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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

2ª Carta de Amir Haddad à Jandira Feghali

Senhora Secretária

Fiquei feliz por receber resposta desta Secretaria às questões colocadas por mim em minha carta aberta. Acho que assim estaremos dando a cidade um exemplo de diálogo e cidadania.

Antes quero reafirmar a senhora que meu impulso não é de maneira nenhuma beligerante. Não me move nenhum sentimento agressivo ou antagônico. Pelo contrario, reconheço na senhora uma amiga e uma parceira na luta pelo crescimento e desenvolvimento do povo brasileiro. A cara do inimigo é bem diferente.

O que me interessa não é a guerra, mas o diálogo profícuo, estimulante, entre duas pessoas com pensamentos e sentimentos afins, embora, às vezes com ações diferentes. E principalmente, coisa rara, um debate aberto entre um cidadão e um gestor público. A senhora, como eu, sabe como estes espaços de discussões desapareceram com a implantação do governo militar no Brasil. Foram 25 anos de proibição da palavra e lavagem cerebral do pensamento da população, através da educação e dos meios de comunicação de massa a serviço destes ideais.

Tergiversar, altercar, discutir questões públicas sociais importantes com a senhora, faz com que eu comece, finalmente, a me sentir livre dos laços que a ditadura lançou sobre nós.

Demora muito, Sra. Secretária, e muitas vezes, nós mesmos repetimos procedimentos que repudiaríamos, se não estivéssemos de alguma maneira contaminados pelo vírus e pelo ranço do autoritarismo. Estamos conversando, coisa rara hoje em dia. Desde o inicio da década de 80 (oitenta) que estamos tentando.

Foram necessários dois mandados do Presidente Lula pra isto apenas começar a acontecer. Demora muito.

Mas estou feliz que estejamos ocupando este espaço para trocarmos idéias. É como se fosse ao vivo, e melhor, porque é publico. É diferente do que entrar em um endereço eletrônico público para discutir medidas já tomadas ou a serem feitas.

Mesmo que, por algum motivo nossa correspondência se encerre por aqui, já teria valido a pena.

Dito isto, vamos ao nosso assunto que é de definir políticas públicas para atividades artísticas nos espaços abertos da cidade do Rio de Janeiro, que possam ir além do controle administrativo ou compra de produtos.

A Sra. Secretária nos acenou com a implantação de um Decreto, que ao mesmo tempo que regularizasse as apresentações em praças públicas, também as protegeriam de possíveis constrangimentos com a Guarda Municipal e seu conceito de Ordem.

Na ocasião não concordamos com isto, pois, achávamos necessário uma política muito mais ampla para as atividades em espaços públicos, numa cidade como o Rio de Janeiro do que simplesmente controle. Achávamos e continuamos achando que estas medidas mais entravam do que ampliam o aparecimento, crescimento, e andamento de atividades culturais nos espaços abertos, públicos.

Mas para que não parecesse que nós somos daqueles que sabem discordar de tudo e que não conseguem propor nada, nós resolvemos enviar a esta Secretaria, uma sugestão de proposta mínima de organização e estímulo que não confundisse estimulo e controle.

O movimento de Teatro de Rua representa uma antiga nova ordem, que vem de baixo para cima e o poder público deveria contemplá-la. Há uma evidente vontade de ocupação dos espaços públicos no Rio de Janeiro, e a questão deveria merecer um olhar mais aprofundado e interessado do poder público, e não apenas medidas "protetoras" ou organizadoras. O controle não é estimulo.

Por isso propusemos outro enfoque e outra maneira de resolver o problema, que consideramos como verdadeiramente estimulante, e que deixaria qualquer artista das ruas do Rio de Janeiro muito feliz. Por estar trabalhando sob proteção artística, Cultural e não apenas policial.

Todos nós cresceríamos, e acredito, outros grupos e outras pessoas, poderiam se interessar por uma atividade que tem em seu respaldo a proteção e o estimulo do poder publico mediante regras fáceis de serem implantadas, e atendimento cordial.

Nós inverteríamos a ótica do Decreto, estimulando primeiro o aparecimento do fato e depois sua organização.

Os acontecimentos/ eventos de rua são muito variados, e tem naturezas diferentes. Vão desde um único artista se apresentando sozinho na rua até a um grande show de algum pop-star na praia de Copacabana. É preciso fazer a distinção. A política de fomento ás atividades dos grupos de São Paulo provocou o aparecimento de inúmeros grupos de Teatro de Rua, que de outra forma não teriam como vir a tona nem mesmo no sentimento dos artistas. Organizar o que existe é acompanhar os acontecimentos. Organizar o que não existe é determinar os acontecimentos. Esta talvez seja a diferença entre um Estado Progressista e um Estado totalitário. O que deve um homem público fazer? O que deve um gestor público fazer? E o que devem os artistas fazer, que não queiram simplesmente se colocar no "mercado Cultural"? Política de "mercado" para a Cultura? Este pensamento neo-liberal parece que se modificou um pouco neste nossos últimos tempos. Temos de repensar alguns procedimentos. Há uma emergência de uma nova realidade Cultural, no país, que circunda a produção Cultural voltada para o mercado, mas não se confunde com ela. Virá daí o crescimento e desenvolvimento pleno da vida cultural brasileira.

As atividades Culturais em espaços públicos, abertos é uma dessas emergências.

Criar condições para seu desenvolvimento faz avançar o processo de desenvolvimento da nação brasileira. O país vai bem. A pátria vai bem. Mas a nação sofre. A nação brasileira sofre. E neste momento a Cultura ou as emergências culturais ancestrais e contemporâneas, terão importante função na sua construção e saneamento.

Em todo o mundo, no momento, as nações sofrem perda de suas identidades. A turbulência é evidente. Uma nova emergência cultural poderá nos ajudar a fazer esta travessia tão difícil do momento em que vivemos. Os artistas têm, talvez, esta função na sociedade. Fazer as passagens, abrir as janelas, criar horizontes, despertar esperanças.

Esta atividade não pode, porém, por sua natureza, estar sujeita às leis e regras do mercado ou um sentimento de ordem estéril e castrador.

Sua historia e seu passado Sra. Secretária me fazem pensar que temos nós dois, os dois, o mesmo anseio de justiça e liberdade, a mesma crença num possível mundo melhor. A arte nos faz acreditar nisso. Não sei se na política um sonho deste sobrevive. Governar com arte é coisa rara. A Sra. tem esta chance , por ser quem é, e por estar ocupando justamente a Secretaria de Cultura do Município, que tem sofrido muito nos últimos anos com gestões medíocres. A Sra. Sabe. O Rio de Janeiro não merece.

O que é política Cultural? Como a Cultura deve ser encarada? Só como "produto", "indústria", "mercado"? Que olhar temos para as manifestações culturais que não têm este caráter? Que desejo temos dentro de nós de proteger e estimular estas manifestações e acreditar nelas e vê-las crescer e se transformarem e amadurecerem? O que queremos mais? Que elas se realizem, se multipliquem e enriqueçam a cidade e a vida do Cidadão? Ou vamos preferir controlar tudo e manter a cidade limpa? Qual é o nosso sentimento pela cidade? O que queremos que proliferem por suas ruas, até as Olimpíadas? Artistas ou Polícia? Trancar os artistas nas salas e deixar as ruas para os violentos e a polícia? Desertificar as cidades?

A Sra. acha que estou indo longe demais?

É que me vejo tão longe do que imagino ser uma cidade feliz. E o Rio de Janeiro é de todas a mais feliz. Tenho medo que consigamos entristecê-la definitivamente. Por isso me assusto. Tenho medo que um sentimento fascista tome conta da cidade, diante de nossa incapacidade de resolvermos nossos problemas sociais, a não ser pela força.

A Cultura tem um papel, uma função.

Quando propus, Sra. Secretária, aquele tipo de "organização" e estimulo achava que iríamos discutir estas questões de um ponto de vista mais amplo.

A Sra. fez um Decreto e nós não gostamos. E resolvemos discutir e propor uma alternativa. Esperava que sua resposta fosse emitir alguma opinião sobre o que propusemos, e que era muito diferente do pensamento por detrás do Decreto. Infelizmente a Sra. falou de outras coisas, de muitas outras coisas, todas importantes, mas parece ter ignorado a nossa proposta, não julgando-a merecedora de nenhuma consideração, ou resposta..

Mas estou e sempre estarei aberto a ter com esta Secretaria o mais amplo, aberto, impessoal e isento diálogo. Não há nada mais democrático que o cidadão poder discutir com o gestor público medidas que vão interferir diretamente em sua qualidade de vida.

