Pesquisar este blog

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Buraco d`Oráculo e seu tripé de sustentação

Por Adailtom Alves Teixeira, historiador e ator do Buraco d`Oráculo 

Ao longo desses dez anos o Buraco d`Oráculo cultivou experiências, parceiros, conquistas e, principalmente, uma estética própria. Desde o princípio o grupo tem um trabalho norteado por três elementos: a rua, o popular e o cômico. A rua como espaço cênico, o popular como universo de inspiração e o cômico como elemento provocativo e reflexivo.
Esse tripé de sustentação surgiu, já, no Núcleo de Teatro de Rua, coordenado por João Carlos Andreazza, em 1998. Joca queria construir uma dramaturgia para rua por meio das atividades propostas naquela oficina, pois para ele, a magia da rua reside em trabalhar no mesmo nível de quem assiste e foi nessa magia que embarcamos. Logo depois, partimos para o aprofundamento dos conceitos desse tripé quando encontramos Ednaldo Freire – grande mestre e conhecedor do cômico e do teatro popular. Uma década se passou e a nossa dedicação e estudo sobre essa linguagem perdura até hoje.
Esses três elementos dizem muito sobre o Buraco d`Oráculo, revela nosso posicionamento político, bem como nossa maneira de fazer arte, destinada a um público distante do centro urbano de São Paulo. Desde o início, a maior parte do público do Grupo tem sido os moradores dos bairros periféricos, aqueles que residem principalmente na parte leste da cidade de São Paulo. Público composto por populares e do qual fazemos parte (eu, Edson e Lucélia viemos desse ambiente) - daí o universo de inspiração ser nosso próprio público e sua cultura.
Quanto ao espaço cênico, a rua acabou sendo um destino natural, afinal é um ambiente democrático e propício ao jogo teatral, sendo também único espaço cênico possível em boa parte das comunidades por onde passamos, porque mesmo que a cidade cresça a cada minuto, o acesso à arte por parte de quem reside na periferia nos parece cada dia mais distante. No entanto, é importante frisar que a rua sempre foi uma opção, escolhemos ir e continuar nela. Com a existência de teatros e casas de espetáculos das mais variadas formas e tamanhos, a rua consolidou-se como escolha e não como ausência de alternativa. Estamos certos de que escolher a rua como palco é uma maneira também de escolher a quem se quer apresentar; e nós sabemos muito bem disso.
Assim como a língua e a ciência, o teatro também é uma estrutura viva que acompanha a evolução do tempo. Por entendermos o teatro como uma arte de seu tempo, nos coube refletir sobre a realidade popular em nossos espetáculos - nosso trabalho faz parte deste contexto e também se movimenta a caminho de um constante aprimoramento. E como a comicidade está presente nesse universo todo o tempo, este foi outro caminho natural para o Buraco d`Oráculo, afinal “o riso enraíza-se num contexto cultural do qual é, ao mesmo tempo, um componente e um elemento revelador” (MINOIS, 2003, p. 194).
Como o Grupo é uma soma literal de prática e teoria – característica presente em nossos espetáculos e nas oficinas que ministramos, bem como em nossos projetos, exemplo disso são os núcleos que criamos durante o Circular Cohab`s –, nossos anos de estrada (digo, de rua), nos permite discutir os três elementos (a rua, o popular e o cômico) de forma mais específica, procurando detalhar como o Buraco d`Oráculo entende cada um. Estudamos, testamos e aplicamos esses elementos com base em alguns autores e profissionais que enriqueceram nossa trajetória.

A rua 
Os alicerces da história do Buraco d`Oráculo foram construídos “com” e “no” teatro de rua. Um tipo de teatro que, segundo André Carreira (2007), existe desde que surgiu a cidade, portanto, é possível deduzir que teatro de rua e cidade sempre estiveram interligados de alguma forma, muito embora ambos modificaram-se ao longo dos tempos.
É importante ressaltar que rua tem significado amplo no contexto do teatro. Uma das formas de traduzir isso é dizer que a rua é todo espaço aberto no qual pode acontecer um espetáculo teatral. Isso significa que pode ser uma rua, uma praça, um parque ou qualquer outro espaço livre. Na verdade, com a perpetuação do fenômeno das metrópoles, está ficando cada vez mais escassa a possibilidade de apresentação de um espetáculo na rua. Os carros ganharam a preferência e ocuparam o lugar do pedestre.
Em seu livro Teatro de Rua: Brasil e Argentina nos anos 1980, André Carreira afirma que “o teatro de rua abarca todos os espetáculos ao ar livre que optam por ficar fora dos teatros convencionais e utilizam espaços urbanos apropriados temporariamente para o fenômeno teatral, permeáveis ao público acidental” (2007, p. 54). Já abordei o tema em 2008, na monografia A Rua Como Palco, em que cheguei a seguinte definição: “teatro de rua é uma manifestação marginal que utiliza o corpo e o discurso no espaço aberto urbano a serviço do estético, apropriando-se ou não da paisagem urbana como cenário, de maneira a permitir a fruição a um público passante” (2008, p.17).
Marginal, é para nós uma situação essencial, algo intrínseco ao nosso posicionamento político. O termo marginal é usado porque o teatro de rua se contrapõe às artes “oficiais” e, de certa forma, ao próprio modelo social capitalista. Para entendermos isso, basta refletir a rua como um local de passagem; é um escoadouro do capital, já que por ela circulam a mercadoria e a mão-de-obra que as produz. Quando um grupo – formado por atores, músicos, dançarinos ou de qualquer outra manifestação artística – se coloca em um espaço aberto lançando novo olhar sobre ele, breca essa circulação e faz das pessoas espectadores de uma obra, ou seja, fruidores do teatro. Portanto, observando por este prisma, o teatro de rua está à margem do sistema.
Ainda que o teatro de rua venha a ser aceito, tolerado, cabe lembrar que “esta tolerância está marcada por uma atitude discriminatória que permanentemente situa este teatro no seu lugar de marginalidade, que é um lugar de enfrentamento com o padrão cultural dominante” (CARREIRA, 2007, p. 41). Pois, como já foi dito, ele rompe – ainda que por um curto período de tempo – com a lógica do sistema capitalista, já que não há cobrança de ingressos, interfere no trânsito das pessoas criando uma nova percepção daquela geografia e transformando os passantes em espectadores. Certas vezes, parte desse público, que também é marginal, ganha um papel: o papel de coadjuvantes, ao participarem, consciente ou inconscientemente, em alguns de nossos espetáculos.
Ainda falando de rompimento, André Carreira nos chama a atenção para um duplo caráter do espectador na rua, ele é espectador e “agente desordenador do espaço social” (2007, p. 64-5), isto é, o espaço também perde seu sentido primário de circulação, já que o público, ao colocar-se em volta de um grupo teatral, interrompe essa circulação, prejudicando o livre trânsito. Talvez por isso haja, muitas das vezes, enfrentamento do poder público com os grupos de teatro de rua, já que são eles (poder público) que zelam pelo bem estar dos espaços e entendem que esse rompimento, essa desorganização não deve ocorrer.
Por tudo isso, o teatro feito na rua se contrapõe ao realizado no espaço fechado, isto é, existe uma evidente oposição entre o palco à italiana e o teatro de rua ou entre o espaço fechado e o aberto. Para Amir Haddad “espetáculos e arquitetura estão intimamente ligados”, assim, esses teatros arquitetônicos foram construídos de acordo com os valores e as necessidades de quem os construíram, dessa forma o que se faz nesse teatro, bem como os atores, está “de acordo com estes interesses, valores ou necessidades” (2005, p. 61). Assim, o palco à italiana, por ter sido construído pela burguesia, estaria de acordo com os valores burgueses, já o espaço aberto, por não ter o impedimento arquitetônico, pode ser um teatro de todos.
Sem dúvida o teatro de rua é democrático, já que não há restrição, basta que o público esteja no local em que o grupo se coloca, não sendo preso por qualquer obstáculo, podendo inclusive sair a hora que bem entender, já que a única coisa que o segura é o interesse que o espetáculo venha despertar. O Buraco d`Oráculo pensou em seus destinos e fez suas escolhas. Levamos nossos espetáculos para o centro de São de Paulo, entramos na Estação Brás, desembarcamos na Praça do Forró e circulamos pelas Cohab`s (Conjuntos Habitacionais). Em cada um destes ambientes, trabalhamos o que Haddad resume da seguinte forma: “Pensar o espaço, o local dos espetáculos, e associado a isto pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador é também pensar o mundo” (2005, p. 62).
É importante ressaltar que o Buraco d`Oráculo não se coloca contra o palco à italiana, pois entende que teatro é uma opção e todos tem o direito de fazer o teatro que quiser e onde quiser. Queremos deixar claro, no entanto, a oposição histórica presente entre esses dois espaços. Com a percepção dessa oposição é possível discutir a questão do acesso, seria importante que a população tivesse acesso ao teatro em suas várias formas e nos mais diversos espaços, mas enquanto isso não é uma realidade o teatro de rua pode facilitar o acesso aos cidadãos que estão distantes dos equipamentos culturais, distantes geograficamente, economicamente e culturalmente.
Esta uma década de teatro de rua do Buraco d`Oráculo permitiu o acesso a milhares de pessoas que nunca havia tido contato com essa arte. Somente no Circular Cohab`s, projeto que recebeu toda nossa dedicação de 2005 a 2007, atingimos um público de mais de trinta mil pessoas, e em todas as comunidades, centenas de pessoas jamais tinham assistido a uma peça teatral. Lembro que, no início, nossa chegada causou estranheza. No primeiro fim de semana nosso público era formado por poucas pessoas; no segundo, àqueles da semana anterior apareciam acompanhados por outros e dias depois passamos a ser assistidos por centenas de pessoas. Eis mais um dos aspectos a ser enaltecido no teatro de rua: a capacidade de se deslocar por toda a cidade sem tornar precário o espetáculo, sem prejudicar-se técnica ou esteticamente.
Outro aspecto do teatro de rua é que atores e espectadores estão no mesmo nível, um não está acima do outro, tornando a rua, através do espetáculo, uma ágora, isto é, um espaço de debate e reflexão. Os atores jogam para o público, estes por sua vez também jogam para os atores, daí a grande interferência nos espetáculos em espaços abertos. Dependendo da proposta, é justamente esse jogo que alimenta o espetáculo. Para o Buraco d`Oráculo a interferência sempre foi bem-vinda, já que muitos de seus espetáculos são provocativos, necessitando, portanto desse jogo.
O debate de temas de nosso cotidiano esteve sempre presente nos textos que escolhemos. Na rua, podemos tocar nas relações humanas e na forma como elas acontecem. Quando se apresenta o espetáculo, debatendo, discutindo um problema, este se coletiviza, torna-se social. O teatro cumpre aí uma função importante para a sociedade, já que deve mobilizar os assistentes, (co)movê-los (mover junto) em torno de seus problemas, bem como de suas angústias.
Por tudo isso o Buraco d`Oráculo optou pelo teatro de rua, buscando compreender como essa arte pode contribuir com a discussão do homem em seu espaço e seu tempo e, assim, contribuir com a sociedade no qual estamos inseridos. Desde o princípio já foram oito espetáculos levados para os espaços abertos, todos tendo como centro o homem urbano comum.

