Alexandre Falcão de
Araújo[1]
A arte, por vezes, alcança o
simples (e profundo) papel de nos reconectar com a potência da relação entre as
pessoas, os seres e as paisagens, potência biológico-cultural inerente à nossa
espécie e à nossa história e que, no entanto, frequentemente, deixamos de lado.
A trajetória proposta pelo espetáculo “A Cidade dos rios invisíveis”, do
Coletivo Estopô Balaio, cumpre esse belíssimo papel e nos leva, desde a estação
de trem do Brás até o Jardim Romano, no extremo leste da cidade de São Paulo, a
revisitar as memórias alagadas de uma região que constantemente sofre com
enchentes.
Com cerca de quatro horas de duração,
o itinerário começa dentro do trem, com fones de ouvido que nos levam a escutar
canções, sons de rios, relatos documentais de moradores da região e narrativas
fabulares, metaforizando os trechos do trajeto e suas personagens.
Desembarcamos na estação Jardim Romano, de onde seguimos em caminhada -
passando pela sede do coletivo - por diversas ruas, vielas, becos e terrenos
baldios do bairro. Na deriva, o grupo nos propõe um momento de partilha, de
convívio com outro lado da cidade, em grande parte desconhecido pelos moradores
da classe média e da elite paulistanas.
Foto: Alexandre Falcão de Araújo |
Desde o início, no vagão de trem,
os atores-performers nos convocam a realçarmos o olhar para os que conosco
dividem o espaço do transporte público e, em jogos que mesclam delicadeza e
certo risco de relação com os passageiros, colam papeis com frases, questões e
provocações nas janelas e bancos do trem, nos pés e mochilas das pessoas.
Acerca da qualidade interpretativa
praticada desde o início do trabalho, o ator Juão Nin, logo nos avisa: _Não sou
um personagem, sou eu mesmo, Juão! Esta característica, realçada durante todo o
caminho, reforça ainda mais a dimensão relacional proposta pela obra, pois já
ao desembarcamos na Estação Jardim Romano, os integrantes do elenco passam a
cumprimentar os moradores conhecidos que encontram na rua e, vice-versa, os
amigos criados no bairro chamam-lhes pelo nome, inclusive de dentro da lotação
que passava pela rua.
Aqui cabe um esclarecimento ao
leitor que não participou da experiência: o elenco é divido entre um núcleo “estrangeiro”,
vindo de fora do bairro e formado majoritariamente por migrantes, oriundos do
Rio Grande do Norte, incluindo o diretor João Júnior; e outro núcleo formado
por atores moradores do Jardim Romano que, desde 2012, participam dos projetos
realizados no bairro pelo coletivo Estopô. Depois de alguns anos de convivência
com o novo território os potiguares parecem ter alcançado um grau de intimidade
e articulação com a comunidade, que os permitiu realizar a ousada empreitada do
espetáculo itinerante em questão. Nesse sentido, também é muito bonito perceber
o processo continuado de pesquisa do grupo, já que tive a oportunidade de
assistir em 2013 ao seu segundo espetáculo: “O que sobrou do rio”. De lá pra
cá, os atores moradores amadureceram visivelmente e indicam estarem cada vez
mais se apropriando da história de seu pedaço e portanto, de sua própria história,
para reconta-la e reconstruí-la poética e politicamente. Para isso, foram
imprescindíveis os apoios de políticas públicas de cultura recebidas pelo
grupo, ao longo de seus últimos anos, entre eles, do programa de Fomento ao
Teatro para a Cidade de São Paulo, que vem sendo ameaçado, juntamente com outros
importantes programas, pela atual gestão municipal, do prefeito João Dória Junior.
