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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Baco mora na quebrada


Alexandre Falcão de Araújo[1]

Baco, aquele deus grego-romano da desmesura etílica e sexual, também mora na quebrada! E não é que ele deu um rolê na zona leste de São Paulo?! Foi uma visita à XI Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, realizada pelo grupo Buraco do Oráculo. Baco deu as caras e “girou” na apresentação de “Pólo Marginal – Opereta de Rua”, espetáculo do grupo de teatro de rua Loucos e Oprimidos da Maciel, de Recife. Mas, ele não veio sozinho! Em sua companhia, diretamente do panteão africano, veio Exu, que abriu os caminhos para que o encontro teatral acontecesse.

Construído a partir da obra poética de Marco Pólo Guimarães, com roteiro e direção do teatrista pernambucano Carlos Salles – já falecido, o espetáculo se inicia com a tradicional formação da roda do teatro de rua. Desta feita, porém, é com cachaça nordestina que se desenha a roda! A mesma cachaça que lubrifica as goelas e outros orifícios dos atores e das atrizes da trupe recifense...
Pólo Marginal em São Miguel Paulista - São Paulo.

Banhados de músicas da Ave Sangria – banda recifense surgida nos anos 1970 e que, recentemente, retornou à ativa, tendo sido pioneira na fusão sonora de ritmos pernambucanos com o rock psicodélico e o blues e da qual Marco Pólo é vocalista e compositor – o bando teatral brinca com a trajetória de um pirata, coletivamente apresentado, que aporta no centro de uma cidade e convida o público a navegar com ele.

As poesias, cores, sonoridades e corporalidades da encenação transbordam referências da iluminada Recife, com seu mormaço, seu sol aberto e suas praias e mangues. Entre tintas de um teatro ritual híbrido, brincado num brasileiro lócus entre a África Negra e as referências dionisíacas, o espetáculo diverte, emociona, arrepia e também causa reflexões, uma vez que nele não faltam referências de crítica aos regimes autoritários de ontem e de hoje.

É impressionante como a obra cria um universo imagético muito diferente do que é mais usual no teatro de rua paulista. O trabalho é tão repleto de cores que se sobrepôs de forma bela ao cinza de mais um dos muitos dias nublados de São Paulo. Talvez exatamente pela dimensão ambiental e litorânea de seu teatro, a energia dos loucos pernambucanos lembre também a atmosfera criada pelo grupo Tá na Rua, importante e longevo grupo carioca de teatro de rua, em sua “suada labuta” da carnavalização.

                No elenco, quiçá pelas diferenças de idade e de experiências de vida e de teatro, alguns artistas pareciam mais inteiros e entregues à intensidade e visceralidade propostas em cena. Nesse sentido, correndo o risco de ser injusto, destaco Rodrigo Torres (cuja presença em cena me remetia ao grande Ney Matogrosso), Sandro Sant´ana e Roberta Lúcia, que nitidamente divertiam-se com as traquinagens e provocações por eles próprios realizadas junto ao público, gerando forte empatia e creio que também um bocado de excitação. Além da sensualidade de seus corpos em cena e das belas imagens geradas pelas poesias compartilhadas, algumas vezes os artistas também se valiam de gestus ou de posicionamentos políticos explícitos, para criar mais camadas de leitura à obra.

                Ainda em relação à crítica e reflexão, destaco o quadro “Mete Bronca”, que abre espaço para a participação direta do público, para que este possa denunciar os problemas do bairro, da cidade e do país ou apenas compartilhar sua expressão poética no centro da roda. Naquele dia, na zona leste paulistana, o desastroso resultado das eleições brasileiras, bem como o machismo e a falta de responsabilidade dos pais (homens) para com seus filhos, veio à tona, em críticas trazidas pelo público.

                Eu não poderia deixar de citar ainda a bela direção musical do espetáculo, de Walgrene Agra, que está em cena acompanhado de uma banda de bons atores-músicos, cuja última marca aparece no momento de passar o chapéu, com a deliciosa canção: “se quiser dar, pode dar agora, que tá na hora de rodar nossa sacola...”. Assim, entre duplos-sentidos, requebradas, passos de ciranda e muito bom-humor, encerrou-se uma bela tarde de apresentações em São Miguel.