O popular 
Muito embora tenhamos consciência de que a cultura popular esteja “longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas” (ARANTES, 1995, p. 7), “o popular” é parte de nossa sustentação enquanto estética. Ao buscarmos sua definição, desvendemos que o adjetivo popular pode “deslizar para um outro que encobre efetivamente a contradição e a luta: o adjetivo ‘nacional’, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida, consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade e que permita a esta última ver-se imaginariamente unificada” (CHAUÍ, 2003, p. 43).

Pudemos entender melhor as facetas da cultura popular com a orientação de Ednaldo Freire. Muitas das vezes cultura popular é também confundida com folclore, forma que alguns cientistas encontraram para aprisionar os saberes populares, mas o Grupo tem consciência de que a cultura é dinâmica e que são plurais, merecendo saber sempre qual o contexto, o tempo, o lugar e qual grupo social ao qual estamos nos referindo. Pois “se considerarmos a cultura como ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essas relações, a própria noção de cultura é avessa à unificação” (CHAUÍ, 2003, p. 45).
Assim sendo, “fazer teatro, música, poesia ou qualquer outra modalidade de arte é construir com cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com suas roupagens identificadoras particulares, e concretas, o que é mais abstrato e geral num grupo humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação na produção da sociedade” (ARANTES, 1995, p. 78). Nesse sentido é importante questionar: se cultura popular vem do povo, de qual povo o Buraco d`Oráculo tira suas referências?

Procissão de santo, zabumba, literatura de cordel, quadrilha e culinária a base de milho, mandioca, coco ou azeite. Tudo isso nos é familiar. Os integrantes do Buraco d`Oráculo são nordestinos ou filhos de nordestinos. Não há como negar que a constituição da identidade de cada um de nós perpassa a cultura nordestina. Somado a isso, somos todos da periferia de São Paulo, assim como grande parte de nosso público, e temos aí uma cultura urbana, por tratar-se de uma cidade, aliás, uma megacidade. Esses são, portanto, os elementos constitutivos da identidade do Grupo e de seu público principal. De certa forma, esses elementos (outras culturas) se fundem muitas das vezes – trata-se de uma cultura transformada ou transposta de uma área rural ou de outra região do País para um grande centro urbano (São Paulo), uma cidade global, ganhando assim novas conotações e novos aportes.
No fundo, a definição é muito mais simples e está longe do academicismo: o trabalho do Buraco d`Oráculo é fortemente influenciado pela cultura de seus membros, bem como pela região que habitam. Nossa arte busca dialogar com a realidade na qual estamos inseridos. O popular aí, nada mais é, do que esta realidade cultural. Como nossa linguagem é calcada sobre um tripé, essa questão do popular complementa o que buscamos e encontramos na rua: o debate sobre o homem urbano.
Em nossa vivência profissional, o contraponto da cultura popular pode ser exemplificado com alguns de nossos trabalhos. O primeiro espetáculo A Guerra Santa, discutia a manipulação da fé por líderes religiosos na relação com as pessoas mais simples e de como a fé vinha sendo transformada em mercadoria. Já em Amor de Donzela, Olho Nela! a discussão era sobre a esperteza do mais pobre, muita das vezes única arma que tem para defender-se contra o sistema. Quem Pensa Que Muito Engana Acaba Sendo Enganado! trouxe para a cena dois nordestinos, recém chegados a uma grande cidade, que buscavam sobreviver na mesma. O Cuscuz Fedegoso, por sua vez, repete o tema da sobrevivência e de como os populares, as pessoas simples, mesmo na informalidade, sobrevivem na cidade. Este último tinha uma forma muito especial de explicitar as nuances daqueles que são denominados populares, pois o espetáculo mostrava uma raizeira, uma vendedora ambulante e um pedinte, todos repreendidos pelo Estado, presente na figura do policial autoritário. Percebemos os dois universos culturais, seja o nordestino, seja a periferia paulistana. Na maioria das vezes esses dois universos estão juntos, como nos dois últimos espetáculos citados. Sempre apresentados de forma cômica e crítica, pois como adverte Marilena Chauí, a ideologia dominante perpassa todas as classes, por isso “o autoritarismo se encontra presente tanto nas manifestações culturais dominantes quanto nas dominadas” (2003, p. 62). Todas as personagens tem defeitos, daí o universo da farsa, já que uma de suas características é todos querendo enganar a todos o tempo todo. Refletir sobre essa realidade, isto é, sobre a enganação, é discuti-la criticamente.
Portanto, popular para o Buraco d`Oráculo, diz respeito a formação cultural de seus integrantes e da população na qual o Grupo está inserido, bem como suas manifestações, sua forma de se organizar, seus problemas e suas maneiras de lidarem com estes problemas. Por fim, de forma mais antropológica, se “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado” (LARAIA, 2005, p. 45), o Buraco d`Oráculo, mesmo sendo um coletivo não foge à regra, ainda que questione e discuta também essa regra, ou seja, nosso teatro é resultado do meio cultural no qual estamos inseridos.

