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quarta-feira, 26 de abril de 2017

De encontros às margens do Tietê, que nos fazem verter águas de lágrimas pelos olhos e pelos poros


Alexandre Falcão de Araújo[1]

A arte, por vezes, alcança o simples (e profundo) papel de nos reconectar com a potência da relação entre as pessoas, os seres e as paisagens, potência biológico-cultural inerente à nossa espécie e à nossa história e que, no entanto, frequentemente, deixamos de lado. A trajetória proposta pelo espetáculo “A Cidade dos rios invisíveis”, do Coletivo Estopô Balaio, cumpre esse belíssimo papel e nos leva, desde a estação de trem do Brás até o Jardim Romano, no extremo leste da cidade de São Paulo, a revisitar as memórias alagadas de uma região que constantemente sofre com enchentes.
Com cerca de quatro horas de duração, o itinerário começa dentro do trem, com fones de ouvido que nos levam a escutar canções, sons de rios, relatos documentais de moradores da região e narrativas fabulares, metaforizando os trechos do trajeto e suas personagens. Desembarcamos na estação Jardim Romano, de onde seguimos em caminhada - passando pela sede do coletivo - por diversas ruas, vielas, becos e terrenos baldios do bairro. Na deriva, o grupo nos propõe um momento de partilha, de convívio com outro lado da cidade, em grande parte desconhecido pelos moradores da classe média e da elite paulistanas.
Foto: Alexandre Falcão de Araújo
Desde o início, no vagão de trem, os atores-performers nos convocam a realçarmos o olhar para os que conosco dividem o espaço do transporte público e, em jogos que mesclam delicadeza e certo risco de relação com os passageiros, colam papeis com frases, questões e provocações nas janelas e bancos do trem, nos pés e mochilas das pessoas.
Acerca da qualidade interpretativa praticada desde o início do trabalho, o ator Juão Nin, logo nos avisa: _Não sou um personagem, sou eu mesmo, Juão! Esta característica, realçada durante todo o caminho, reforça ainda mais a dimensão relacional proposta pela obra, pois já ao desembarcamos na Estação Jardim Romano, os integrantes do elenco passam a cumprimentar os moradores conhecidos que encontram na rua e, vice-versa, os amigos criados no bairro chamam-lhes pelo nome, inclusive de dentro da lotação que passava pela rua.
Aqui cabe um esclarecimento ao leitor que não participou da experiência: o elenco é divido entre um núcleo “estrangeiro”, vindo de fora do bairro e formado majoritariamente por migrantes, oriundos do Rio Grande do Norte, incluindo o diretor João Júnior; e outro núcleo formado por atores moradores do Jardim Romano que, desde 2012, participam dos projetos realizados no bairro pelo coletivo Estopô. Depois de alguns anos de convivência com o novo território os potiguares parecem ter alcançado um grau de intimidade e articulação com a comunidade, que os permitiu realizar a ousada empreitada do espetáculo itinerante em questão. Nesse sentido, também é muito bonito perceber o processo continuado de pesquisa do grupo, já que tive a oportunidade de assistir em 2013 ao seu segundo espetáculo: “O que sobrou do rio”. De lá pra cá, os atores moradores amadureceram visivelmente e indicam estarem cada vez mais se apropriando da história de seu pedaço e portanto, de sua própria história, para reconta-la e reconstruí-la poética e politicamente. Para isso, foram imprescindíveis os apoios de políticas públicas de cultura recebidas pelo grupo, ao longo de seus últimos anos, entre eles, do programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, que vem sendo ameaçado, juntamente com outros importantes programas, pela atual gestão municipal, do prefeito João Dória Junior.