[1] Ator, diretor e pesquisador teatral, professor do curso de Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), coordenador do grupo de Trabalho Artes Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Como o teatro pode contribuir para uma sociedade melhor?


Adailtom Alves Teixeira[1]

O Brasil atravessa um momento político, econômico, social e cultural muito difícil, para dizer o mínimo. Mas, como todos sabem, o que se colherá amanhã se planta hoje. O teatro e arte em geral, são fatores de mudanças sociais, com capacidades de descolonização de nossas mentes e corpos. Os artistas progressistas têm o grande desafio de criar e sedimentar, aliado a outras forças políticas, uma nova mentalidade que possa alçar o Brasil a patamares melhores, não em termos desenvolvimentistas, mas em termos mais humanos, solidários, onde a diferença, o respeito pela vida seja elemento preponderante em nossas condutas.

Nesse sentido, a arte tem papel importante. E um dos desafios é fazer com que a arte chegue ao povo, ao mesmo tempo em que se permite que a própria arte popular ganhe mais espaço. Além disso, permitir o acesso dos populares às técnicas, para que eles próprios criem e expressem suas angústias, sonhos e medos artisticamente. Essa tarefa é também apresentada por Angela Davis em Mulheres, cultura e política, e se pergunta: “(...) como reconhecemos de maneira coletiva o legado da nossa cultura popular e o transmitimos para as massas de nosso povo, a quem, em sua maioria, tem sido negado o acesso aos espaços sociais reservados à arte e à cultura” (2017, p. 166)?

A preocupação não é nova e muitos foram os artistas ou correntes atentos a essa questão, como os agitpropistas russos, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht e suas peças didáticas, o brasileiro Augusto Boal e a turma dos Centros Populares de Cultura. Mais do que permitir a fruição – sem dúvida muito importante –, é fundamental permitir que os populares tenham acesso aos meios, isto é, que se apossem das técnicas para que eles próprios criem, se expressem, apresentando seus pontos de vistas por meio da arte. Claro que esse trabalho deve ser seguido também de uma formação política, no sentido de entender melhor a complexidade da nossa realidade.

Em sendo a arte uma forma de consciência política, pode vir a sensibilizar e impelir as pessoas a se envolverem em movimentos organizados, movimentos verdadeiramente preocupados em uma transformação social positiva. Como afirma ainda Davis, no artigo A arte na linha de frente: mandato para uma cultura do povo, escrito em 1985 e presente no citado livro: a arte influencia sentimentos e conhecimentos. Dessa forma, a arte “(...) pode incitar as pessoas no sentido da emancipação social” (2017, p. 166).

Nesse sentido, o teatro é uma arma poderosa e o de rua mais ainda, pode misturar-se nas comunidades, nos movimentos, ir a todos os lugares e realizar o que afirma Canclini: “(...) utilizar todos os espaços e instituições disponíveis para oferecer a todos os setores sociais a informação oculta pelos meios de comunicação oficial e para abrir novas perspectivas de análise” (1980, p. 159).

Claro que a realidade é complexa, devemos analisá-la de forma dialética e sempre questionarmos sobre os rumos, avanços e recuos. Distribuir os meios, as técnicas por meio de oficinas, por exemplo, em coletivos já organizados e que buscam a emancipação de classe ou identitária, é, digamos assim, fácil e relativamente tranquilo. Mas se pensarmos em termos de massificação é preciso ir além desses coletivos. Quais riscos existem ao distribuir conhecimentos técnicos teatrais, por exemplo, em uma sociedade conservadora, eivada por grupos religiosos ultraconservadores moral e politicamente? Haverá riscos dessas técnicas servirem a um projeto contrário? Há que se pensar.

O velho trabalho político de base talvez seja o caminho, isto é, qualquer trabalho artístico apresentado, bem como oficinas, vivencias, entre outros, necessitam de um acompanhamento político. Os procedimentos não devem virem desacompanhados, técnica pela técnica. Se a perspectiva é que conheçam o caráter social de suas vidas interiores, como defende Angela Davis, isto é, fazer com que cidadãs e cidadãos reconheçam que são o que são, ou que estão onde estão, que pensam de determinada forma por causa de uma série de fatores externos a elas, a arte, bem como seus procedimentos devem demonstrar que não estamos desvinculados do mundo que nos cerca. Nascemos em um mundo da cultura já pronto e introjetamos valores, crenças, enfim, ideologias.