O cômico
Assim que saimos do local onde nos preparamos e aparecemos para o público, sentimos as reações. De alguns despertamos um sentimento de estranheza, de outros arrancamos risos e de outros ainda as duas coisas juntas! Com isso chegamos ao terceiro elemento presente em todos os trabalhos do Buraco d`Oráculo - o cômico, acompanhado de elementos farsescos e grotescos. Temos muito a falar sobre o processo de produção do cômico, mesmo que este, embora presente em todas as produções humanas e, principalmente nos grandes artistas, sempre foi considerado um gênero menor, a começar por Aristóteles em sua Poética.
Aprendemos que o cômico está presente no gênero dramático, mas é também, um fenômeno antropológico, como bem nos mostra Patrice Pavis, por isso “não se limita ao gênero da comédia”, já “que pode ser apreendido por vários ângulos e em diversos campos” (1999, p. 58). Poderíamos até nos aprofundar mais, porém o que nos interessa aqui é como se dá a produção do cômico no gênero dramático e sabermos a que serve.
A maneira de se produzir um efeito cômico é através da contradição, “o efeito cômico surge de algo que se espera intensamente e que se resume em um exagero” (VÁZQUEZ, 1999, p. 265), por isso desvaloriza o objeto ou pessoa envolvida na situação, por isso o cômico funciona criticamente. “Enquanto que a ordem estabelecida se ampara na seriedade e solenidade para se legitimar, o riso mina seus alicerces” (VÁZQUEZ, 1999, p. 272).
Rir é próprio do homem. Como bem disse Aristóteles, o homem é um único animal que ri; complementado por Millôr Fernandes, ao afirmar que é rindo que mostra o animal que é. O fato é que o riso subverte, “por isso nas sociedades fechadas, autoritárias, a cesura se irrita com a comicidade que o suscita” (VÁZQUEZ, 1999, p. 272). Por isso Bergson afirmou que o riso destina-se “à inteligência pura” (1983, p. 12). Sabe-se que o riso é crítico, pois exige de quem ri distanciamento da situação da qual se ri, não há, portanto, envolvimento emocional.
Em sua crueldade crítica, o riso precisa de eco, isto é, o efeito cômico parece ter mais força em grupo. Embora o efeito cômico possa ocorrer tanto na vida como na arte, o que nos interessa é a segunda. Na arte o cômico é “sempre criação ou invenção, os personagens, atos ou situações criados têm sempre a ver com a comicidade na vida real como vertente essencial da existência humana. (...) O cômico na arte e na literatura tolera a deformação, a ruptura com o real até os extremos da sátira ou da caricatura, mas sem que o real deixe de estar presente” VÁZQUEZ, 1999, p. 275).
Essa ligação com a vida e com o real é fundamental, pois se o riso é crítico, nós rimos de algo que conhecemos, jamais rimos do desconhecido. Ou seja, a criação teatral precisa ter vínculos com o real, com a realidade que representa, ainda que caricaturescamente. Buscamos isso constantemente, em todos os nossos espetáculos. Para Pavis, “no teatro, a situação cômica advém de um obstáculo dramatúrgico contra o qual se chocam as personagens, conscientemente ou não” (1999, p. 59) O riso se produz justamente pela condição distanciada de quem observa, esse distanciamento o coloca em uma posição superior ao que e a quem vê, por isso quando o que é esperado não acontece, provoca a surpresa e o riso, ou seja, o real é revelado e o irreal ou o prometido, desmascarado.
Dentre os gêneros dramáticos a farsa oferece inúmeras possibilidades de utilização do cômico. Ainda que inicialmente esta não tenha sido uma escolha consciente, já que suas propostas de espetáculos partem da observação do mundo a sua volta e de temas que discutam o observado, foi justamente este gênero que o Buraco d`Oráculo mais trabalhou em seus dez anos. Consequentemente, todos os nossos espetáculos são farsescos.
Para Margot Berthold, as origens da farsa remontam as festas dos bufões e as recitações dos menestréis na Idade Média e este gênero teria entrado para história do teatro com A Farsa do Advogado Pathelin, texto adaptado e montado pelo Buraco d`Oráculo em 2006, mas que teve sua primeira apresentação em 1465. Ainda segundo Berthold, “a crítica social e a sátira encontraram uma benvinda (sic) válvula na farsa”, que “vivia da astúcia verbal, não importando se seu palco fosse montado numa sala pública, num auditório da universidade, numa casa particular ou no palácio arcebispal” (2001, p. 256). Para Georges Minois, no seu livro História do Riso e do Escárnio, o riso farsesco é a maneira que os indivíduos encontram para estravasarem seus medos e angústias, “é o único meio de o indivíduo ter uma desforra sobre as coletividades nas quais ele é integrado à força e que o oprimem e protegem, ao mesmo tempo: paróquia, religião, família, senhoria, corporação, bairro...” (2003, p. 204).
Embora a farsa seja muito teatral, exigindo bastante do trabalho corporal do ator, segundo Patrice Pavis, ela “sempre é definida como forma primitiva e grosseira que não poderia elevar-se ao nível da comédia” (1999, p. 164). Não concordamos com a hierarquia colocada pelo autor, de qualquer forma, isso faz com que adentremos um outro aspecto trabalhado pelo Buraco d`Oráculo, sua estética grotesca, esta também desvalorizada frente à outras categorias estéticas.
O grotesco é, via de regra, pouco conhecido e pouco debatido. Os estudos mais conhecidos são os de Kayser (O Grotesco), Bakhtin (A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais) e Muniz Sodré (A Comunicação do Grotesco; O Império do Grotesco). Para este último, partindo de Aristóteles, ele define categoria estética como uma organização dos elementos internos de uma obra, constituída, por sua vez, de quatro pontos: equilíbrio de forças; reação afetiva (para o grotesco a reação do espectador seria de “espanto e riso”); valor estético (diferenciação valorativa da obra) e; trânsito estético (uma categoria não pode está presente somente em um tipo de arte; o grotesco está presente em todas as produções artísticas do homem) (2002).
Mas o que vem a ser grotesco? Para Patrice Pavis “é aquilo que é cômico por um efeito caricatural burlesco e estranho” (1999, p. 188). Já para Muniz Sodré, é “um tipo de criação que às vezes se confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e que quase sempre nos faz rir” (2002, p. 19). Por isso mesmo, “a categoria do grotesco nunca contou com a aprovação da estética classicista que fazia girar o universo estético em torno do belo” (VÁZQUEZ, 1999, p. 285).
O grotesco está muito presente nas manifestações populares, por isso Bakhtin estudou o popular da Idade Média e do Renascimento através da obra de Rabelais, pois, para ele, o popular é mal compreendido e pouco estudado. Em sua investida pelo conhecimento da arte grotesca, Bakhtin busca conclusões sobre o mundo rabelaisiano ou da cultura popular, que é um mundo carnavalizado, uma espécie de segunda vida do povo. “É a sua vida festiva.” Não se assiste ao carnaval, mas se vive e essa vida se constrói “como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’.” Por isso “o riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo.” É também universal, já que atinge todos e, por fim, é “ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (1987, p. 10).
É interessante como neste mundo carnavalizado os populares criavam um vocabulário próprio, com grosserias e palavrões, era uma forma de eliminar “diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e eliminando regras e tabus vigentes na vida cotidiana.”[1] O que impera é a vida material e corporal, por isso o grotesco é carregado do baixo corporal e do hiperbólico. “O seu traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1987, p. 17).

Vejam que o cômico, terceiro elemento de nosso tripé, é constituído da farsa e do grotesco, que partem do real. Afinal de contas, só se rir do que se conhece, por isso a platéia é crítica, pois estão distanciados, não envolvidos emocionalmente com o que vêem e criticam, daí a função social do riso. Por sua vez o grotesco serve justamente para rebaixar aquilo que é elevado ou que se julga elevado, o grotesco faz descer à terra, provocando um riso ambivalente, isto é, destrói o antigo para que nasça o novo regenerado.