Retomando à encenação, que é de natureza fragmentada e apresenta linguagem híbrida, por diversas vezes o elenco se vale da performatividade em detrimento da representação, ora com foco em imagens corporais, ora com foco em narrativas. O grupo se vale ainda do recurso da metateatralidade, utilizado especialmente para cenas dos atores-moradores, ao representarem suas próprias histórias. Além do que já foi citado, dentro do caleidoscópio projetado pelo grupo, uma miríade de recursos e linguagens são lançados em cena, como dança de rua, interpretação dramática mediada pela filmagem em equipamentos portáteis e dublagem de música pop (pelo ator morador Bruno Fuziwara, travestido de Dhiana d´Água) seguida por cantos sagrados de tradição sincrética popular afro-brasileira, em cortejo pelo beco que remete à senzala da antiga fazenda do Sr. Romano. O curioso é que este emaranhando de imagens e estímulos gerados não se esgarça, pois é costurado na também múltipla gama de estímulos que o próprio cenário do bairro nos traz. A relativa longa duração do percurso não se faz sentir de forma absoluta, já que é instaurado um outro tempo: o tempo da experiência.
Tal temporalidade transforma nosso olhar, que foi amplificado pelos estímulos sonoros, visuais e relacionais desde o vagão do trem e que segue estranhando a cidade: vemos homens correndo na estação do Jardim Romano. Por que correm? Em trechos do trajeto, os moradores do bairro cruzam as cenas: a senhora com a sombrinha e a criança (talvez sua neta) com uma touca rosa, com orelhinhas de gato, passam ao lado da dupla de rappers do bairro que cantam em frente à sede do grupo, criando um contraste de ritmos, cores e comportamentos. Cenas corriqueiras que nos são ressaltadas pela experiência estética gerada no encontro do cotidiano do bairro com a encenação.
Neste dia, particularmente, nosso caminho foi acompanhado por uma personagem crucial naquele contexto: a chuva. Entre garoa e pingos mais grossos, quase três horas de água caindo dos céus acompanharam público e elenco, gerando mais uma camada de sensações ao trabalho: o frio e a umidade, que são extremamente presentes nas memórias de sofrimentos dos moradores. Nos bueiros-rios, equipamentos de saneamento básico poetizados na dramaturgia, e nas ruas e vielas de forma geral, ás aguas afluíram de maneira mais sutil que na enchente, mas em volume suficiente para nos molhar e nos inundar de novos significados naquela vivência.
Na trama de relações com os artistas e moradores do local, o coletivo realiza ainda mensalmente o Sarau do Peixe, homenageando poetas da quebrada. Esta ação cultural deságua para o espetáculo e algumas poetisas do bairro ganham voz e foco na encenação, como Chica Lôra, que na frente de seu bar, nos recebe e lê uma poesia. Outro personagem local que nos acompanha desde a casa do Balaio até o destino final é o Sr. Vital, sanfoneiro que faz a cama sonora em diversas cenas e protagoniza junto com a atriz Ana Carolina Marinho a cena-conversa sobre Saudade, momento emocionante em que ambos compartilham uma canção composta pela dupla e deixam transparecer pelos poros, vozes e olhares a integridade e profundidade do encontro que tecem a cada nova apresentação.
Entremeado pelas histórias e memórias locais, o espetáculo constrói um olhar político, de perspectiva social, em relação à segregação da cidade, olhar este permeado pelo afeto e sensibilidade praticados nos diversos encontros fluviais. Chegando ao destino final, às margens do rio Tietê, encontramos todo o elenco e, às suas costas, o rio poluído, de onde podemos ver e ouvir galinhas d´água, pássaros silvestres e capivaras, em sinfonia com os ecos lançados às àguas pelo poeta Emerson Alcalde, importante agitador cultural da Zona Leste e artista convidado na obra do Balaio. Concluímos a experiência com a contemplação do rio e o silêncio, preenchido por diversas vozes pretéritas e presentes daquelas margens, transbordando em nós como emoção, reflexão e relação social. 