Outro ponto significativo a se observar é que o processo não pode ser de cima para baixo, nos colocarmos como uma vanguarda que leva a salvação, mas sim de forma dialógica, como nos ensinou Paulo Freire: aquele que ensina, aprende e aquele que aprende, ensina. Ninguém é destituído de cultura, logo, é importante identificar em cada grupo com quem se trabalha manifestações existentes e que podem vir a somar àquelas que se leva, bem como serem completamente aproveitadas, bastando, às vezes uma sistematização para melhor uso, inclusive por outros grupos em outros lugares.

Claro que as forças progressistas, partidos, movimentos, entidades, precisam compreender a importância da arte, buscando incentivar e estimular. Assim como é fundamental que os artistas se somem a essas forças, de forma a se auxiliarem mutuamente, sem subordinação, pois a arte precisa de liberdade para progredir. Logo, esse caminho se faz junto, lado a lado. Esse ainda é um ponto de difícil compreensão por parte das esquerdas e que deve ser também nossa tarefa trabalhar.

O nosso tempo histórico exige essa aproximação e esse caminhar lado a lado. Se a estética burguesa sempre defendeu que a arte deve existir para além de qualquer ideologia e da luta de classes, arte pela arte, fruto de uma criatividade individual, é justamente aí onde ela se coloca mais política e permissiva. A liberdade que pleiteio aqui é a apresentada por Walter Benjamin em O autor como produtor, a liberdade de colocar nossa obra em uma causa. Para Benjamin, a decisão do escritor progressista “(...) se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. (...) Ele orienta  a sua atividade em função do que for útil ao proletariado na luta de classes” (2012, p. 129). Mais adiante comenta Benjamin:

Um autor que não ensina nada aos escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve poder orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. Já possuímos um modelo desse gênero (...). É o teatro épico de Brecht (2012, p. 141-2. Grifo do autor).

E por quê o teatro tem maior facilidade de se desvincular dos meios capitalistas, que dominam muito mais as outras artes? Porque os artistas em sendo criadores e criaturas, carregam consigo sua arte, logo são donos dos meios de produção. É possível afirmar ainda que a esmagadora maioria do teatro mais progressista se organiza em grupo, o que facilita a sua produção, mas não só isso. Por ser uma arte coletiva, como afirma Canclini, o “(...) caráter grupal facilita a superação do narcisismo dos artistas e a participação do público” (1980, P. 155), o que, em seu entender, não ocorre, por exemplo, com as artes plásticas.

Claro que deve haver liberdade para exercer plenamente os princípios artísticos. Lênin, citado por Davis, também defende a liberdade do artista, pois ao exercer a liberdade plena é possível contribuir de forma efetiva no processo emancipatório da população. E por quê? Porque ao mesmo tempo em que permite a fruição, distribui os meios, ele pode avançar em sua estética, elevando a arte a outros patamares. Da indústria cultural jamais virá, ainda que aí possa existir artistas progressistas, o limite está em que estes são dominados pela burguesia, ainda que quem pense, faça e frua não seja necessariamente burguês. Mas todos os meios são bem-vindos nessa luta e hoje em dia, com a internet e o barateamento de equipamentos, há uma liberdade maior de criação e na comunicação, que também precisamos nos apropriarmos.

Para um efetivo trabalho artístico emancipatório, faz-se necessário, portanto, que os artistas criem trabalhos preocupados em destrinchar, discutir nosso tempo histórico, nossas condições, valendo-se dos elementos populares, ao mesmo tempo em que também fornecem os meios para que os próprios populares possam se expressarem. Mas isso só ocorrerá se os artistas também se aproximarem das organizações políticas com essa preocupação. “Profissionais da cultura, portanto, devem se preocupar não só em criar arte progressista, mas em se envolver ativamente na organização de movimento políticos populares” (DAVIS, 2017, p. 180). A tripla tarefa pode nos levar, no futuro, a uma sociedade distinta da que temos hoje. Por fim, cabe ressaltar que não será a arte a modificar o mundo, mas ela pode sim modificar os sujeitos e estes, organizados, podem mudar o mundo.

Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
CANCLINI, Néstor García. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, 1980.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Trad.: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017. 




[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista-UNESP; articulador da RBTR; integrante do Teatro Ruante de Porto Velho/RO.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Oigalê - duas décadas de teatro popular


Adailtom Alves Teixeira[1]

Fazer arte no Brasil não é algo fácil, nunca foi. Fazer teatro de rua, mais difícil ainda. Seja pela ausência de políticas públicas específicas, seja pelas perseguições (atualmente Curitiba no Paraná os artistas vêm sofrendo perseguições devido a um Decreto Municipal que interdita o principal espaço, onde já é tradição a arte de rua dialogar com seu público), seja devido ao preconceito, dentre outras tantas coisas. Por isso quando um coletivo teatral, como o Oigalê, chega a duas décadas de existência e com um repertório ativo, temos muito o que comemorar e parabenizar. Existir fazendo arte em nossos tempos, já é um ato de resistência.

O Negrinho do Pastoreio. Foto Thiago Alves
Criado na virada do milênio, em 1999, o grupo Oigalê chega a duas décadas realizando duas circulações em seu estado, Rio Grande do Sul, uma pelo interior e outra na capital, Porto Alegre, totalizando 20 apresentações. No repertório, espetáculos que participaram de diversos festivais, projetos e percorreram o Brasil: O Negrinho do Pastoreio e Circo de Horrores e Maravilhas. O primeiro é uma história popular dos pampas e que dispensa apresentação, levada à cena com uma leitura toda especial e que dialoga com o nosso tempo, afinal crueldade e preconceito parece ser uma marca que não conseguimos abandonar na história da sociedade brasileira. Destaque para a utilização das pernas de pau, em que os integrantes apresentam uma técnica apuradíssima. Aliás, no meu ponto de vista, apenas três grupos utilizam as pernas de pau em cena não apenas para chamar atenção do público ou como forma de agigantar os atores, mas sim como elemento que faz parte do corpo dos atores, permitindo criações inventivas em cena. Os grupos, todos são do teatro de rua são: Cia de Mystérios e Novidade do Rio de Janeiro, Ás de Paus do Paraná e os gaúchos da Oigalê. No espetáculo O Negrinho do Pastoreio, o apuro técnico faz com que vejamos outros seres em cena, criando uma plasticidade toda especial.

O segundo espetáculo, Circo de Horrores, revisita alguns números bastante utilizados no início do século passado, em que o diferente era motivo da diversão, propõe, portanto, uma reflexão sobre o tema, mas de forma lúdica e para todos os públicos. Um dos destaques do espetáculo, fica por conta da interpretação das duas atrizes, que não só fazem todas as personagens, como ainda realizam a tradução em libras, criando toda uma expressividade belíssima, ao mesmo tempo em que permitem acessibilidade à comunidade surda. Este é o último espetáculo criado por essa trupe, que, ao velho modo de seus ancestrais, irá mambembar por ruas, parques e praças do
Circo de Horrores. Foto divulgação
Rio Grande do Sul, graças a um projeto contemplado no Fundo de Apoio à Cultura.

Além das apresentações gratuitas, a cada apresentação o grupo realizará conversas sobre o fazer artístico, uma possibilidade de ampliar a troca com seu público e com outros artistas. Em nosso tempo histórico, toda possibilidade de diálogo deve ser enaltecido e incentivado, e como as apresentações, é certo que despertarão questionamentos e reflexões, uma conversa após, pode representar mais uma brecha para romper com preconceitos, encurtar distâncias e estreitar laços afetivos. A rua, ao longo da história, tem servido a isso e não apenas como espaço de deslocamento, por isso deve ser vista também como local de fruição das artes, do encontro com o outro, de construção e do respeito às diferenças. Respeito que, é certo, os dois espetáculos do Oigalê levarão a todos que os encontrarem nessa circulação.