É para mim tão importante esta questão que acho que qualquer política pública deveria passar antes pelos olhares, que deveriam ser mais esclarecidos, da Saúde e da Cultura.

Atenciosamente

Amir Haddad

sábado, 19 de dezembro de 2009

CARTA ABERTA AOS GOVERNANTES

O Movimento de Teatro Popular de Pernambuco - MTP-PE, que agrega boa parte da cultura do Recife se reuniu nesses ultimos dias 13, 14 e 15 de dezembro de 2009 em resposta ao não cumprimento por parte do poder público em NÃO apoiar a nossa cultura.

Nos seus 25 anos de existência o MTP-PE, já realizou encontros, mostras e vivências que discute Política Cultural, Artística e estética. Hoje com a 7ª edição, leva à população as produções de grupos locais e regionais, além da reflexão sobre o próprio fazer artístico teatral e sua importância na construção da Identidade Cultural do Recife.

Em seu ato político/pedagógico/teatral, o movimento vem colaborando para que a população de uma maneira geral, e em especial as camadas populares participe de um processo de democratização do acesso aos bens simbólicos, construido historicamete pelo homem, fazendo da rua um espaço aberto para que, de forma artística, inferir uma nova leitura de mundo e na ressignificação da própria vida.

Senhores Governantes, nós artístas populares semeamos a alegria, trazemos a esperança e solidariedade buscando atingir a diversas camadas da sociedade que por muitas vezes ficam no esquecimento.

Hoje estamos nas ruas - de novo, agora e sempre, denunciando as dores, as agônias, os subterfúgios, mas ainda, sobrevivendo, resistindo, criando e lutando, com armas que atingem as pessoas por meio do teatro, da música, da poesia, da dança, objetivando fortalecer o nosso bem maior que é a nossa arte.

Assim como o Movimento o Festival nasceu como prova de resistência popular tendo em vista as dificuldades encontradas para sua realização, contundo com a colaboração dos grupos locais e regionais, a insistência dos militantes consegue enfrentar o marasmo, o cansaço, a falta de recursos e principalmente a grande e preocupante omissão dos gestores públicos, que não reconhecem a importância deste Festival que soube se imporem no calendário cultural da cidade.

Nesses três dias de encontro o MTP-PE reuniu artistas do Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba para discutir questões que estão afetando o movimento cultural local, sendo elas:

  • Falta de incentivo a Cultura;
  • Dificuldade no diálogo Gestão/Movimentos Culturais;
  • Inclusão do Festival de Teatro de Rua no calendário e no orçamento que possa garantir a sua realização de forma digna;
  • Garantia de um espaço para a sede do Movimento de Teatro Popular - MTP-PE, na Casa da Cultura.
  • Edital específico de Teatro de Rua para montagem, fomento e circulação.

Nós, que fazemos o MTP-PE, juntamente com os parceiros abaixo assinados, espera que as nossas preocupações/reinvidicações sejam recebidas e atenditas como forma de demonstração de sensibilidade e consciência política da função social da arte.

Movimento de Teatro Popular de Pernambuco - MTP/PE

Movimento Escambo Popular Livre de Rua

Bando La Trupe - RN

Cervantes do Brasil - CE

Pintou Melodia na Poesia - CE

Arte e Riso - RN

GRUTA - Grupo de Teatro Aberto da Paraíba - João Pessoa

Arteiros - Olinda - PE

Grupo de Teatro Popular Vem Cá Vem Vê - Recife

Ifá-Rhadhá de Art' Negra - Olinda - PE

Grupo de Teatro COQUEARTE - Recife/PE

Cia Expressarte de Teatro e Dança - Recife/PE

Grupo Drão de Teatro - Recife/PE

Cia. Máscaras de Teatro - Recife/PE

Movimento Desce a Ladeira - Recife/PE

POESIS - Grupo Cultural do Alto José do Pinho

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

POMBAS URBANAS: Voar Alto e Semear Sonhos

Por Adailtom Alves Teixeira – Licenciado em história, ator e diretor teatral

Trabalho apresentado como requisito da disciplina As Práxis Teatrais de Grupos Paulistanos de 1940 a 1980, Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista.
Professor Doutor Alexandre Mate.
Apresentação
O texto que se segue é fruto de uma entrevista com Adriano Mauriz e Juliana Flory, integrantes do Pombas Urbanas e foi realizada em 16/03/08 na cozinha do Centro Cultural Arte em Construção, sede do Grupo, em Cidade Tiradentes, maior conjunto habitacional da América Latina.
A entrevista foi realizada para compor a documentação de uma pesquisa de Iniciação Científica em História sobre o teatro de rua de São Paulo, junto a Universidade Cruzeiro do Sul, em 2007 e 2008. O que se segue é uma transcriação, termo utilizado pela História Oral, em que o texto é apresentado na primeira pessoa e o entrevistado é um colaborador, portanto, um co-autor.
Adriano e Juliana falaram do começo da história do Grupo, dos projetos desenvolvidos e em desenvolvimento, de seus últimos espetáculos e, principalmente, sobre teatro de rua, foco de nosso trabalho na época.

O começo e os projetos
"Todos os seres humanos, sem distinção de classe e de raça, crescem criando suas características individuais de expressar-se, de comunicar-se. Portanto, todos podem ser atores e fazer arte, independente de suas individualidades."
Lino Rojas