Diante dessa grande radiografia, é possível perceber que fizemos escolhas difíceis. Optamos pela forma teatral marginal (teatro de rua), pelo trabalho com o cômico (que ao longo dos tempos tem sido considerado um gênero menor), pela produção do riso (de acordo com o real e o conhecido) e pela estética grotesca (pouco estudada e pouco aceita diante do império do belo). O gênero teatral trabalhado nesses dez anos é marginal, trata-se da farsa. Não podemos afirmar que isso é definitivo, mas até o momento, todos os nossos espetáculos foram farsescos.
E a cara de nosso público? Estes nossos grandes incentivadores e prestigiadores têm sido, em sua enorme maioria, àqueles que estão à margem, à margem dos bens culturais, à margem das políticas públicas, são os moradores da periferia leste da cidade de São Paulo. As caracteríticas daqueles que nos assistem concretizam o caráter marginal de nosso jeito de fazer teatro. Toda essa marginalidade nos enche de orgulho, porque é muito coerente com a nossa história, um grupo que formou-se também à margem dos padrões (escolas e universidades) e corresponde com os nossos valores, com o que acreditamos. Toda essa marginalidade foi justamente o que nos sustentou ao longo desses dez anos de existência e nos fará ir além.
Somos três atores, três diferentes indivíduos, que deram ao Buraco d`Oráculo uma única impressão digital, uma marca desenhada sobre o tripé formado pela rua, pelo popular e pelo cômico. Esta é nossa identidade estética.

Bibliografia 
ALONSO, Aristides. “O Grotesco: transformação e estranhamento.” In: Comum. Rio de Janeiro: v.6, nº 16, 2001. Disponível em: www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum16/pdf/Ogrotesco.pdf, consultado em: 01/10/08.
ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. 14ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Primeiros Passos, 36)
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad.: Nathanael C. Caixeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad.: Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARREIRA, André. Teatro de Rua (Brasil e Argentina nos anos 1980): uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo & Rosthschild Editores, 2007.
CHAUÍ, Marilena Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 10ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
HADDAD, Amir. “Espaço” In: TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (org.). Teatro de Rua: Olhares e perspecitivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad.: Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad.: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite a Estética. Trad.: Gilson Baptista Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
TEIXEIRA, Adailtom Alves. A Rua Como Palco: o teatro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. São Paulo, 2008. 71 f. Monografia do curso de História da UNICSUL.

Notas
[1] ALONSO, Aristides. “O Grotesco: transformação e estranhamento.” In: Comum. Rio de Janeiro: v.6, nº 16, 2001, p. 66. Disponível em: www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum16/pdf/Ogrotesco.pdf, consultado em: 01/10/08.

domingo, 19 de julho de 2009

O espaço cênico do teatro de rua


Por Adailtom Alves Teixeira

Foto: Augusto Paiva

O teatro de rua ocupa as áreas abertas, como praças, ruas, parques, entre outros, para fazer desses lugares seu espaço cênico. No entanto, esses lugares são dotados de significados, inscrevem parte da história da cidade, portanto, devem ser pensados em toda a sua amplitude para que possam ser bem utilizados.
Se cada época teve o seu espaço de representação, devemos nos questionar acerca de qual seria o espaço de nosso século? Amir Haddad (2005) afirma que arquitetura e espetáculos sempre estiveram ideologicamente ligados e que nos últimos trezentos anos essa ligação foi determinada pela classe dominante, através da cena à italiana. Não obstante, a rua não é o espaço da classe dominante, que a tem apenas como escoadouro do capital, sendo um local perigoso, que deve ser evitado.
A cidade é portadora de duas dimensões fundamentais: a de mercado e a de centro de decisões políticas, que não podem ser esquecidos ao criarmos a dramaturgia e o espaço cênico de qualquer espetáculo. Se pensarmos na cidade de São Paulo, constataremos que as possibilidades de ocupação com o teatro são muitas, isso por conta de suas próprias características. Aldaíza Sposati adverte que São Paulo é uma cidade em pedaços, fragmentada, dividida (2001), já Heitor Frúgoli Júnior se pergunta se ainda temos uma cidade ou apenas “(...) esferas sociais separadas, que já teriam perdido seus elos e mesmo a capacidade de reatá-los” (1995: p. 106). Ainda que esteja em pedaços ou mesmo que não seja mais cidade, tudo que há nela está carregado de significados e recebem “(...) influências econômicas (industrial e de consumo), comunicativas, associativas e culturais.” (FERRARA, 1993: p. 154) Por tudo isso, precisamos pensar a cidade e como a ocuparemos com o nosso teatro, como criaremos o espaço cênico e como daremos novo significado ao ambiente onde ocorre o espetáculo.
Radicalizar a inserção teatral na cidade é fundamental. Já nos anos 1970, o Living Theatre realizava espetáculos dessa ordem, como a performance itinerante Seis Atos Públicos para transformar a Violência em Concórdia, utilizando seis pontos da cidade, cada um representando, em termos simbólicos, o que interessava dentro da história apresentada. Como por exemplo, a adoração de um touro de ouro em frente a uma instituição financeira. Uma crítica mordaz ao capitalismo. Ou O Legado de Caim, um espetáculo composto de “(...) cento e cinqüenta peças separadas que tratam sobre as diferentes funções da cidade” (MIRALLES, 1979: p. 97). Assim, podemos perceber que a cidade em seus fragmentos, pode ser mais do que o espaço da representação, pode ser cenário para a história que se desenrola e, mesmo, a própria dramaturgia.
O espaço cênico nos é dado pelo próprio espetáculo e é “(...) concretamente perceptível pelo público na, ou nas cenas, ou ainda [n]os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis.” (PAVIS, 1999: p. 133), sendo a primeira instância de valor do espetáculo. Por isso mesmo, devemos refletir sobre os fragmentos da cidade que um espetáculo de rua ocupa, já que os mesmos têm reflexo direto na encenação.
André Carreira, com o seu teatro de invasão, propõe que a cidade pode ser uma dramaturgia pulsante, isto é, a cidade e os espaços escolhidos podem direcionar a história. Dessa maneira, precisamos repensar a nossa concepção de espetáculo. Precisamos ver com novos olhos, já que o texto perde o seu papel principal, a visão textocêntrica cai por terra. Para tanto é preciso entender a cidade como um tecido com suas “dinâmicas sociais e culturais”, seus fluxos e contrafluxos e sua textura política e inseri-los no contexto do espetáculo. O autor propõe o uso espetacular da rua, incorporando na cena os fluxos da rua ou subvertendo-os, “(...) fabricando rupturas dos ritmos cotidianos” (2008: p. 69). Mas “(...) se a cidade é um texto dramático, uma encenação invasora será sempre percebida como uma releitura da cidade” (CARREIRA, 2008: p. 71).
Já Ana Carneiro, co-fundadora do Tá Na Rua, afirma que as pesquisas encaminharam o grupo para a concepção cênica em roda. A roda “(...) transforma os atores que nela atuam em fontes irradiadoras que se propagam infinitamente” (2005: p. 123). Além disso, prioriza a horizontalidade na relação entre ator e espectador, sendo, portanto, um espaço privilegiado para a comunhão. No grupo Tá na Rua a utilização do apresentador-narrador faz com que não haja texto escrito, e sim “(...) uma escrita cênica, que se faz na hora, em contato direto com a realidade” (2005: p. 131).
Os dois autores referem-se aos riscos de ocupar a cidade por essas duas vias, exigindo uma nova concepção de espetáculo, diferente das formas tradicionais com um texto ou uma história tendo inicio, meio e fim. Para Carreira o espetáculo dentro de suas concepções estaria mais próximo da linguagem cinematográfica; já Carneiro, entende que o jogo com os espectadores, aliado aos fatos narrados, pode ser deflagrador de uma reflexão dos fatos e da “realidade que circunscreve” os mesmos. Ao mesmo tempo, as duas formas de ocupação da rua exigem um ator bem preparado para lidar com os riscos e as dificuldades inerentes as abordagens, um ator com uma grande capacidade de adaptabilidade.
Por fim, sabemos que há inúmeras outras possibilidades de ocupação da rua para além das duas formas abordadas, para tanto, faz-se necessário pensar o espaço cênico, para que a própria cidade seja ressignificada. Pois “(...) pensar o espaço, o local dos espetáculos, e associados a isto pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador é também pensar o mundo.” (HADDAD, 2005: 62)

Referências bibliográficas
CARDOSO, Ricardo José Brügger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
CARNEIRO, Ana. A rua enquanto espaço privilegiado da relação público/ator: opapel do apresentador-narrador (Tá na Rua – 1981)” In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (Orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005.
CARREIRA, André. “Teatro de Invasão: Redefinindo a ordem da cidade” In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Op. cit.
_____. Teatro de rua: uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007.
FERRARA, Lucrécia D`Alessio. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: Edusp, 1993.
FRÚGOLI Junior, Heitor. São Paulo: espaços públicos e interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995.
HADDAD, Amir. Espaço. In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (Orgs.). Op.cit.
MIRALLES, Alberto. Novos rumos do teatro. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SPOSATI, Aldaíza. Cidade em pedaços. São Paulo: Brasiliense, 2001.
TEIXEIRA, Adailton Alves. A rua como palco: o teatro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. Monografia: História, Universidade Cruzeiro do Sul, 2008.