Maiores informações sobre o grupo e o projeto poderá ser obtido no sítio eletrônico oigale.com.br. Vida longa ao Oigalê. Evoé!



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista-UNESP; articulador da RBTR; integrante do Teatro Ruante de Porto Velho/RO.

Fabulário Pampiano – três viventes, um cavalo e muitas lendas



Por Márcio Silveira dos Santos*


Na marca da identidade,
carrego a estampa de todos,
andejos e rapsodos,
criados na imensidade,
o vício da liberdade
adquiri no infinito,
desde que o Tupã bendito,
num gesto paterno e largo,
me deu o sagrado encargo
de fazer mapa – solito!

Jayme Caetano Braun


Se me permite um à parte, você que esta lendo preste atenção vivente. Pegue um mate amargo pra sorver enquanto lhe conto sobre um espetáculo pra lá de especial. A peça se chama Fábulas do Sul, novo trabalho cênico do Grupo UEBA Produtos Notáveis, da Cidade de Caxias do Sul, que fica lá no alto dos morros da serra gaúcha. O espetáculo, assim de lambuja, afirmo que é diversão garantida, pois logo na arrancada já se percebe as gargalhadas se espraiando nas bocas e sorrisos escancarados da plateia.
O espetáculo chega realizando uma tarefa relevante para os dias de hoje, pois fala do universo fabulário da pampa gaúcha de forma leve e sutil, sem perder o caráter sério e indagador que nossas histórias precisam atualmente. Algumas são muito presentes no imaginário das lendas do Rio Grande do Sul, outras vão um pouco mais além por se tratarem de causos e estórias que encontramos na pampa platina que abrange outros países como o Uruguai, Chile e Argentina. A oralidade do sul da América do Sul ecoa pela narrativa muito bem costurada em cena.
No dia 29 de Setembro de 2018, pude assistir Fabulas do Sul na temporada de estreia no Centro de Cultura Ordovás, na capital da Festa da uva e do frio congelante. Foram duas apresentações dentro do clima tropeiro de ser, dia quente e noite fria de doer às costelas. A função mal começou e já teve inicio a cantoria no compasso do bombo leguero:

Somos viventes, contamos histórias;
Se aprochega, vamos contar.

São de terror, também de amor;
Mas tu vais se impressionar...
  
De chapéu tapeado de contra ao vento conhecemos os três viventes: Aparício, Charque e Joca. Logo atrás troteando os cascos como se atravessando as picadas deste pago rio-grandense, se aprochega o Century. Um cavalo que em certas feitas se mostra mais sagaz que os três gaudérios perdidos em algum rincão. Assim seguem suas jornadas acampando aqui e ali entre o verde e o azul da pampa gaúcha.
Dos quatro amigos, Joca é o mais cheio de segredos e artimanhas, mais liso que sabão de aroeira, que aos poucos vai se revelando. Nesta história somente o teatino Joca conhece um mapa que leva a um tesouro perdido. Este mapa é a única herança da pampa pobre que seu avô lhe deixou, com a condição de que um dia encontraria o local e ficasse muito rico. Mas (sempre tem um Mas!) o tesouro esta numa casa sem portas e sem janelas e por séculos é guardada pela assombração do índio velho chamado M’bororé. Achar esse tesouro é o fio condutor da encenação que segue no alvoroço do emendar de fábulas. Além da Lenda da Casa do índio M’bororé, temos também a da Cobra M’boitatá, da Erva Mate e as histórias do Negrinho do Pastoreio e da Salamanca do Jarau. Nossos rapsodos se desdobram para nos contar tantas lendas em pouco tempo.
É preciso dizer que para encenar este conjunto de fábulas que passa por assombrações que protegem tesouros, cobras de fogo que engolem olhos, sementes de erva mate ofertadas por deuses, crueldades de estancieiros com um jovem empregado e uma princesa que enfeitiçada virou lagartixa encantada, seja necessária uma boa preparação dos atores e atriz. Tanto para obter uma crível habilidade na contação de histórias, como também uma boa prática na manipulação de objetos, bonecos, máscaras e elementos de cena e um bom domínio das técnicas do teatro épico.