O Pombas Urbanas surgiu a partir de uma oficina, um projeto chamado Semear Asas que o Lino Rojas foi desenvolver na oficina cultural Luiz Gonzaga, em são Miguel paulista, em 1989. Na época a Bete Mendes estava na Secretaria de Estado da Cultura e ela o convidou. Era o projeto de criação das oficinas culturais. O Lino vinha de um processo chamado teatro em comunidades, que havia desenvolvido em várias cidades do interior de são Paulo e por isso a Bete Mendes o convidou. Na oficina Luiz Gonzaga, o primeiro projeto de teatro foi o Semeando Asas que deu origem ao Grupo.
Hoje (2008) somos nove integrantes: Adriano Mauriz, Marcelo Palmares, Juliana Flory, Paulo Carvalho, Marcos Kajhu, Natalie Conceição, Ricardo Big, Diego Rojas, José Solón. Agora, aqui, hoje, na Cidade Tiradentes, nós temos mais de trinta pessoas envolvidas no projeto diretamente, fora alunos.
Quanto aos espetáculos, temos mais de dez no histórico. No primeiro momento do grupo, buscamos essa consolidação artística, depois começamos a dar aula e desenvolvemos o projeto Semeando Asas, inicialmente nos bairros da periferia de são Paulo. A quatro anos nos tornamos uma Oscip, que é o Instituto Pombas Urbanas, a partir disso, foram desenvolvidos outros projetos. Um deles foi o projeto Visita Intima Segura, realizado dentro do presídio feminino do Tatuapé. A idéia era formar agentes multiplicadoras de saúde por meio do teatro. Depois veio o projeto A Parceria Que dá Certo, uma assessoria para pequenos produtores rurais, em parceria com o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), e finalmente o Centro Cultural Arte em Construção, que é esse projeto aqui na Cidade Tiradentes. Trata-se da criação de um espaço cultural para a comunidade da Cidade Tiradentes, tendo os jovens como protagonistas do desenvolvimento local, cultural e humano. O projeto do Centro Cultural desdobra-se em outros: o Ponto de cultura, o Casa Brasil, que é a inclusão digital, tem O Canto das Letras, um projeto para incentivar o letramento via teatro, e mais recentemente o Semeando Asas, que tem o patrocínio da Votorantim.
Alguns desses projetos, isso é importante, hoje em dia estão tornando-se pequenos programas dentro do Centro Cultural. Por exemplo, o Semeando Asas é um programa que está voltado para formação de público e formação de jovens em teatro, ele é o eixo da nossa atividade, da nossa ação na Cidade Tiradentes. Tem várias ações de formação para teatro: cursos com profissionais que convidamos, uma programação com grupos amadores e profissionais etc. Já O Canto das Letras, é específico para criança, porque criança é uma demanda do bairro, e queremos dialogar com elas através da arte. Tem o Somos do Circo, um projeto para crianças, mas exclusivamente de circo.
Quando nós chegamos aqui em Cidade Tiradentes, a ideia era trabalhar teatro com o jovem. Só que no primeiro dia que abrimos a porta do galpão vieram cinquenta, setenta crianças que só saiam na hora de comer e na hora de dormir. Por isso começamos a elaborar propostas para elas. Nas aulas de circo, quando precisava lê uma esquete, apesar de muitos estarem na sexta série, não sabiam lê. Então resolvemos fazer uma experiência na biblioteca, mesmo sem formação pedagógica em educação, depois de seis meses havia umas três crianças que tinham aprendido a lê conosco. Então, falamos, se eles gostam de ficar aqui, gostam de aprender conosco e se temos esse espaço, precisamos elaborar projetos para elas também e foi aí que nasceu o Canto das Letras.
As crianças não têm preconceito. Quando chegamos e abrimos as inscrições para os cursos ou nas primeiras apresentações nas ruínas do galpão, as crianças entraram para vê teatro, mas os jovens e os adultos não, porque tinham outra concepção do que é teatro. Abrimos as inscrições: 800 inscritos. Todo mundo quer fazer teatro. Hoje nós temos uma formação continuada de público e um público assíduo de crianças, adultos etc. Mas o nosso foco é o jovem e sentimos que ele ainda tem um pouco de preconceito, por isso estamos melhorando a estrutura do espaço, ele acha que esse teatro não tem a mesma importância que ir ao Shopping Aricanduva. É preciso modificar esses valores. Entretanto, eles gostam de teatro. Tem um grupo que veio aqui, de Rio Grande da Serra, chamado Água e Vida, é um bando de jovem da idade deles que faz teatro, eles adoram! Porque se identificam, se a peça é boa eles gostam. Eles gostam de vê bom teatro. Gostam de estarem confortáveis, não é porque está na periferia que não deve ter conforto.
A nossa relação com o público mudou muito, pelo fato de estarmos integrados na comunidade. Por exemplo, quando apresentávamos teatro de rua no Centro, na Avenida São João, o Mingau de Concreto, as vezes passávamos para irmos num banco e os camelôs perguntavam: e aí, vai ter show hoje? Tratavam-nos como personagens. Aqui apresentamos e no dia seguinte vamos à padaria comprar pão e o vendedor falava: Eh Zamara, eh Zinho, veio comprar pão? Vai dá pão pro macaco?[1] Então há a necessidade não só de apresentar o espetáculo, mas também entender a vida, o dia a dia da comunidade. Porque no centro você está lá trabalhando e aqui você se relaciona com o público na hora de comprar pão, na farmácia... Então é preciso entender muito mais o público.
Quanto a relação com o jovem, às vezes eles não vem porque não conhecem. Mas aí realizamos um projeto em que a escola os trazem, passam a adorar e querem saber quando terá novamente para retornarem. Temos os eventos no auditório de cinema e teatro. Percebemos que eles gostam mais de teatro, porque o cinema eles tem acesso ao dvd, por isso quando ficamos um tempo sem espetáculos, eles perguntam quando terá teatro de novo.
Criamos uma relação humana e muito solidária também, apesar de ser o Centro Cultural, as pessoas dizem "eu vou ao teatro". Aqui é o teatro, tudo é o teatro. É a relação com o teatro. Tem umas coisas muito bonitas, por exemplo, quando veio o pessoal da Colômbia, eles vieram trazer comida; outra vez estávamos trabalhando até meia noite, aí bateram: ta, tá, ta... "Olha meu filho vim trazer refrigerante, que vocês estão trabalhando até tarde". Alguém da comunidade veio trazer refrigerante pra nós porque estávamos trabalhando até tarde. Agora, no projeto Semear Asas, estamos adotando quatro praças, a primeira no Inácio Monteiro. Lá aconteceu um negócio lindo! Eles pintaram a praça inteira, a população pintou a praça para receber o projeto: pintaram as árvores até a metade, reformaram bancos, limparam. Esse é um negócio que eu acho lindo!
E essa praça, está na COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação) mais antiga daqui. A Cidade Tiradentes tem 23 anos, lá tem 32 anos. Quando surgiu essa comunidade veio muita gente do interior de São Paulo. Então eles tinham uma cultura de fazer quermesse, encontrar-se na praça. Mas quando construiu todo o bairro e chegou uma delegacia lá, começou ter uma violência da polícia com eles, foram ficando com medo e foi se perdendo essa cultura. Então, só nesta praça vamos descobrindo que tem outra cultura. Nesse projeto vamos rastrear, tentar recuperar e compreender a história, pois dentro da Cidade Tiradentes tem sub-regiões que tem histórias próprias.
Nessa praça tem uma caixa d`água desativada e a muitos anos não acontecia nada lá, a prefeitura quis tirar e a população do entorno pediu para que não tirassem, porque é a história deles, é um símbolo. Veja, quando chegamos já tinham uma relação com a praça, no passado acontecia muita coisa e faz tempo que não acontece nada, então o teatro ir para lá mexeu com muita coisa na vida deles.
A COHAB é um projeto bem desumano, porque os experts, os engenheiros, construíram pensando em botar o povo pra dormir, mas sem pensar em estrutura. Então por exemplo, nesse lugar as casas não têm garagem – porque pobre nunca vai ter carro – quando puderam comprar carros tiveram que destruir a sala pra poder construir a garagem dentro da sala. Diminuiu o tamanho da casa pra poderem ter um carro. As ruas não tinham espaço para poder passar o caminhão de gás. Assim você vai entendendo como foi gerado a violência ali, compreende por que não tem esses espaços de convivência para se relacionar. O cara fica dentro de casa porque ele tem medo, porque a rua não oferece nada. Então esse é um projeto que gera violência mesmo. Para reverter isso é preciso ter escola, espaço cultural, hospital, infra-estrutura, direito ao lazer, a convivência. Por isso mudamos um pouco nossos conceitos do que é bom teatro, se o teatro amador do Rio Grande da Serra tem essa repercussão com os jovens, porque não é teatro? É um ótimo teatro... agora um cara que vem aqui e ninguém entende nada, não sei se é bom teatro... estou mudando meus valores, entendeu?
Embora até hoje não houve uma peça que eles não gostassem, porque tem muito valor essa situação deles estarem em um lugar juntos e de ter outras pessoas representando para eles. Eles aprendem. Quando veio peças com muito texto, política, eles também curtiram, dialogaram, reagiram.

Pombas Urbanas e a Mídia
Nossa relação com a mídia... O Grupo tem 18 anos, então tem outra história. Tem esse projeto na Cidade Tiradentes e tem também a trajetória do Grupo. Nós começamos a ir para rua em 1996, antes já saíamos, mas o primeiro espetáculo de rua, Mingau de Concreto, foi 1996, e teve muita repercussão. Aliás muita coisa que o grupo fez sempre teve espaço. Aqui, às vezes brigamos pra poder divulgar alguma coisa porque não faz parte do circuito cultural da cidade. Cidade Tiradentes não está no circuito cultural. Já ouvimos assim: "o nosso público não vai aí, o público que compra o nosso jornal, nossa revista, não vai até aí." Por isso não há interesse em divulgar. Mas nós tentamos cavar essa outra imagem do bairro que aqui tem uma vida cultural, tem uma efervescência, tem uma proposta. E somos bem recebidos, eu acredito.
No começo, no Mingau de Concreto, que a gente fazia assessoria de imprensa pra divulgar os trabalhos, éramos bem pentelhos! Porque na época não tinha e-mail, dezoito anos... Então íamos pessoalmente na redação do jornal, porque tinha que levar a foto, ainda não era digitalizada e sempre se dava um jeitinho de subir e falar pessoalmente com o jornalista. E às vezes as pessoas se abriam, porque estávamos ali, desbravando para ser ouvidos e às vezes brigavam conosco. Então, pra conseguir ter um espaço foi muito batalhado no começo. Agora, nesse momento estamos querendo que o Centro Cultural entre no circuito, no roteiro de cultura da cidade, porque aqui vem grupos bons, peças boas, estamos na periferia, mas estamos trazendo coisas boas. Tem essa briga com a mídia e ao mesmo tempo estamos formando jovens pra fazer assessoria de imprensa. Os jovens do bairro. E também estamos abertos paras as coisas que estão acontecendo. Pra nós é um processo de aprendizado, na história do grupo, sempre fomos aprendendo a fazer as coisas e aberto para as coisas que estavam acontecendo. Então, por exemplo, hoje em dia, os jovens estão aprendendo muita essa coisa das mídias digitais, mais alternativas: sites, blogs, não sei o quê... Os jovens estão num processo de aprendizagem e abertos pra tudo que é comunicação. Não interessa só a Folha ou sair na Globo, não, é tudo. Interessa nos comunicarmos e sermos vistos.
Ao fazermos um evento na praça, eles filmam no celular, incentivamos para que coloquem o vídeo no You Tube. Às vezes uma matéria no jornal ajuda a institucionalizar, mas não significa que o seu projeto está se comunicando com todo o público que ele pode atingir. Então também são muitas outras mídias hoje em dia.