Publicado originalmente na Revista Arte e Resistência na Rua, Ano 1, nº 01, abril de 2009, p. 06 e 07.

domingo, 12 de julho de 2009

APROXIMAÇÃO E DISTANCIAMENTO (o interesse de Brecht por Stanislavski)

Por Iná Camargo Costa*

História 
Embora a grande contribuição de Stanislavski para o trabalho do ator tenha ocorrido nos últimos anos do século XIX e início do século XX, só após a revolução de Outubro de 1917 seu trabalho começou a ser sistematizado. A obra por ele publicada em vida e única não-sistemática, Minha vida na arte, é de 1923-19251. Muito depois de sua morte (1938) é que se publica na URSS O trabalho do ator sobre si mesmo (1955), em dois volumes que no Ocidente receberam os títulos A preparação do ator e A criação de um papel, e finalmente em 1957 é publicada A construção da personagem.

Estas três obras sistemáticas, que propriamente constituem o "Método Stanislavski", por sua vez, foram publicadas no Brasil entre os anos de 1960 e 1970, sempre em tradução das edições americanas, que começaram a sair nos Estados Unidos em 1936 graças ao empenho de Elizabeth Reynolds Hapgood2. Destas primeiras informações, já se pode afirmar com Brecht que no Ocidente o sistema Stanislavski surgiu como um tema do teatro americano de esquerda3, que primeiro discutiu "o método" a sério.

Como não é o caso de repisar aqui algumas das informações básicas sobre a trajetória de Stanislavski, já que elas estão disponíveis nas edições brasileiras de suas obras fundamentais, trataremos apenas de suas compreensíveis relações com a Revolução, pois estas respondem pelo modo como Brecht reagiu ao modo como ele foi "canonizado" pelos stalinistas.

Para que não se perca o senso das proporções, não custa lembrar que em 1917 Stanislavski já estava com 54 anos e sua própria revolução teatral, de que trataremos adiante, completara 22 anos (o Teatro de Arte de Moscou, doravante a ser referido como TAM, estreou em 1898). Sem se apresentar propriamente como hostil às providências da Revolução no campo das artes cênicas (à diferença de alguns de seus mais famosos discípulos, como Vakhtangov e Meyerhold, que a ela aderiram com entusiasmo), Stanislavski limitou-se inicialmente a defender seu território e sua concepção edificante de teatro (espaço onde os trabalhadores poderiam aprender "bons modos"), no que teve bastante sucesso. Em retribuição, os revolucionários asseguraram a continuidade de seu trabalho, no interesse adicional de preservar bons exemplos da "velha cultura"4.

Mantendo basicamente a rotina do TAM (encenação preferencial de peças de Tchékhov e Gorki), Stanislavski e seus discípulos não abandonaram de todo a experimentação, quando possível apresentando "peças novas" que claramente dialogavam com os acontecimentos e, em momentos cruciais, registravam posições e mesmo diagnósticos importantes. Para não entrar em detalhes que nos levariam longe demais, limitemo-nos a referir a primeira experiência nova, o Caim de Byron (texto de 1821), que adota o ponto de vista do fratricida em plena guerra civil (o espetáculo é de 1920). Alguns anos depois, em 1926, Stanislavski patrocinou a encenação da peça de Bulgakov, Os dias dos Turbins (direção de Sudakov) um dos maiores sucessos do TAM em tempos soviéticos (só saiu de cartaz em 1941), que na ocasião foi violentamente criticada. Um detalhe que não escapou a Brecht: durante a consolidação da corrente stalinista no poder, a peça tem por assunto as tribulações de uma família ligada ao exército contra-revolucionário durante a guerra civil e não esconde a simpatia por essa gente.

Mas diga-se também, e a bem da verdade, que nesse mesmo ano de 1926 o próprio Stanislavski dirigiu a montagem de Corações ardentes (Ostrovski), espetáculo que Meyerhold considerou perfeito e, para Brecht, que o assistiu com enorme prazer em 1955, manifestava "toda a grandeza de Stanislavski"5. Para o leitor de Minha vida na arte, esta convergência é menos surpreendente do que parece.

Para concluir este vôo rasteiro, cabe ainda lembrar que, após o ataque cardíaco sofrido durante as comemorações do 30º aniversário do TAM (1928), nosso diretor diminuiu radicalmente as suas atividades, o que não o impediu de acompanhar de longe a encenação do Otelo em 1930 (que finalmente saiu como ele queria), nem de dirigir em 1932 uma adaptação de Almas mortas (Gogol), seu último espetáculo. A esta altura (estamos a dois anos do Congresso de Escritores que proclamará a palavra de ordem do realismo socialista), o Teatro de Arte de Moscou já dá régua e compasso ao teatro soviético hegemônico.

A revolução stanislavskiana
Em Minha vida na arte6 Stanislavski reconstitui de modo vivo e extremamente interessante as diferentes linhas e períodos que marcaram a trajetória do TAM até os anos vinte. De seus relatos é possível abstrair com razoável dose de verdade (como ele gostava) os dois passos que devidamente combinados configuram a revolução levada a efeito por ele e demais companheiros daquela companhia.

Depois de um primeiro perído atuando tanto quanto possível nos moldes da tradição7 ainda presente nos teatros russos, surge para eles, por iniciativa de Nemiróvitch Dántchenko o problema Tchékhov8, que foi mais ou menos resumido nestes termos: "Todos os teatros da Rússia e muitos europeus tentaram encenar Anton Tchékhov utilizando os recursos cênicos tradicionais. Todas as tentativas fracassaram. E deve-se ter em conta que suas peças (...) eram representadas pelos melhores artistas do mundo" (p.245).

Trocando em miúdos, e permanecendo nas formulações de Stanislavski, o problema decorria da insatisfação produzida pelas leituras e encenações das peças do dramaturgo, para não falar em incompreensão mesmo. Assumindo a máscara de leitor desavisado, o diretor enumera as suas próprias decepções com elas: são pouco teatrais, monótonas, entediantes, não apresentam nada de particular, nada de surpreendente, nada de novo; não se sabe o que interessa, se a fábula ou o tema; nenhum dos personagens se destaca a ponto de interessar a um grande ator e assim por diante.

Com vasta experiência literária, Nemiróvitch-Dántchenko, o primeiro diretor do TAM, ensinou a Stanislavski e ao elenco da companhia como ler e buscar o caminho para interpretar corretamente a obra do amigo dramaturgo, que até então só tivera decepções. Entre outras coisas, ele reclamava do que hoje chamamos super-representação, aquela maneira de atuar que produz uma clara percepção de artificialismo e, quando exagerada às raias da caricatura involuntária, no Brasil desqualifica o praticante como canastrão9. Depois de muita ruminação, conta Stanislavski, "nós nos convencemos de que era impossível separar forma de conteúdo, ou seja, o aspecto literário, psicológico ou social, das imagens e da expressão necessária que, em seu conjunto, concretizavam em cena a arte da poesia [de Tchékhov]" (p.249). A partir dessa compreensão conseguiram "transpor para a cena alguma coisa do que está em Tchékhov" na medida em que encontraram uma nova maneira de encená-lo, uma maneira muito particular, que foi a principal contribuição do TAM para a arte dramática (p.245).

Esta maneira nova e "natural" – por oposição à artificial acima referida –, que depois constituirá o núcleo do "método", em Minha vida na arte deriva da linha de trabalho voltada para a "intuição" e o "sentimento" e foi descoberta na busca de alternativas aos clichês e convencionalismos que ainda imperavam até mesmo nos mínimos detalhes dos trabalhos do próprio TAM. Na encenação da Gaivota (1901) foram dados grandes passos, mas nem tudo se resolveu, como Tchékhov sugeriu ao criticar o figurino escolhido pelo próprio Stanislavski para seu personagem Trigorin. O dramaturgo observou-lhe na estréia que este devia usar botas surradas e calça xadrez (Stanislavski usara roupas brancas e complementos impecáveis, demorando bastante para entender seu erro "técnico").