Aline Zilli, Jonas Piccoli e Pablo Beluck não deixam a desejar, suas atuações se mostraram consistentes diante de um público exigente composto de idades entre 08 aos 80 anos. À atriz coube desempenhar o papel de Joca, que no final faz a grande revelação do espetáculo (que não contarei, assista). Jonas Piccoli dá vida ao agitado Aparício, que no entrevero de vontades pareceu-me descobrir o verdadeiro sentido da vida de andarilho pelos pagos do mundo. Já Pablo Beluck, embora jovem nas searas do teatro já se mostra um veterano na arte de interpretar ao dar voz e corpo ao desconfiado Charque, grande amigo de Aparício. Ambos, além de executarem seus personagens principais, por meio da atuação épica cumprem excelente desenvoltura com os demais personagens das Fábulas do Sul, tudo orientado pelo olhar generoso do diretor e dramaturgo Jonas Piccoli.
O Grupo UEBA Produtos Notáveis investiu bastante na utilização do teatro de animação neste novo trabalho. Temos além do cavalo Century, que consiste num boneco articulável do tamanho natural de um cavalo adulto que permanece em cena o espetáculo inteiro. Também há o Deus Tupã, representado por um boneco gigante de três metros de altura, as máscaras, o envolvente boneco do negrinho com a sua lamparina e os minimalistas cavalos no potreiro. Tudo muito bem empregado nas cenas e em consonância com cenário, adereços e figurinos, aliás, as vestes bem retratadas e funcionais.
Um dos destaques são as cenas da Lenda do Negrinho do Pastoreio. Não só pela exímia elaboração e estética do boneco, como também pelo tipo de articulação que possibilita a leveza e sutileza empregada pela manipulação de Aline Zilli. O boneco do Negrinho do Pastoreio causa um efeito impressionante em cena. A atriz também conseguiu dar boa modulação de voz e no tempo certo, ora alegre ora triste, ao menino negro que sofre pesada crueldade dos patrões. O Grupo retrata a lenda do Negrinho do Pastoreio como ninguém até o momento. Constrói na medida do quase intangível uma cena delicada e comovente para esta lenda tão forte e dolorida. Um passado sombrio que ainda ecoa em nossa história e que lamentavelmente persiste em se repetir nos dias atuais não só no sul, mas no mundo inteiro.
Outro destaque são as cenas da Lenda da Salamanca do Jarau, conhecida também em outros países como na Argentina por exemplo. O Grupo compõe de forma equilibrada uma reviravolta que acontece no meio desta parte da trama. Quando estão contando a história da Princesa Moura, Teiniaguá, que por meio de um feitiço é transformada por Anhangá-pitã, o diabo vermelho, em uma lagartixa encantada e condenada a ser guardiã de uma caverna repleta de tesouros e perigos no Cerro do Jarau, que fica na metade do sul do Rio Grande do Sul, de repente acontece uma interrupção e um grande segredo é revelado pelo travesso Joca.
O bem sucedido final com a história da Princesa Moura, que se passou num longínquo tempo, nos transporta para a reflexão de um dos pontos nevrálgicos da sociedade nos dias atuais: a força e o papel da mulher na história. É preciso dar voz e dialogar sobre esta questão, nossa história é repleta de histórias que precisam ser contadas.

Fabulas do Sul é um espetáculo que merece se espraiar pelos rincões deste mundo. O espetáculo por trazer em seu bojo parte do nosso imaginário ele contribui plenamente para que a tradição da oralidade se mantenha. Estimula que nossas lendas sejam transmitidas de geração a geração e o universo das fábulas continue ativo no futuro. É isto que os personagens Joca, Aparício, Charque e Century nos mostram, que o verdadeiro tesouro, a verdadeira riqueza, não esta no ouro e sim no imenso fabulário que possuímos e temos o dever de manter esse legado vivo.
Entonces vivente! Passe adiante o chimarrão, essa bebida amarga da raça que adoça meu coração. E dá-lhe lenda Xirú!

*Márcio Silveira dos Santos é professor, pesquisador, ator, diretor, dramaturgo. Integrante do Grupo Manjericão (RS). Doutorando em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor dos livros: Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016) e Um Artista de Rua faz mais que um Ministro da Cultura (2018).