A rua e o processo de criação
Como ir para a rua? Pra nós esse foi um processo muito natural, porque em São Miguel não tinha teatro, não tinha um espaço de teatro. Então quando começamos a fazer as coisas, criávamos com o Lino numa garagem da Oficina Luiz Gonzaga, que era grande, aí íamos pra Praça do Morumbizinho e depois começamos a ir para a praça do Forró. Era uma coisa natural. Tinha a cena dos Pássaros Chorões que Vieram da Bahia, que dialogava com o espaço da praça. Eram dois passarinhos que estavam chegando da Bahia e pousavam na praça. Eram coisas que era criado ali com aquele espaço, já vivendo a nossa realidade. A proposta do Lino sempre foi um processo de pesquisa linguagem, dramaturgia e formação do ator. Então não fizemos só rua. Fizemos rua, palco, palco alternativo. Todos os textos eram resultado da nossa poética, do que estávamos vendo e vivendo e da formação de ator, que era a base para o Lino Rojas. Ele teve que abandonar muita coisa do que aprendeu na academia, pra poder dialogar com esses jovens. Então, sempre foi uma pesquisa que dialogava com a nossa realidade, por isso a praça foi natural. E em noventa e pouco, quando criamos o Mingau de Concreto, na verdade só recuperamos um monte de experiências que já brincávamos, já pesquisávamos, fizemos um espetáculo e fomos pra rua. Então, não somos um grupo de teatro de rua. Não, mas a rua foi natural e muito importante!
O primeiro espetáculo do Grupo, Os Tronconenses, não se deu na rua e antes dele teve um monte de intervenção, coisas que criávamos na rua, na garagem, em casa, em qualquer lugar. Os Tronconenses foi feito na garagem e quando subimos a primeira vez no palco pra fazer não sabíamos nem onde era a coxia, nem como entrava, nem como saía, nem que cena vinha depois da outra. Anotamos tudo numa folha de caderno e colamos atrás, nos bastidores. Havia uma parte que eu saia correndo e devia sair pelo meio, era um pano preto – a rotunda –, comecei a apalpar o pano preto do fundo do palco, eu olhava pro público e voltava a apalpar e olhava de novo, até que eu achei a fenda e saí. E o público ria, parecia que era ensaiado. Nós ganhamos todos os prêmios do Festival de Teatro Fepama. E era a primeira vez, não sabíamos o que era palco. Fazíamos teatro sem ter palco.
Agora, o teatro de rua é muito importante, por causa do acesso. O fato das pessoas poderem ver teatro em qualquer lugar, é maravilhoso! Pra nós, fazer teatro de rua, foi uma escola, porque buscamos fazer um teatro que se comunica com as pessoas. Então na rua não tem limites para dialogar com o público. E para São Paulo, uma cidade que nem essa, com uma vida cultural muito grande, mas que tem um monte de gente excluída dessa vida cultural, não tem acesso, tem que ter teatro de rua. É fundamental que tenha teatro de rua em São Paulo.
É possível dá mais condições de acesso. Por exemplo, eu estive numa reunião, num dia desses na Coordenadoria de Educação, eu falei que o nosso bairro, Cidade Tiradentes, tem três teatros e existe um projeto para construção de mais um, que é o Centro Cultural em convênio com a França, aí a coordenadora de educação falou assim: "É mesmo! Aonde?" Respondi: "Nos CEUs (Centro Educacional Unificado)[2], são seus teatros". Ela não sabia que tinha teatro. Então o que eu vejo, é muita incompetência! Porque se o CEU tivesse uma programação, se realmente quisesse... Hoje tem quantos grupos na cidade de São Paulo? Se se visse a importância que o teatro pode ter para as pessoas, dariam acesso. Aí se poderia falar eu não vou porque não quero. Mas hoje não vão porque não podem, porque não tem acesso.
Eu acredito que é importante sim, termos mais grupos de teatro, acho que o público ainda é muito restrito, se juntar todo mundo que vê teatro não enche um estádio de futebol. Ainda são os próprios grupos que veem eles mesmos e o que vai sustentar qualquer ação é ter uma base social. Então o teatro tem que chegar à população. Agora eu ainda acho que os grupos tem que se estruturar melhor, tem que ter independência, não podem esperar que caia do céu, que alguém ou qualquer instituição vá fazer os projetos deles, vá ensinar eles a serem alguém, um grupo profissional, não. Acho que junto com esse processo de surgir mais grupos, tem que melhorar a organização. Vai ser bonito quando tivermos mil, dois mil, cinco mil grupos, entendeu? É preciso pensar mais amplamente, deixar que surjam novos grupos. Outro dia eu vi um russo que mora no Brasil, e é de um grupo de teatro, não lembro o nome dele, ele falava na entrevista que na Rússia teatro é igual futebol. Todo mundo faz teatro. Todos vão ao teatro. Os atores são ídolos, iguais aos nossos jogadores de futebol. Mas aqui a nossa realidade é outra, ator não consegue nem fazer crediário nas Casas Bahia. Vivemos uma realidade bem complicada. Mas o teatro é importante, mas pra ser mais importante é preciso dá mais respaldo, é preciso se organizar melhor, formar mais público tem que ter mais gente gostando e defendendo o teatro. E às vezes as pessoas que fazem teatro fica muito neles mesmos, fica restringindo, aí complica.
No Pombas tem uma coisa, que ao longo dos tempos fomos construindo sonhos. Queríamos ser ator, ter um grupo, ter um espaço, formar jovens; sempre estamos construindo coisas que sonhamos, que pensamos um dia fazer. E uma das coisas que faz parte da nossa infância é sair pelo mundo apresentando, viajar, ir nos lugares e eu acho também que a rua possibilitou conhecermos um monte de lugares. Ir naquele lugar, fazer teatro, conhecer o povo de lá, ir pro outro lugar, conhecer o povo do outro lugar, isso dá um tesão!
Às vezes íamos nas praças que visitávamos, nas feiras, via as pessoas do lugar, tentava conhecer o lugar que estávamos indo, como aqui, estamos aprofundando a relação com a comunidade, eu sei que a rua deu um pouco isso. O Mingau de Concreto nasceu assim, vimos o miolo de São Paulo, o centro do Vale do Anhagabaú, os personagens de lá, quem mora lá, quem vive, como são as relações, pra fazer uma peça. É uma relação assim, grudado com a cidade, é uma relação ali, naquele momento, está acontecendo, o teatro é aquele momento. Tá acontecendo ali naquela cidade, com aquele povo. Pra nós sempre foi muito bonito fazer teatro de rua!
Histórias Para Serem Contadas é um pouco diferente, foi o primeiro espetáculo que fizemos após a morte do Lino. O último foi o Largo da Matriz, em 2004, também de rua. Era um monstrão: trinta pessoas em cena. Era um musical que passeava pela cultura de raiz de São Paulo, fala da história de São Paulo. Foi emocionante fazer. Desde esse espetáculo, desde a morte do Lino Rojas ficamos sem produzir nada. A primeira vez que entramos em uma sala para ensaiar o Mingau como repertório, começamos a chorar. E aí nos perguntávamos: será que vamos conseguir? Aí sentimos que o Lino não tava mesmo... agora são vocês! Agora somos nós que temos que fazer! E aí escolher um espetáculo novo foi difícil. Queríamos falar das histórias da Tiradentes, do que a gente houve, histórias de gente comum. Queríamos falar de pessoas comuns e transformar isso em histórias para serem contadas. Nós já conhecíamos o texto do Osvaldo Dragún, que o Lino tinha trazido pra gente. Mas nós nunca tínhamos montado um texto pronto. "Vamos fazer um texto pronto? Vamos!" Sempre tivemos muita restrição com isso. Queríamos fazer os nossos textos, sempre fizemos. "E a nossa produção, a nossa criatividade, nossa pesquisa? Mas precisamos fazer teatro." Estávamos com muito medo, é melhor fazermos alguma coisa, pra ficarmos mais seguros. Convidamos um diretor, o Hugo Villavicenzio. Pegamos um texto pronto e vamos ensaiar, vamos exercitar o ator, vamos nos exercitar como ator. Voltamos pra sala, pra fazer exercício de ator. Foi muito bom fazer, perdemos o medo do Mingau, perdemos o medo das coisas. Ficamos ensaiando um ano. Apresentamos já umas 40 ou 50 vezes, foi muito bom e foi também vê nossas limitações, foi identificar o que queremos fazer no futuro. Foi muito nos reconhecermos. Fazer teatro é se vê. O espetáculo, eu acho, não é a mesma coisa de nenhum outro. E talvez a gente pudesse ir mais longe com ele, mas tínhamos que fazer, porque estávamos com um projeto, o PAC[3], tinha que fazer nesse ano, fazer apresentações, não dava pra ficar mais tempo pesquisando. Mas foi uma delícia fazer, está sendo!
Mas, mesmo assim não sei o que é teatro de rua. Cada grupo tem a sua forma de falar, de fazer, acho que não "rola" uma definição do que é teatro de rua. Sinceramente eu não sei. Tem grupos que vão intervir mais na arquitetura do lugar... Cada espetáculo nosso foi uma coisa. O Largo da Matriz, parecia uma festa de cultura popular, chegávamos e fazíamos uma festa junto com as pessoas. O Mingau de Concreto também era uma festa, só que uma festa em outro sentido, eram as pessoas dali, falando delas que estão ali. O Histórias são histórias que as pessoas se identificam, vem conversar conosco, contar suas histórias. E nós queremos dialogar, é muito isso... O Lino uma vez falou numa capacitação de jovens: "O que eu sei fazer é as pessoas se relacionarem. Então vamos fazer um exercício aqui pra vocês se relacionarem." Eu acho que o teatro faz as pessoas se relacionarem na rua. A gente já viu cada coisa! Veja, uma coisa que não tem importância nenhuma, teatro, uma mentira que você está contando ali, cria tanta repercussão, cria esse espaço do diálogo, das pessoas se verem, se olharem. Acho bonito pra caramba! Agora eu não sei definir o que é teatro de rua.