Depois de compreendidas, as peças de Tchékhov puderam finalmente apresentar no palco as mesmas delícias encontradas por leitores como Dántchenko. Segundo os achados de Stanislavski, elas têm ação e movimento em doses gigantescas, mas não nas manifestações exteriores e sim em seu desenvolvimento interno. Tchékhov provou que a ação cênica pode se concretizar no sentimento e este pode fundamentar a cena; o ator não tem que representar (segundo as convenções a partir de agora superadas), tem que ser, viver seu personagem. Quem faz personagens de Tchékhov precisa perceber que com muita frequência eles dizem precisamente o que não sentem, que há um claro desencontro entre discurso e sentimento e isso precisa vir para a cena sem maior alarde. Mais ainda: este dramaturgo dispensa as vivências triviais que provêm da superfície da alma; suas peças já não precisam das sensações desgastadas, desmoralizadas e convencionais que perderam toda intensidade. Sua especialidade é expor estados de espírito que frequentemente são intraduzíveis em palavras; pressentimentos, alusões, sinais e sombras de sentimentos que vêm do fundo da alma e, em contato com eles, as almas do ator e do público se inflamam, produzindo sentimentos vivos, mesmo que ainda sem nome. Com um detalhe nada desprezível: estes sentimentos e sensações estão impregnados da poesia sempre fresca e florescente da vida das ruas (pp.246-9).

Em outras palavras: ao escrever suas memórias, Stanislavski tem plena consciência de que a novidade produzida por seu teatro foi uma linguagem cênica (obra coletiva que envolveu atores, diretor, dramaturgista, cenógrafo e demais "técnicos") capaz de traduzir o novo conteúdo das peças de Tchékhov: relações, sentimentos, palavras, ritmos (pausas), gestos, etc., correspondentes a uma experiência histórica que não tinha equivalente na dramaturgia nem no repertório teatral herdados por sua geração. É este o feito que ele reivindica.

Mas sua revolução só se completará no passo seguinte, igualmente promovido por Tchékhov e Nemiróvitch-Dántchenko. O primeiro apresenta Gorki ao TAM e convence seus dirigentes de que só eles seriam capazes de transpor a sua obra literária para a cena. E o segundo novamente ensina "como ler" Gorki. Stanislavski lembra que a conjuntura prérevolucionária (ele se refere à revolução de 1905) já levara a escola que mantinham a selecionar para seus cursos de preferência candidatos provenientes das "massas populares"; "a efervescência revolucionária e o nascimento da revolução trouxeram para o teatro toda uma série de obras que refletiam os ânimos político-sociais de descontentamento, protesto e sonhos com um herói capaz de dizer a verdade com energia", diz ele a propósito de seu próprio sucesso no papel de Dr. Stockmann, em O inimigo do povo, de Ibsen (p.278). Das peças que Gorki estava escrevendo, a primeira que ficou pronta foi Os pequenos burgueses, encenada pelo TAM na temporada 1901-2. A experiência não deu muito certo, mas parte importante da responsabilidade pela frustração deve ser debitada à eficiente vigilância da censura e da polícia sobre o dramaturgo e, em decorrência das "relações perigosas" com ele, sobre a companhia teatral. Para começo de conversa, depois de demoradas negociações a peça só foi liberada com cortes, mas apenas para os sócios (os abonados burgueses e aristocratas que ajudavam a manter a companhia através de assinaturas) e não para o público em geral. Além disso, uma série de incidentes, desde o ensaio geral aberto apenas a convidados e cercado por policiais como numa operação de guerra, acabou levando à desistência da empreitada.

Com Ralé, na temporada seguinte, peça na qual Stanislavski fez o papel de Satin, o TAM deu o segundo passo. Em suas palavras: "Novamente estávamos às voltas com um problema difícil; um tom novo e uma nova maneira de representar, uma nova vida, um romantismo insólito, uma ênfase que por um lado beirava à mais perfeita teatralidade e, por outro, ao sermão. Quando se trata das obras de Gorki, é preciso dizê-las de modo tal que cada frase tenha som e vida. Seus monólogos didatizantes e próximos da pregação (...) têm que ser pronunciados com simplicidade, com elevação natural interior, sem falsa teatralidade nem grandiloquência; do contrário, corre-se o risco de transformar uma obra séria em melodrama vulgar. Foi preciso apropriar-se do estilo peculiar do vagabundo, sem o confundir nem mesclar com o tom teatral comum das peças de costume, e ainda menos com a declamação falsa e vulgar" (p.282). Para realizar tal proeza, todo o elenco do TAM tratou de excursionar pelo submundo dos albergues noturnos, onde acabou encontrando a matriz empírica da "poesia das ruas" que, como Tchékhov mas em outro registro, Gorki elaborou literariamente e queria ver e ouvir no teatro. Com esta experiência, pelo menos Stanislavski aprendeu a utilizar "material vivo" para o seu trabalho de criação de "homens e imagens".

Ralé fez um sucesso estrondoso que transformou Gorki em artista com legiões de admiradores. Mas o perfeccionista Stanislavski não ficou inteiramente satisfeito com seu próprio trabalho de ator. Para ele, como seu personagem era a tendência política personificada, ao fazê-lo acabou dando prioridade ao significado político-social da peça; isso produzia nele algum mal estar, pois não conseguia viver os pensamentos e sentimentos do personagem. Em sua avaliação, nunca chegou a alcançar este objetivo.

Depois disso, os fundamentos do sistema stanislavskiano estavam lançados. E dispondo destas informações talvez fique mais fácil acompanhar com serenidade e distanciamento (isto é: em atitude épica) a relação de Brecht com esta história.

Identificação e Distanciamento
É compreensível que Stanislavski só tenha se tornado um assunto para Brecht quando este já se encontrava no exílio. Até a chegada de Hitler ao poder (1933) ele estava envolvido com a perspectiva de uma Revolução na Alemanha e com a sua própria revolução no teatro que, como se sabe, tinha entre seus opositores os veteranos do naturalismo alemão (inclusive os críticos). Nunca é demais lembrar: estes também eram de esquerda e, de um modo geral, ligados ao Partido Socialista. E, pelo que ficou dito acima, também é compreensível que seu interesse em matéria de teatro soviético estivesse voltado para experiências como as do agitprop e as de Meyerhold, mas devidamente preocupado com o modo como este último era recebido pela crítica alemã, como se pode ver num texto de 1930 sobre o assunto: em nome das "emoções", estes críticos descartavam a contribuição revolucionária do diretor para o teatro. Caprichando na ironia profunda, Brecht conta que eles reclamaram da falta de modos dos personagens ingleses na peça de Tretiakov A China brame, dirigida por Meyerhold e encenada em Berlim, acrescentando que, pelos mesmos critérios, reclamariam, numa eventual encenação de alguma peça sobre Átila, o huno, da omissão de seu amor pelas crianças10 .

Dentre as referências a Stanislavski datadas por Brecht, uma das mais recuadas é de 12 de setembro de 1938, em seu Diário de trabalho11 . Ali Brecht registra que num jornal alemão editado em Moscou, o Deutsche Zentral-Zeitung, o Culto Stanislavski (cujo cadáver nem esfriara) seguia de vento em popa. Polemizando com seus sacerdotes, aos quais chama de murxistas12, Brecht observa que no "método" a razão não é suprimida, longe disso, é um mecanismo de controle. Por exemplo, quando Stanislavski pede a um ator que a expressão seja justificada, ele quer ver a razão no palco. O argumento completo é mais pesado: aqueles sacerdotes que exaltam as emoções fingem não saber que elas não são no mínimo tão corruptas quanto as funções racionais; eles desconsideram que todo pensamento necessário tem seu corelativo emocional e que todo sentimento tem o seu correlativo intelectual. O diagnóstico a respeito do processo em andamento é implacável: "a hipocrisia da Escola de Stanislavski, com seu templo da arte, sua celebração da palavra, seu culto do poeta, sua interioridade, sua pureza, sua exaltação, seu natural, do qual se teme sempre e inevitavelmente "sair", nada mais é que o reflexo de seu atraso mental, de sua crença "no" homem, "nas" idéias, etc."13 .