[1] Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia, doutorando em Artes pela Universidade Estadual Paulista – Unesp.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Basta de preconceito e violência contra artistas de rua


Dia 8 de abril, Matías Galindez Rodrígues (Matías Ziatriko), malabarista e viajante uruguaio de 29 anos, conversava com um amigo sobre o que era SER ARTISTA DE RUA. Ambos estavam num posto de gasolina em Ji-Paraná, no estado de Rondônia, Brasil, quando THIAGO FERNANDES, que passava no momento, interviu na conversa alegando que malabarismo não é arte. Em seguida THIAGO FERNANDES sacou uma arma e disparou 10 vezes à queima-roupa contra Matías, fugindo em um carro Corola prata. Matías, foi socorrido por bombeiros e levado ao hospital onde sua vida se apagou.

THIAGO FERNANDES de 19 anos, encontra-se foragido, é filho de duas grandes autoridades locais e já cometeu outros assassinatos. Diante da corrupção e do abuso constante de autoridade que vivemos diariamente, nossa palavra não tem peso, nosso caminho não vale, nossa escolha não é válida, nossa opinião não conta.Apesar da nossa inegável presença nas ruas, nas praças, nos parques de toda América Latina, continuam nos marginalizando, proibindo, reprimindo. Hoje é triste dizer, mas defender a bandeira da arte de rua pode custar sua vida.

Essa intolerância encoberta de civilidade levou embora Matías. Vivemos em um mundo absurdo em que é mas difícil conseguir uma permissão para exercer arte em espaços públicos do que comprar uma arma e sentir-se no direito de disparar a qualquer um que pense e viva diferente.

Estamos conscientes de que Matias é mais uma vítima do ódio: o ódio pela liberdade de poder escolher um estilo de vida alternativo, autônomo e contra o sistema, que nutre de sonhos, de paixões, de desafios. Assim é a vida dos artistas de rua. É uma luta constante. É o paradoxo entre saber o que geramos, a surpresa de uma criança, o sorriso de um idoso e esse ódio que abastece na ignorância de quem acredita que somos vagabundos e desempregados por ter uma ideia diferente do que é viver bem. 

ALGO DEVE FICAR BEM CLARO: MATÍAS FOI ASSASSINADO violentamente e impunimente por defender o que escolheu ser: Um artista de rua que entende a arte como ferramenta de transformação, como um direito intrínseco aos seres humanos, como algo que deve ser acessível a todos.

Desde toda a América Latina, Europa e por todo mundo, exigimos JUSTIÇA PARA MATÍAS. Que a sua morte não fique impune, e que o assassino pague por suas ações perante as leis humanas, pois sabemos que a sabedoria do universo lhe devolverá suas ações.

Como artistas de rua, como viajantes, como cidadãos do mundo que somos, exigimos que seja respeitado o estilo de vida que não só transcende fronteiras, se não que é um patrimônio cultural dos povos. Sempre existimos. Lutamos dia a dia para reivindicar nosso papel na sociedade. Nós resistimos a fazer parte desse sistema capitalista/patriarcal de ódio, violência e sentimento que doutrina dia a dia através dos meios de desinformação. 

Os artistas de rua RESISTEM no semáforo, numa roda em uma praça, em uma ocupação, no humor, na colaboração voluntária no chapéu, na autogestão e na organização coletiva e cooperativa. 
Na Arte de Rua acreditamos, assim como acreditava e vivia Matías, que uma sociedade tolerante, inclusiva, amorosa e livre de preconceitos é possível.

Fazemos um chamado às autoridades pertinentes: Consulado, Chancelaria, Ministro das Relações Exteriores e a todos os que podem contribuir de alguma maneira para que justiça seja feita. 

Até agora sabemos que a mãe e o irmão estão em Ji-Paraná fazendo os procedimentos para o traslado do corpo de volta para o Uruguai. 

BASTA DE PRECONCEITO E REPRESSÃO POLICIAL CONTRA OS ARTISTAS DE RUA.
DESDE SEMPRE PELAS RUAS DO MUNDO TODO. LONGA VIDA À ARTE DE RUA!"

*texto traduzido do coletivo Circo Paraguay

Mais informações:

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Agitprop: cultura política

ESTEVAM, Douglas; COSTA, Iná Camargo; BÔAS, Rafael Villas (Orgs.). Agitprop: cultura política.
Adailtom Alves Teixeira[1]

São Paulo: Expressão Popular, 2015, 197 p.
Palavras-chave: Agitprop; teatro; história; trabalhadores
Keywords: agitprop; theater; history; workers