Bibliografia
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.


[1]Refere-se ao espetáculo Todo Mundo Tem um Sonho, um infantil que fala de uma família circense que cuidam de um macaco, como se fosse filho.
[2]Inicialmente foram criados 21 CEUs na cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Marta Suplicy (2001-2004). Todos dotados com teatro, sala multiuso, quadra poliesportiva, piscinas, biblioteca, Creche e ensino Fundamental I e II. Nas gestões seguintes (Serra-Kassab), foram construídos outros equipamentos com esse nome, porém modificaram a estrutura.
[3]Hoje ProAC, Programa de Ação Cultural, Lei 12.268/06 da Secretaria Estadual de Cultura, apóia projetos culturais de duas formas, através de incentivo direto do Estado e por meio da renúncia fiscal.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O ESCAMBO EM SÃO PAULO E ESCAMBITO NA PONTE ÁEREA

Por Ray Lima - Cenopoeta

"É duro ser poeta num país sem raiz[1]

É duro ver poesia num gigante sem nariz

É triste ser alegre no Brasil

É absurdo ser antena dessa imagem obscena

É apenas mundo falar para surdos usando

o código e a linguagem dos ouvintes

Mesmo assim insisto em ser poeta arriscando

como artista atento como atleta

Não me afeta a escassez de inspiração

A poesia (razão e raiz do meu sentir) vai

compondo essa canção além

do silêncio do centro da margem,

pela periferia da imagem atrás da ilusão"

Decolando

Poderíamos iniciar nossa conversa tecendo comentários sobre aspectos ou o conjunto dos espetáculos apresentados na mostra – evidentemente os que assistimos -, ou falar dos encantos e problemas de uma das maiores cidades do mundo, mas optamos por fazer uma reflexão sobre nossos voos, aterrizagens, caminhadas e rodagens durante a IV Mostra Lino Rojas, considerando nossa passada pelo Rio que acabou, como era de se esperar, ampliando as relações e as responsabilidades do Movimento Escambo, já imensas, para além do norte/nordeste. Nós e vários companheiros (as) já havíamos participado de outros momentos representando o movimento, porém desta vez, não só um grupo maior pode participar levando seus trabalhos como recebemos uma bela homenagem. Homenagem que consolida o Escambo como um dos movimentos mais significativos da história recente da cultura nordestina e do Brasil. É curioso que tenha sido germinado e brotado do ventre árido do polígono das secas, e ao invés de buscar seu fortalecimento nos grandes centros, cresceu de dentro para fora, emergiu do interior para o exterior, onde a vida naturalmente exige um pouco mais dos viventes para existir. É um movimento de resistência profundamente enraizado na arte e na cultura popular, mas extremamente político e motivado desde seu nascimento pela contracultura da escassez e da indústria da seca. O Escambo expandiu-se sem perder ou abandonar suas raízes sertânicas, a cidade de Janduís-RN.

Um rápido recorte, uma ponte aérea.

em São Paulo, no dia 11 de novembro/09, Júnio Santos – Cervantes do Brasil-CE; Filippo Rodrigo – Bando La Trupe-RN; Johnson Soares e Ray Lima – Pintou Melodia na Poesia –CE fomos ao Rio de Janeiro, onde transformamos o lançamento de um livro, o Lâminas, de nossa autoria, acompanhado do espetáculo de mesmo nome, em um belíssimo "ESCAMBITO" [2], promovido pelo músico e produtor Jadiel Guerra e sua companheira Jacqueline, o poeta José Terra e o Tá na Rua, com direito à bênção do mestre Amir Haddad e Maria Helena, além da presença marcante do Richard e da dedicação e empenho do Licko Turle que junto a um elenco de atores e atrizes maravilhosos, que participaram do início ao fim do encontro, cuidou de tudo e todos (as) com o carinho maior que possível foi. Cantamos, danças, cenopoetizamos, falamos de teatro, política, amor e economia, relembramos coisas, escambamos. Para nós, teve um sentido especial e profundo, pois vivemos no Rio muitos anos, toda juventude, e lá começamos a fazer teatro. Como colega de faculdade do nosso Licko, através do movimento estudantil e artístico, lutamos pela redemocratização do país e por liberdade, anistia, políticas públicas de cultura, democracia e cidadania plena, somando-nos a milhões de brasileiros daquela fase especialíssima da vida nacional. Tudo isso veio à tona. E o que proporcionava essa enxurrada de memórias mais uma vez era o teatro e a cenopoesia. O encontro das pessoas, suas ideias, saberes, sonhos e fazeres a partir da arte, o Escambo em movimento, em plena ponte área, vital. Uma festa inesquecível e única, "tão única e particular quanto o um de cada um".

Acreditando que o mundo é grande e generoso como a utopia e a atitude de muitos homens e mulheres ou pequeno e mesquinho como a avareza e a ganância de poucos (as) desse mesmo mundo, concluímos esse primeiro voo, rasante, mas que na prática foi profundo, agradecendo pela oportunidade ao mesmo tempo em que dedicamos às artes de rua e a todos (as) que teimam em aventurar-se pelos espaços abertos ou aberto-acorrentados pelo poder público de alguns municípios, trecho do poema "Amputação" do poeta carioca José Terra. Um dia sugerimos que se fizesse a reforma agrária do conhecimento médico e científico, agora cremos que está na hora de fazermos a reforma agrária dos espaços públicos abertos - praças, ruas e todos aqueles que possam acomodar um grupo de artistas, acolhendo nossa alegria que gosta de rolar leve, livre e solta. Demos vida, cor e sentido às praças abandonadas, descuidadas e cheirando à morte de nossas cidades!

"AS GRANDES CIDADES,[3]

estranhas como os esgotos,

exibem cara de vivo,

expelem cheiro de morto."

Voltemos para as ruas já! Façamos um levante com a ocupação simbólica das praças em nível nacional e ao mesmo tempo? Restabelecemos o "a praça é do povo" de Castro Alves. O intelectual, o bacharel, o menestrel, o mendigo, o pedinte, o médico, o professor, o camelô, o camponês, os sem-terra, o operário, comerciário, o carpinteiro, os sem-teto, os sem-teatro, nos esperam:

Volta, Ângela!!!

Teu nome jorra dos meus pulmões

E se multiplica em nitrogênio,

hélio, gases nobres

e cabeças surdas.

Em alguma praça do Rio, "do mundo" (grifo nosso):

Saens Peña, Afonso Pena, Praça Central do Morro Agudo...

"Volta, Ângela[4]

Uma outra espécie de grito

Se debate em seu peito,

Como um pássaro selvagem

Preso, pela primeira vez, numa gaiola,

Arranhando, ferindo, sem que ninguém ouça.

Volta Ângela!!!

Volta pra esse nosso mundo.

Ainda existe alguma esperança,

Nem tudo foi interditado.

Existem também tantas crianças bonitas:

a noite, a praça, o riso...

Um letreiro luminoso pede a tua volta:

Veja!

A letra "L" um pouco fosca,

o brilho azul...

Esse mundo precisa de você

Esse mundo precisa de brilho.

Volta...