O maior interesse desta entrada do diário é a clara demonstração de que o problema de Brecht não é Stanislavski propriamente dito, mas a mistificação que teve início quando da adoção do realismo socialista como palavra de ordem stalinista para as artes em 1934, programa no qual, no âmbito da encenação teatral, coube a Stanislavski, malgré lui même, o papel de profeta, por assim dizer. Note-se, entretanto, que as "sagradas escrituras" dessa religião só começaram a ser publicadas quando o culto já entrava em declínio até mesmo no âmbito oficial, e não propriamente por acaso.

Como se sabe, Walter Benjamin se refere a Brecht como dramaturgo dialético14 e demonstra exaustivamente esta tese em seus ensaios sobre o companheiro de lutas. Provavelmente, o filósofo não deve ter tido acesso aos diários do amigo, quando ambos estiveram exilados15 mas, se tivesse, haveria de dizer que a seguinte análise da identificação stanislavskiana é um bom exemplo de exercício de dialética, diretamente inspirado no Hegel da Ciência da Lógica16: "de um lado, o ato de identificação recorre a elementos racionais e, de outro, o efeito de distanciamento pode ser aplicado de maneira puramente sentimental. Stanislavski desenvolveu longas análises para chegar à identificação, e o efeito de distanciamento dos panoramas de feira ("Nero contempla o incêndio de Roma" [...], "o terremoto de Lisboa") é puro sentimento. No teatro aristotélico a identificação também é intelectual; o teatro não-aristotélico também recorre à crítica sentimental"17 .

Na verdade – sempre no espírito brechtiano –, todo o mistério da identificação poderá ser dissolvido se recorrermos à providência dialética de historicizá-lo, o que Brecht naturalmente fez nos mais diversos momentos de seus Escritos sobre teatro e sobretudo no início da Compra do Latão. Desenvolvido, como vimos acima, às voltas com as dificuldades para encenar peças de Ibsen, Tchékhov e Gorki – isto é, sob o signo do naturalismo – o próprio trabalho de Stanislavski na busca da identificação entre ator e personagem é, segundo Brecht, um avanço considerável na história das artes cênicas, no bojo de importantes conquistas sociais e culturais. Por isso observa: "o sistema de Stanislavski é um progresso pelo simples fato de ser um sistema. O jogo que ele desenvolve produz a identificação de maneira sistemática; esta, portanto, não é efeito do acaso, nem do humor, nem da inspiração. O conjunto [ensemble] alcança uma alta qualidade técnica que tem o objetivo de provocar uma identificação total do espectador. O progresso em questão fica particularmente visível depois que essa identificação começa a acontecer com personagens que até então não tinham nenhum papel no teatro: os proletários. Não é por acaso que na América foram justamente os teatros da esquerda que começaram a se apropriar do sistema de Stanislavski. Esse modo de representar tem a possibilidade de permitir uma identificação com o proletário, até então impossível"18 .

Ainda segundo Brecht, os esforços de Stanislavski para desenvolver um método para conseguir a identificação do ator com seu personagem mostram que desde fins do século XIX, justamente pelos novos problemas, situações e personagens que os melhores dramaturgos criaram, foi ficando cada vez mais difícil produzi-la. É neste ponto que os caminhos dos dois diretores se separam, pois enquanto Stanislavski trabalhou para salvar uma prática que tem a idade do drama (burguês), Brecht e outros (como Meyerhold) buscaram a sua superação. Aqui vale a pena passar novamente a palavra a Brecht: "Muito ingenuamente, Stanislavski tratou as dificuldades como fraquezas passageiras, puramente negativas, que deviam e podiam ser superadas a qualquer preço. (...) Não lhe ocorreu que as perturbações [no processo de identificação] pudessem ser consequência de mudanças irreversíveis que afetaram a consciência do homem moderno (...) Se isto lhe ocorresse, talvez ele se tivesse perguntado se ainda era o caso de procurar promover a identificação total. Foi a questão que a teoria do teatro épico se colocou. O teatro épico se interessou pelas dificuldades, pelas perturbações – e se esforçou para encontrar um modo de atuar que permitisse renunciar à identificação total"19 .

Voltando mais uma vez à determinação histórica do trabalho de Stanislavski, agora posto em perspectiva, na Compra do latão Brecht ao mesmo tempo faz o elogio e circunscreve o seu alcance: "As obras principais de Stanislavski, que aliás fazia muitas experiências e realizava peças fantásticas, foram as da época naturalista. No caso dele, deve falar-se mesmo de obras pois, como é habitual com os russos, algumas de suas encenações já se realizam há mais de 30 anos sem qualquer modificação, embora sejam já interpretadas por atores diferentes. As suas obras naturalistas consistem então em retratos sociais minuciosamente executados. (...) A ação das peças é mínima, a ilustração pormenorizada dos estados de alma ocupa o tempo todo, trata-se de investigar a vida interior de algumas personagens individuais, no entanto há também alguma coisa para os investigadores sociais. Quando Stanislavski estava na força de sua idade, a revolução aconteceu. O seu teatro foi tratado com o máximo respeito. Vinte anos depois da revolução foi ainda possível estudar nesse teatro, como num museu, o modo de vida de camadas sociais entretanto desaparecidas"20 .

Aprender com Stanislavski 
Em 1947, quando ainda estava nos Estados Unidos, chegou às mãos de Brecht uma espécie de manual stanislavskiano publicado em Berlim com o título O livro alemão de Stanislavski, organizado por alemães veteranos das lutas teatrais dos anos 20 que se refugiaram na URSS durante o nazismo. Observando que "aqui [nos EUA] também o stanislavskianismo significa um protesto contra o teatro mercantil", não deixa de avisar que no tal manual "não se encontra um único exercício tirado da luta de classes", e que seus autores propõem um realismo curioso, "praticam um culto alambicado da realidade"21 . Algum tempo depois, a caminho de Berlim, volta a escrever sobre o manual: "o que particularmente me repugna [nele] é esse tom de moralismo tacanho"22 .

Todo mundo sabe que na Alemanha Oriental a ortodoxia soviética reinou quase absoluta, sobretudo nos primeiros anos da "reconstrução"; por isso não há necessidade de procurar detalhes sobre o modo como esse manual funcionou na vida teatral hegemônica no período (o Berliner Ensemble foi uma exceção mantida sob permanente vigilância). Para se armar o problema, é só lembrar que nem na URSS estavam disponíveis os textos do próprio Stanislavski. Daí o interesse do seu conselho a Joshua Logan23, que o visitou em 1931 e deu notícia deste encontro na introdução ao livro A construção da personagem: "Nosso método nos serve porque somos russos, porque somos este determinado grupo de russos aqui. Aprendemos por experiências, mudanças, tomando qualquer conceito gasto de realidade e substituindo-o por alguma coisa nova, algo cada vez mais próximo da verdade. Vocês devem fazer o mesmo. Mas ao seu modo e não ao nosso. O método que usamos em 1898, quando foi fundado o Teatro de Arte de Moscou, já foi modificado mil vezes. Alunos meus, ou atores da nossa companhia se impacientaram e romperam conosco. Formaram novas companhias e hoje acham o Teatro de Arte de Moscou antiquado, fora de moda. Talvez eles descubram algo mais próximo da verdade do que nós descobrimos"24 .

Se Brecht não conversou com o diretor sobre o assunto, provavelmente leu esta introdução, de 1949, na tradução americana do livro. Independente desta hipótese, é certo que Brecht conhecia esta disposição de Stanislavski para acolher e aprovar justamente os que procuraram novos rumos (novas e melhores verdades)25, o que também explica as suas insistentes manifestações favoráveis ao estudo das obras do diretor quando voltou à Alemanha.