Retomando à encenação, que é de
natureza fragmentada e apresenta linguagem híbrida, por diversas vezes o elenco
se vale da performatividade em detrimento da representação, ora com foco em imagens
corporais, ora com foco em narrativas. O grupo se vale ainda do recurso da
metateatralidade, utilizado especialmente para cenas dos atores-moradores, ao
representarem suas próprias histórias. Além do que já foi citado, dentro do
caleidoscópio projetado pelo grupo, uma miríade de recursos e linguagens são
lançados em cena, como dança de rua, interpretação dramática mediada pela
filmagem em equipamentos portáteis e dublagem de música pop (pelo ator morador
Bruno Fuziwara, travestido de Dhiana d´Água) seguida por cantos sagrados de
tradição sincrética popular afro-brasileira, em cortejo pelo beco que remete à
senzala da antiga fazenda do Sr. Romano. O curioso é que este emaranhando de
imagens e estímulos gerados não se esgarça, pois é costurado na também múltipla
gama de estímulos que o próprio cenário do bairro nos traz. A relativa longa
duração do percurso não se faz sentir de forma absoluta, já que é instaurado um
outro tempo: o tempo da experiência.
Tal temporalidade transforma nosso
olhar, que foi amplificado pelos estímulos sonoros, visuais e relacionais desde
o vagão do trem e que segue estranhando a cidade: vemos homens correndo na
estação do Jardim Romano. Por que correm? Em trechos do trajeto, os moradores
do bairro cruzam as cenas: a senhora com a sombrinha e a criança (talvez sua
neta) com uma touca rosa, com orelhinhas de gato, passam ao lado da dupla de rappers do bairro que cantam em frente à
sede do grupo, criando um contraste de ritmos, cores e comportamentos. Cenas
corriqueiras que nos são ressaltadas pela experiência estética gerada no
encontro do cotidiano do bairro com a encenação.
Neste dia, particularmente, nosso
caminho foi acompanhado por uma personagem crucial naquele contexto: a chuva.
Entre garoa e pingos mais grossos, quase três horas de água caindo dos céus
acompanharam público e elenco, gerando mais uma camada de sensações ao
trabalho: o frio e a umidade, que são extremamente presentes nas memórias de
sofrimentos dos moradores. Nos bueiros-rios, equipamentos de saneamento básico
poetizados na dramaturgia, e nas ruas e vielas de forma geral, ás aguas
afluíram de maneira mais sutil que na enchente, mas em volume suficiente para
nos molhar e nos inundar de novos significados naquela vivência.
Na trama de relações com os
artistas e moradores do local, o coletivo realiza ainda mensalmente o Sarau do
Peixe, homenageando poetas da quebrada. Esta ação cultural deságua para o
espetáculo e algumas poetisas do bairro ganham voz e foco na encenação, como
Chica Lôra, que na frente de seu bar, nos recebe e lê uma poesia. Outro
personagem local que nos acompanha desde a casa do Balaio até o destino final é
o Sr. Vital, sanfoneiro que faz a cama sonora em diversas cenas e protagoniza
junto com a atriz Ana Carolina Marinho a cena-conversa sobre Saudade, momento
emocionante em que ambos compartilham uma canção composta pela dupla e deixam
transparecer pelos poros, vozes e olhares a integridade e profundidade do
encontro que tecem a cada nova apresentação.
Entremeado pelas histórias e
memórias locais, o espetáculo constrói um olhar político, de perspectiva social,
em relação à segregação da cidade, olhar este permeado pelo afeto e
sensibilidade praticados nos diversos encontros fluviais. Chegando ao destino
final, às margens do rio Tietê, encontramos todo o elenco e, às suas costas, o
rio poluído, de onde podemos ver e ouvir galinhas d´água, pássaros silvestres e
capivaras, em sinfonia com os ecos lançados às àguas pelo poeta Emerson
Alcalde, importante agitador cultural da Zona Leste e artista convidado na obra
do Balaio. Concluímos a experiência com a contemplação do rio e o silêncio,
preenchido por diversas vozes pretéritas e presentes daquelas margens,
transbordando em nós como emoção, reflexão e relação social.
[1]
Professor
do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia,
doutorando em Artes pela Universidade Estadual Paulista – Unesp.