São tantas crianças que nada sabem da vida.

O que será do homem de amanhã,

Se o amanhã se faz em teus dedos

nas tuas palavras intemporais?

O que será do futuro do nosso país...

Quando for dia de festa,

Que festa haverá sem você?

Ah! Olha o teu nome nesse papel...

O frio azul da caneta...

Ainda não interditaram o coração dos homens

E um verso desajeitado pula o cordão do isolamento,

Gritando por você.

Em algum lugar desta galáxia estamos juntos!

Não há distância entre as praças e as estrelas.

Os alicerces dos edifícios sabem

Que estamos juntos.

Se me escutas do teu exílio,

Saibas:

Que há um tempo estamos nas ruas,

Mas nossas vozes têm eco na litosfera.

Nas estações ferroviárias,

Os operários esperam tua volta.

Eles não sabem, mas esperamos.

Teu piano mudo te espera,

e a astronomia dos meus versos

Sabe que estamos juntos.

Enquanto não nos amordaçam,

Saibas que te esperamos.

Aterrizando

Chegamos e saímos de São Paulo com a sensação de estarmos vivendo o que chamamos, ainda em 1991, no início do Movimento Escambo, "o impossível realizável". Naquela época perguntávamo-nos como praticar e viver arte na geografia da sede e da fome, sem recurso algum, sem política pública de cultura, onde as necessidades básicas da população sequer estavam sendo atendidas minimamente? E, claro, para a grande maioria teatro, por exemplo, era um item totalmente desconhecido da sexta básica. Imagine, como fazer teatro sem público nem teatro? Ou melhor, como introduzir um novo item no cardápio cultural do cotidiano de um povo sem empurrá-lo goela abaixo, quis dizer: cérebro adentro? Quando começamos a compartilhar essas e outras interrogações com a população, ouvindo também suas queixas, sonhos e inquietações e, na medida em que íamos conversando, tentando construir saídas e dar respostas aos problemas juntos - cada um a seu modo embora sempre refletindo e repensado cada ato praticado na rua ou no roçado, na escola ou nos bares, na feira livre ou no hospital, durante a estiagem ou no ano bom de inverno – entendemos que como artistas tínhamos uma missão importante a cumprir. Contudo, percebemos que o papel e o sentido da nossa arte também era uma construção coletiva. Ou seja, ela não deveria partir ou ter sentido apenas para os artistas, mas para o lugar aonde ela vai ou para a sociedade a que se destina ou se origina. Ali nos demos conta, artistas e população, da cultura, do teatro, da poesia como uma necessidade tão básica quanto um cantinho para dormir, o feijão e o arroz, a carne e o sal, o café e o açúcar, o terreno para plantar e a água para beber, criar um bicho, gerir e sustentar a vida. A questão era como começar um novo cultivo de forma sustentada, sem tirar o foco das antigas culturas. À luz de tal percepção coletiva em que a arte aparece como fonte, elemento básico gerador de energia e processos vitais, logo descobrimos saídas sui generis para situações aparentemente insolúveis. Não havendo equipamentos culturais de que necessitávamos como um teatro, o que fizemos? Em uma roda de debate com as crianças e adolescentes com quem trabalhávamos, chegamos à conclusão de que se decidimos fazer teatro em um lugar onde não existia teatro, deveríamos sair em busca dele. Dividimos nosso tempo de oficina entre o fazer e o caçar teatros pela cidade e entornos. Entorno em Janduís significa caatinga pura, com suas belezas e desafios. No primeiro cortejo pela cidade mapeamos três espaços: a praça central, a pedra de seu Liu Liu, o pátio das roladeiras (Largo do Bastim) e o pátio do Vaporzão, no bairro da Floresta.[5]Em seguida partimos para o caminho do mato. Nestas viagens de pesquisas aproveitávamos para ensaiar, discutir a vida e debater a fome, a seca, as utopias de cada um e as perspectivas de mudança da realidade. Comportávamo-nos como se estivéssemos fora do lugar. E de fato estávamos, mas o exercício era mais delicado e de muita profundeza. Uma autorreflexão, incluindo o mundo – o estar nele e a possibilidade de ser com ele e mudá-lo quando preciso. Não sabemos se era isso. Algo assim. Surpreendentemente sem saber estávamos sendo freireanos. Na verdade, os teatros de pedra eram nosso lugar de encontro de nós com nós mesmos, de mergulhar no universo dos porquês, de plantar e cultivar boas perguntas, eram nossos canteiros de indagações sobre nossa condição de humanos naquele estágio da vida. E as respostas? Bom, as respostas poderiam vir hoje, amanhã ou virem ao longo da nossa história ou nunca. Há perguntas que não precisam de respostas. São as "perguntas-mãe" que se alimentam de outras perguntas até o infinito. Felizmente muitas deram as caras imediatamente, outras devem estar por aí sendo ruminadas. Uma coisa era certa: ninguém mais tinha desculpas para alegar que não cultivava teatro por falta de teatro. Foram momentos de prazer, sofrimento e construção de importantes alicerces para os projetos de vida daqueles (as) meninos (as), hoje pais e mães de família e, em certa medida, gestores da cidade. Em curto espaço de tempo foi possível mapear entre oito e dez teatros de pedra, cada um mais lindo e deslumbrante que outro. Os mais famosos e por nós visitados localizam-se no complexo de teatros naturais de pedra da fazendo Boa Vista (ver fotos: wwwcenopoesiadobrasil.blogspot.com). Com os teatros de pedra, as praças, ruas e sombras de árvores sertão adentro viria, dois anos depois, em 1991, a ser inaugurada uma outra etapa dessa história com a deflagração do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Mas requereria demasiado tempo, deixemos para outro dia.

Sim, o público? Ora, o público foi garantido desde quando começamos a pensar a vida e seus desafios; a descobrirmos juntos o porquê da arte em meio a tanta aridez. Seria como se fosse uma chuva especial de umedecer corações de pedra, de lavar a alma dos viventes para o florescer de viçosa força, anunciando a colheita de conquistas e transformações que estariam por vir? A fome e a sede em Janduís, mais do que um problema comum – fomentadora da cultura de dependência promovida pela indústria da seca - passou a ser um tema gerador de posturas críticas frente à realidade e aos contextos desfavoráveis associadas à busca de superação:

"A fome, indústria cega e daninha, há de ser[6]

o instrumento maior de transformação, tinta e pincel,

a reflexão, o painel sobre a eterna falta.

Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda.

A inteligência carcomida pela força da moeda

será o túmulo dos canibais de consciência.

A estiagem haverá ser o nosso eterno objeto de estudo

e a resistência nosso princípio nossa viagem." '

E a arte cada vez mais se tornava ferramenta de problematização da realidade, das coisas da vida e do lugar. Neste contexto árido, extremamente injusto e violento, nasceu o Escambo. Talvez por esta razão se caracterize como um movimento solidário e de resistência cultural.

Por isso, agora pensávamos o tempo todo como seria refletir sobre nossas artesanias numa perspectiva popular na maior metrópole do país? Estreando e abrindo a IV Mostra Lino Rojas com a peça "Cabeça de Papelão" à sombra do prédio onde se deu a Semana de Arte Moderna? Uma cidade mergulhada na pós-modernidade onde a indústria cultural, sofisticada com o tempo e enriquecida, devora a criatividade popular para transfigurá-la e reproduzi-la em forma de mercadoria globalizada, enfraquecendo-a ou apodrecendo de vez nossas raízes, destituindo-as de força e sentido. E em seu lugar fazendo nascer a cultura da repetição, da produção em série ou da caricaturização de nossos sotaques mais genuínos. Como pensar-fazer coletiva e solidariamente arte popular numa cidade descentrada do humano ou centrada na segmentação (para não dizer segregação) social, cultural e econômica; na fragmentação de suas potências e possibilidades inteiras ou em seu conjunto? Como falar de movimento onde é difícil se mover? Onde, apesar do imenso arsenal de tecnologias de comunicação e informação, não é fácil se comunicar, se fazer entender? Será que daria para fazer um paralelo entre a máxima que diz que o excesso de luz impede a visão e esta: o excesso de possibilidades de comunicação e informação acaba nos levando a não comunicação ao não entendimento do outro? Em Janduís a falta de quase tudo era o excesso ou poderíamos encontrá-la na própria luz solar. Dito de outra maneira: "O nordestino sucumbe ao excesso de energia solar. O excesso de luz ofusca o brilho do homem e esconde sua alma, sua potência de ser."[7] Diante de tantas ponderações que arte caberia em contextos como o de São Paulo? O teatro popular ainda é possível em lugares assim? Qual o alcance real do eco de nossas vozes, de nossos coros? Quem poderia se interessar em nos ouvir/ver? Por que o fariam ou fazem os que nos assistem quando estamos nas ruas? Que sentido fazemos para este mundo e as pessoas? E da forma como tem sido ou está sendo que sentido tem para nós artistas e como o (re)significamos?

