possibilidade de escapar a
seu isolamento. Mas sua renúncia a tudo que pode constituir sua mensagem
própria e as complacências degradantes que essas organizações exigem dele em
troca de certas possibilidades materiais lhe proíbem manter-se nelas, por menos
que a desmoralização seja impotente para vencer seu caráter. É necessário,
desde este instante, que ele compreenda que seu lugar está além, não entre
aqueles que traem a causa da revolução e ao mesmo tempo, necessariamente, a
causa do homem, mas entre aqueles que dão provas de sua fidelidade inabalável
aos princípios dessa revolução, entre aqueles que, por isso, permanecem como os
únicos qualificados para ajudá-Ia a realizar-se e para assegurar por ela a
livre expressão ulterior de todas as manifestações do gênio humano.
13) O objetivo do presente
apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores revolucionários da
arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade
da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos
de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências
estéticas, filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas
podem caminhar aqui de mãos dadas com os anarquistas, com a condição que uns e
outros rompam implacavelmente com o espírito policial reacionário, quer seja
representado por Josef Stálin ou por seu vassalo Garcia Oliver.
14) Milhares e milhares de
pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo tumulto odioso dos
falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no mundo. Numerosas
pequenas revistas locais tentam agrupar a sua volta forças jovens, que procuram
vias novas e não subvenções. Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo
fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista
pelos estalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta
contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à
existência. Uma tal união é o objetivo da Federação Internacional da Arte
Revolucionária Independente (FIARI) que julgamos necessário criar.
15) Não temos absolutamente a
intenção de impor cada uma das idéias contidas neste apelo, que nós mesmos consideramos
apenas um primeiro passo na nova via. A todos os representantes da arte, a
todos seus amigos e defensores que não podem deixar de compreender a
necessidade do presente apelo, pedimos que ergam a voz imediatamente.
Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações independentes de esquerda que
estão prontas a tomar parte na criação da Federação Internacional e no exame de
suas tarefas e métodos de ação.
16) Quando um primeiro
contato internacional tiver sido estabelecido pela imprensa e pela correspondência,
procederemos à organização de modestos congressos locais e nacionais. Na etapa
seguinte deverá reunir-se um congresso mundial que consagrará oficialmente a
fundação da Federação Internacional.
O que queremos:
a independência da arte -
para a revolução
a revolução - para a
liberação definitiva da arte.