O livro Agitprop: cultura política, organizado por Douglas Estevam, Iná Camargo Costa e Rafael Villas Bôas, lançado em dezembro de 2015 pela editora Expressão Popular, é um alento e uma oportunidade para conhecermos um pouco mais sobre o teatro criado pelos trabalhadores da Alemanha e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) na primeira metade do século XX.
Fruto de pesquisa e traduções de uma equipe de militantes, o livro é dividido em quatro partes, tomando como base o livro francês Le Théâtre d`agit-prop de 1917 à 1932, este dividido em diversos tomos. Como o acesso ao francês é restrito, o trabalho vem suprir uma lacuna importante, afinal, com sua leitura, fica claro que desconhecemos por completo a produção do teatro classista, isto é, o teatro que se engajou na luta de classe alemã e na Revolução Russa.
Três textos de pesquisadores franceses dão conta dos aspectos teóricos da produção agitpropista, cobrindo as fases históricas pelas quais passou essa produção –   caso do capítulo de Jean-Pierre Morel, que aborda desde o início, durante a guerra civil, até o desmonte dessa forma teatral sob domínio stalinista. Além disso, apresenta ainda a relação dos vanguardistas, como Maiakovsky, Meyerhold, entre outros, com os trabalhadores da agitação e propaganda. O segundo texto, de Christine Hamon, aborda as formas dramatúrgicas e cênicas do teatro de agitprop na Rússia; já o terceiro, de Bernard Lupi, foca na produção alemã, tanto em seus aspectos históricos, seu desenvolvimento, bem como sua construção cênica e dramatúrgica.
Outra parte do livro foca na experiência de um dos principais coletivos de agitação da URSS, o Blusa Azul. O coletivo, que atuava principalmente em Moscou, mas tinha braços por toda Rússia, com apenas cinco anos de existência já tinha atingido mais sete milhões de espectadores. O grupo surgiu como jornal vivo, atravessou toda a década de 1920 e foi modificando seu repertório ao longo do tempo. Além dos espetáculos, produziu também um periódico em que publicava os melhores esquetes e as indicações para futuras encenações.
Na última parte do livro são apresentados justamente quatro esquetes do coletivo Blusa Azul, fruto da publicação de seu periódico. Os esquetes abordam questões do imperialismo internacional do período, aspectos relacionados à saúde dos trabalhadores e o problema do trabalho doméstico, isto é, da importância da igualdade entre homens e mulheres. Além das indicações para encenação, os esquetes vem enriquecidos com notas de pé de página, situando o leitor historicamente em relação às personagens reais abordadas.
Na primeira parte do livro, a produção agitpropista brasileira é discutida. Iná Camargo Costa apresenta os antecedentes teóricos e a rápida experiência do Centro Popular de Cultura, que durou de 1962 a 1º de abril de 1964, quando a sede da União Nacional dos Estudantes foi metralhada pela ditadura civil-militar. Muitos dos envolvidos na criação e produção do CPC abandonaram aquela forma de produção, alguns, inclusive a negaram. Por isso, Costa destaca o nome de Augusto Boal, como um dos poucos que persistiram e ampliaram sua pesquisa, sendo hoje reconhecido internacionalmente. Em certa medida, é justamente com o apoio de Boal que a produção agitpropista vai renascer no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, já na virada do milênio. A experiência é narrada por Miguel Enrique Stédile e Rafael Villas Bôas no capitulo “Agitação e propaganda no MST”.
Para completar um pouco dessa nossa história sobre o teatro de agitação e propaganda, pode ser lido também o livro organizado pro Fernando Peixoto O melhor teatro do CPC da UNE, publicado pela Global (1989) e o livro de Miliandre Garcia Do teatro militante à música engajada, da Fundação Perseu Abramo (2007).
A pouca produção acerca do assunto por si só, já demonstra a importância do livro Agitprop: cultura política, desejando que a equipe continue a traduzir para que novos volumes venham a público e possamos conhecer um pouco mais da história cultural dos trabalhadores, pois só assim poderemos ensinar ou repicar essas experiências, seja em nível acadêmico, seja pelas lutas diárias que travamos.




[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; mestre em Artes pela Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2012); membro do grupo de pesquisa PAKY`OP – Laboratório de Pesquisa em Teatro e Transculturalidade.