Ao desembarcar em Sampa nos pomos a pensar em que efetivamente aquele modesto movimento cultural, o Escambo Popular Livre de Rua, nascido de um ato de solidariedade a um povo que vivia em uma pequenina cidade do polígono das secas poderia servir ou contribuir com o movimento de uma grande metrópole. Por que a decisão de homenagear essa singela experiência? O que esperam, o que querem de nós?

O tempo limpou, até calor fez.

As coisas foram acontecendo e alguns sinais foram aparecendo. Não no topo dos mais altos edifícios onde pousam os helicópteros da elite "mandante" - e não "determinante"- do país. As coisas começaram a acontecer no chão diverso, trilionário e miserável; no solo da vida simples, nas ruas do centro e da periferia da cidade. Acredito, sem maiores ilusões, que quem determina o presente e o futuro de um país é seu povo e não uma pequena elite que é parte dele, porém acha que manda em tudo. Talvez essa maioria não saiba que é tão poderosa, mas sem dúvida é esse gigante quase sempre adormecido que determina o que ou não uma sociedade sempre - para melhor ou para pior, aceitando as manobras impostas por tais minorias insaciáveis ou as rechaçando e propondo outras mais avançadas. Também creio que isso não se dá com alguns iluminados dizendo o que os não letrados e desafortunados devem ou não fazer, ditando o paladar: da culinária à indumentária; da profissão à religião; da política à estética. Em alguma medida experimentamos essa lógica em algum momento da nossa história com a melhor das intenções e não funcionou. Levar cultura para o povo... bem, Paulo Freire tem muito a nos dizer sobre tal pedagogia ao criticar a educação bancária, infelizmente ainda muito em voga nas escolas de nosso país.

Sim, os primeiros sinais de que falava. Fomos recebidos por artistas-trabalhadores dos grupos que organizaram a mostra com muita simpatia e cuidado e daí não nos faltou mais aconchego e atenção. Também pudemos perceber que não éramos uma exceção, todos que chegaram mereceram o mesmo tratamento, o que além de justo demonstra coerência, respeito e cuidado com o outro, não importa quem. Depois a escolha dos locais de apresentação, fortalecendo o trabalho dos grupos e valorizando a população local e periférica, sem desprezar o centro da cidade onde nos alojamos e por onde circula muita gente que trabalha e ou vive por aquelas cercanias. Não há dúvida que as visitas às sedes do Teatro Popular União e Olho Vivo e demais grupos, somadas às intervenções nos bairros das zonas leste, sul e norte tiveram o sabor da luta e do quanto esses territórios carecem do aprofundamento e da ampliação do trabalho desses atores. No fundo, as grandes referências - no Escambo, no Escambito do Rio ou na Mostra Lino Rojas, no União e Olho Vivo, no Escambo ou no Tá na Rua-, o que compõe a história, o que vale e o que fica são as experiências das pessoas que ao se libertarem, associam-se a outras para amar, criar, libertar e reinventar o mundo.

Talvez hoje a prática cultural a que nos referimos aqui signifique uma estratégia de debate e luta política por mudanças estruturais e sociais no Brasil das mais relevantes. Diríamos mais, liberta dos vícios das facções partidárias, envoltas por crises de identidade e abandono da ética, com raras exceções. Os modelos de gestão pública e do legislativo brasileiros acabam funcionando como escolas poderosas de corrupção e injustiça que produzem o sentimento de uma falsa nação difícil de crer ou defender. Aí somos tragados e tentados por uma lógica que nos induz a juntar-se ao outro apenas quando rola interesses individuais (alguns mesquinhos, repugnantes), muito embora para manter as aparências continue se falando em nome dos representados, da coletividade, do bem do país e das grandes causas da humanidade. Vemos revelado neste comportamento que a democracia representativa cumpriu seu papel, mas está obsoleta. É possível que já tenha nascido assim.

Estamos numa encruzilhada. Cabe-nos escolher o que mais se afina com nossas utopias e práticas. Daí pensarmos que os movimentos populares no Brasil, especialmente os de teatro, de cultura e educação popular têm desafios e responsabilidades com diversos caminhos a trilhar de acordo com a singularidade de cada lugar ou região. Sem dúvida, o fato de estarmos buscando construir espaços para compartilhar nossas práticas e refletir sobre elas já diz muito. Se há problemas de relações entre grupos, concepções estéticas e diferentes práticas (por influência de cunho ideológico-partidário? (nada contra os que ainda apostam nesse tipo de organização e luta política, não importa)), de modo nenhum que tais diferenças nos impeçam de insistir, avançar e ganhar mais autonomia e capacidade de diálogo entre nós e junto às populações dos territórios onde atuamos. Pelo contrário, pode estar aí nossa maior riqueza. Esse deve ser o nosso lugar de encontro, estudo e produção do comum. Por que nos dá ao luxo de negarmos a diversidade dos saberes e das experiências de luta pela liberdade e dignidade humana? É um dever de inteligência estar sempre escutando, observando, dialogando, buscando o outro para conhecermos e nos reconhecermos em tais diferenças. Sejamos atores teatrais, sejamos atores da vida, sempre aprendendo a ser mais e humanamente melhores... Aliás, não costumamos fazer essa diferenciação. Principalmente depois que um trabalhador da arte do Bom Jardim, o Paulo Roberto, escambista da periferia de Fortaleza, onde são mortos de 15 a 20 jovens e adolescentes por semana, disse: "da arte que vivo à arte que faço." Não sei mais se teria ou a que distância estaria o limite entre vida e arte, ser humano e artista. Se a vida cotidiana não estiver inserida na arte que fazemos e esta não couber em nosso projeto de vida e de sociedade, seja quando e onde for, possivelmente estejamos carregando fardos enormes e pesados com práticas e relações de conflito entre o ser e não ser, improdutivas e insustentáveis. Quanto às questões políticas, por um lado, estas demandam estratégias muito específicas e cada estratégia inevitavelmente têm que dialogar com as contradições locais, as condições ambientais, os contextos históricos, econômicos e sócio-culturais de cada grupo em seu lugar de atuação. Por outro lado, nos é permissível até replicar e universalizar princípios, mas as estratégias são renováveis e no máximo adaptáveis. Daí a importância do diálogo como pauta permanente e do "escambo" como estratégia de viabilização dos nossos encontros, o que ora fazemos. Do encontro desprendido, motivado pela intenção e o propósito de compartilhar com o outro experiências e conhecimentos. Primeiro, para darmos a conhecer nossos modos de criar e recriar o mundo - como, porque e o que produzimos. E, segundo, para não cairmos em repetições desnecessárias e mortais para a criatividade humana, além de ficarmos mais sabidos e fortalecidos em nossas práticas e lutas.

Nos anos 60 e 70 do século passado, a luta travava-se pela liberdade, pela democracia e pelos direitos humanos negados e reprimidos. Hoje, cremos que, além disso, a luta deve ser também contra o vazio, a letargia da sociedade diante do embrutecimento das relações humanas e a inoperância do estado em relação aos problemas coletivos graves das cidades e do planeta. É bom nos situarmos em relação ao conceito de estado. De que estado estamos falando? O que liberta, acolhe e cuida de todos os cidadãos e cidadãs? Ou o Estado criminoso controlado pelo poder de capital que extermina crianças, jovens e adolescentes após iludi-los e ludibriá-los com a farsa do consumo a todo custo, criando monstros ferozes, sem se perguntar quem os criou, justificando agora que devem ser exterminados porque ameaçam a sociedade? Daquele Estado que estimula a destruição do meio ambiente e depois finge que vai recuperá-lo através de projetos e obras de fachada? Ou ainda do Estado precário que é capaz de mandar prender um camelô, proibir manifestações artísticas populares e encarcerar a alegria das ruas, mas se mostra incapaz de investir maciçamente em cultura e educação ou resolver o problema das desigualdades sociais e de questões seculares como saúde, moradia, trabalho e vida digna para a população? O Estado criminoso é aquele que tende a se apropriar das riquezas naturais e da capacidade inventiva e criadora de sua gente, transformando-as em produto interno bruto que converte o poder criativo de muitos em poder aquisitivo de poucos. Desse Estado vassalo do poder de capital não precisamos querer mais. É possível um outro Estado? Por que as riquezas naturais e as cidades que nos pertencem continuam sendo controladas (devastadas) para atender às demandas e à insaciabilidade de alguns coronéis de asfalto ou dos paraísos fiscais? Por que só criamos coragem de ocupar os espaços públicos quando nos encontramos em estado de desespero? Não seria mais adequado ocupá-los justamente quando temos o mínimo de estrutura e plena consciência da necessidade de ocupá-los com o fim de democratizá-los e fazê-los acessíveis a todos (as)? Qual o espaço específico dos artistas populares? Dependendo de nossa capacidade de perfurar as camadas espessas instituídas pelas elites dominantes, da velocidade e potência com que nos deslocamos podemos ir além do próprio solo que pisamos e do ar que respiramos, muito além do imaginável.

Neste sentido, o que fazer para mapear e combinar nossas potências e torná-las forças concretas de transformação em todos os cantos. Assim, cada espetáculo ou intervenção artística pode não significar, é verdade, uma mudança imediata em contextos de miséria e violência, não obstante representa um sopro de animação no ouvido da alma de cada ser que nos espreita; um despertar, um toque interior na sua condição de gestor de si mesmo e reinventor do mundo.

Portanto chamo atenção para a necessidade de migrarmos de uma sociedade adormecida, adoecida e "mortífila", amiga parceira da violência, reprodutora da cultura de morte, para uma outra de ação criadora/libertadora e cuidadora da vida. Transformar espaços de violência em espaços de produção vital; produto interno bruto em alimento da leveza interior e da justiça planetária onde todos possam ler, crer, criar; ser e viver com dignidade aonde for e quiser. Como dizemos em uma cantiga:

"Pase lo que pase,

pelo eco da utopia

pase lo que pase,

me hago en sueño, faço amor."[8]

Gente desculpe-nos. O que caberia na frase – "quando abrimos os olhos, vimos que estávamos diante de um baita de um escambo em plena São Paulo de Adoniran e Mário Andrade" - contamos quase uma história. Porque citamos Mário de Andrade. Somente o fato de ele encarar de frente uma viagem de 280km de Natal para Campo Grande-RN (cidade situada a 18km de Janduís) com estradas e condições muito precárias na época demonstra um amor ao que fazia unido a esforço, compromisso, vontade de se comunicar, pesquisar e conhecer o Brasil e a cultura de seu povo absolutamente admirável. Não me recordo onde lemos sobre isso e que idade ele tinha. Mas deve ter sido uma aventura e tanto. No mesmo período ele teria contribuído com mudança de visão do folclorista Câmara Cascudo, como pesquisador e intelectual, em relação à cultura popular. Não sei por que lembramos isso agora. É muito simbólico, não? Pois bem. E nós? Considerando os obstáculos naturais de um evento em um lugar de tamanhas proporções, construímos ambientes de comunicabilidade seja entre espetáculo e público, seja entre nós. Noutros casos nem tanto, talvez para manter viva a chama das contradições, dos paradoxos, confirmando mais uma vez que as regras têm suas exceções e que a vida e a arte são feitas de uma diversidade imensurável.

A IV Mostra Lino Rojas nos mostrou também que as pessoas não se comunicam, às vezes, não por falta de oportunidade ou porque as cidades são grandes ou pequenas, simples ou complexas, mas por não quererem, por escolha própria. Juan Carlos Tedesco, uma vez disse: "as pessoas se comunicam quando querem." Naquele momento achamos óbvio, mas depois vimos que não. Estávamos em Buenos Aires, um grupo de coordenadores de projetos sociais, discutindo a possibilidade de continuar a Iniciativa Comunidad Latinoamericana de Aprendizaje, envolvendo nove países da América Latina e Caribe, e seguir para além dos apoios recebidos de uma fundação americana e da UNESCO e não conseguimos. Aliás, não logramos sequer concluir a reunião que fazíamos paralelamente ao encontro oficial. Portanto, a experiência do Movimento Escambo mostra que seja em São Paulo, no Cairo, em Pequim ou no sertão de Janduís, quando queremos, fazemos acontecer. Quando não, mesmo dispondo dos recursos e da estrutura adequada nada acontece. Para tanto deve haver desprendimento, consciência da nossa incompletude e necessidade do outro, vontade política, desejo de se comunicar, escambar. Conhecer novas formas de fazer e pensar teatro, caminhar e ver por dentro a vibração das estruturas dos grupos de São Paulo, suas estratégias de luta e organização, sentir o impulso de suas forças e avanços em territórios ocupados, no âmago da gente e das expressões simbólicas da cultura nordestina foi demais.

Aterrizando

O que produzimos e disseminamos no mundo, mantidas as singularidades e modos de fazer diferenciados, guardam muitas semelhanças. Daí nossa arte trilhar pelo caminho do estudo e da compreensão do outro e não pela arrogância e intolerância.

Não temos dúvida de que a arte é um caminho inseguro e perigoso para nos movermos e por isso fascinante e necessária. Como diria Guimarães Rosa, viver é perigoso. E se arte é arte em qualquer canto, o poder de criar e expressar o que sentimos e pensamos é de todos os humanos. O perigo de viver por sua vez é de todos os vivos. A responsabilidade de nosso fazer artístico mais que humanitária é vital, local e cósmica.

Quando de volta, desembarcamos em Fortaleza, observamos que esses voos servem para alguma coisa: sentirmos prazeres diferentes dos do chão que pisamos. Os prazeres da flutuação na atmosfera da experiência do outro. De voo em voo nos transportamos às alturas que as tecnologias, principalmente as tecnologias leves, e o que a capacidade de respiração permite, bem como para testarmos nossa disposição para aprender e a consistência do modo de vida que adotamos no solo da rua em que moramos. Ao aterrizarmos...

CUIDADO COM CADA PASSO:

há vida por cima, do lado,

à frente,

há vida de cima a baixo.

ENQUANTO ISSO EM VÁRIAS CAPITAIS

Prefeitos tranca-ruas

Atacam de portarias e polícia

Artistas e vendedores ambulantes

MAS A VIDA SEGUE NOS DESAFIANDO

Ou os pobres mortais é que a desafiam?

É quase noite e essa gente continuará

Teimosamente vagando

Descendo a ladeira de triste memória

Tonta

Rolando para cima e para baixo

Já sem carcaça nem disposição para viver

Para cima e para baixo

Da ladeira da triste memória[9]

ao VALE DO ANHANGABAÚ

Até não sei quando

Amanhã será outro dia?

É DIFÍCIL SABER O QUE SERÁ

Mas O TÁ NA RUA e ESCAMBAR

É a expressão de uma visão de mundo

De uma escolha política

Que de UNIÕES E OLHOS VIVOS

Alimenta-se a BRAVA gente

Perfuram-se BURACOS D`ORÁCULOS

Aninham-se POMBAS URBANAS

Que produzem e disseminam asas

Trazem paz

Cuidando da criação

Do reencantamento do mundo



[1]Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. 1 – Queima Bucha 2ª edição – Mossoró-RN 2005.

[2]Encontros regionais ou locais definidos a partir dos congressos gerais do movimento também chamados "escambos".

[3]Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. 1 – Ed. Queima Bucha - 2ª ed. Mossoró-RN 2005.

[4]Terra, José. Amputação – in Avenida Brasil – POEMAS – Litteris Ed.: KROART, RIO 2002.

[5]O bairro mais pobre da cidade na época e onde residia a maioria das crianças e adolescentes que atendíamos. Hoje, o Vaporzão (prédio abandonado de uma antiga fábrica de sabão) é a sede da Fundação de Cultura de Janduís que é presidida por um jovem de um grupo da segunda geração desse movimento.

[6]Lima, Ray. Nhandupoiema. Queima Bucha – Mossoró-RN 19994.

[7]Lima, Ray Lima. Impossível realizável – in O PÃO – Ano 1 – Nº 5 – Fortaleza, 24 de Dezembro/1992.

[8]Lima, Ray. Pelo eco da utopia nosso ser se faz sentir. wwwcenopoesiadobrasil.blogspot.com

[9]A Ladeira da Memória, muito famosa, foi um dos espaços utilizados para a apresentação de espetáculos durante a IV Mostra Lino Rojas, no centro da cidade, próximo ao Vale do Anhangabaú. Lá havia muitas crianças e adolescentes em situação muito precárias e consumindo drogas como em vários pontos de São Paulo. Algo deprimente que nos tocou muito. Vê a meninada se matando tão de perto, tão depressa. Enquanto isso o prefeito, o governador, os empresários posando nas alturas, sem pisar naquele chão de sua gente abandonada. Mais triste ainda é saber que não se trata de um privilégio da maior capital do país.