Em 1951 o Comitê das Artes alemão começou a organizar, por assim dizer, uma Jornada de estudos sobre Stanislavski que afinal acabou acontecendo em 17 a 19 de abril de 195326 . Como se pode depreender das observações de Brecht, as jornadas foram mal organizadas e pior realizadas, à base de muita improvisação e (acrescentaríamos) exercícios de dogmatismo explícito. Por isso Brecht escreveu que a organização precisava melhorar; a discussão devia ser também sobre teatro (!!!); as teses a serem debatidas nem sequer foram divulgadas; os participantes improvisaram tudo, e assim por diante27 . Suas propostas seguiam obviamente na direção contrária e contemplavam questões elementares, como por exemplo: é preciso publicar os principais escritos de Stanislavski; é preciso historicizar Stanislavski, estudar cada fase de seu trabalho, saber o que ele mesmo apontou como errado ou insuficiente em seus próprios estudos, enfim, conhecer o que ele escreveu na última fase, a da construção do socialismo na URSS28. Suas razões práticas: "Um breve estudo do modo de trabalho de Stanislavski basta para revelar uma grande riqueza de exercícios e de procedimentos úteis numa representação realista. Há muito o que aprender, mas é preciso realmente querer aprender"29 .

Por falar em querer aprender, Brecht recomenda a leitura de um livro publicado em 1952 na Alemanha, Stanislavski ensaiando, de Toporkov. Dá destaque ao trabalho com uma cena da peça Os dias dos Turbins, já referida aqui, em que ocorre a chegada do oficial ferido à casa da família. Toporkov conta que o elenco avançou rapidamente para a representação dos "transportes sentimentais" dos familiares e Stanislavski criticou severamente o procedimento. Depois explicou aos atores o que eles estavam ignorando: naquela situação era prioritário providenciar um esconderijo para o ferido; aquelas pessoas estavam lidando com um oficial contra-revolucionário em plena guerra civil; não havia, portanto, tempo para se perder com "transportes sentimentais"30 . Deste episódio, Brecht abstraiu uma importante lição que os atores podem aprender com o teatro de Stanislavski – o sentimento de responsabilidade diante da sociedade: "Stanislavski ensinou aos atores a importância social do jogo teatral. Para ele, a arte não é um fim em si, mas ele sabia que no teatro nenhum objetivo é alcançado se não for pela arte"31 . Por afinidades como estas, numa entrevista sobre aquelas jornadas, Brecht afirmou que os teatros alemães podiam aprender muito com Stanislavski: "Posso citar de cabeça algumas coisas que é preciso estudar. O caráter diferenciado de suas representações, as inumeráveis sutilezas, a percepção dos aspectos contraditórios entre os seres e as situações, o natural artístico, a luta incessante contra os doutrinários (que infestam os teatros). Há os esforços para estimular a imaginação dos atores e torná-la concreta. Há os exercícios para reforçar a observação e a percepção; indicações sobre a maneira pela qual o ator pode se livrar das influências perturbadoras da vida privada para ficar em condições de se consagrar inteiramente a seu papel; indicações sobre a maneira pela qual o ator pode realizar o ato de identificação com o personagem da obra"32 . Para concluir, Brecht identifica particularmente duas afinidades entre seu próprio método e o do diretor russo. São elas a teoria das ações físicas e a compreensão do superobjetivo, tópicos a partir dos quais seria possível até falar em sistemas complementares, desde que se ultrapasse a mera contraposição entre identificação e distanciamento, percebendo o distanciamento como a superação dialética (a que preserva e contém em si o superado) da identificação. Sobre este ponto, é interessante a resposta de Helene Weigel quando perguntada sobre o uso da identificação: "Nós representamos para as pessoas seres humanos que não são nós. Esse é o processo. Por que não haveríamos de ter consciência deste processo?"33 Em outro lugar Brecht complementa: "Como dramaturgo, eu preciso da capacidade do ator de se identificar completamente e de se metamorfosear integralmente que Stanislavski foi o primeiro a pensar de modo sistemático; mas ao mesmo tempo, e acima de tudo, preciso da distância em relação ao personagem que o ator, enquanto representante da sociedade (de sua parte progressista), deve estabelecer"34 .

A partir desses apontamentos, talvez fique mais compreensível a manifestação crítica mais acabada sobre este problema, na Compra do latão: "A última forma, até agora, de representar do teatro burguês assente numa base teórica elaborada, e que é associada ao grande dramaturgista e ator russo Stanislavski, utiliza uma técnica que pretende garantir a veracidade da representação. O comportamento dos atores não deve distinguir-se em nada, nem no mais pequeno pormenor, do comportamento dos homens na vida real. Através de um ato psíquico particular de identificação com a personagem a representar, o ator consegue imitações minuciosas das reações de pessoas reais. Este ato psíquico consiste numa introspecção profunda, na qual o ator entra por inteiro na alma da pessoa a representar, transformando-se a si próprio completamente nesta pessoa, um ato que, quando conseguido corretamente, é realizado também pelo espectador, de modo que também este se identifica completamente com a pessoa representada. Stanislavski, que tem o mérito de ter estudado este ato com rigor quase científico, e que especificou o que é preciso para o conseguir, não acha necessário defendê-lo contra qualquer tipo de crítica: não está de modo nenhum preparado para uma tal crítica. A identificação parece-lhe um fenômeno de todo inseparável da arte, tão inseparável que não se pode falar de arte quando ela não acontece. Alguém que queira contrariar esse conceito – e eu por exemplo vejo-me forçado a contrariá-lo – encontra-se à partida numa situação difícil, pois não se pode negar que o fenômeno existe de fato na experiência artística pura e simples. (...) Nos últimos anos, alguns abandonaram todas as técnicas (e existem muitas, a de Stanislavski é só uma delas) que visam a obtenção da identificação completa. A razão para tal é que estas formas de representar permitem mostrar a verdade sobre a vida dos homens em comunidade (que é mostrada no teatro) só de uma maneira muito imperfeita."35

Leituras complementares
O que Brecht apontou como possível complementaridade entre o seu sistema e o de Stanislavski, em relação ao trabalho do ator, aparece para quem trabalha com dramaturgia numa simples superposição das análises que ambos fizeram do Otelo de Shakespeare. Detalhe decisivo: Brecht tomou a de Stanislavski como ponto de partida.

A segunda parte de A criação de um papel é dedicada ao Otelo. A forma dialogada da exposição responde pelo interesse em dar a conhecer os vários tipos de incompreensão, as leituras apressadas, para não falar nada das não-leituras de atores que se interessam apenas pelos próprios papéis sem se preocuparem nem mesmo com o significado geral da peça (o super-objetivo de Stanislavski). Como não teria propósito dar conta de cada episódio, ou incidente, passo a passo, vamos reproduzir aqui apenas os conselhos mais importantes do mestre, assim como as suas conclusões.

Para combater a idiotia do papel (comportamento do ator que não gosta de estudar nada, nem mesmo a própria peça em que vai atuar), Stanislavski dá este conselho: "vocês devem ler e ouvir tudo, todas as peças que puderem, críticas, comentários, opiniões. Isso abastece e amplia o seu estoque de material criador. Mas ao mesmo tempo têm que aprender a salvaguardar sua independência e afastar os preconceitos. Vocês devem formar opiniões próprias e não ir aceitando irrefletidamente as opiniões alheias. Precisam aprender a ser livres. É uma arte difícil, que só dominarão por meio do conhecimento e da experiência. Estes, por sua vez, serão adquiridos não por meio de uma lei qualquer, mas por todo um complexo de conhecimentos teóricos e trabalho prático no campo da técnica artística, e principalmente pela reflexão pessoal, pela penetração nas essências, por muitos anos de prática."36

Ainda em função do mesmo interesse, acrescenta o mestre: "o estudo da literatura mundial os auxiliará tremendamente nesses processos. Em toda peça, como em todos os seres vivos, há uma estrutura óssea, membros: mãos, pés, cabeça, coração, cérebro. Uma pessoa literariamente treinada estudará, como o anatomista, a estrutura e a forma de cada osso e articulação, e reconhecerá os seus componentes. Dissecará a peça, avaliará o seu significado social, fará surgir seus erros, o ponto onde ela bloqueia o desenvolvimento do tema principal ou se desvia dele. Poderá perceber rumos novos e originais numa peça, suas características internas e externas, o entrelaçamento das falas, o inter-relacionamento dos personagens, os fatos, os acontecimentos. Toda esta ciência, habilidade e experiência é extraordinariamente importante na apreciação de uma obra."37

Quanto ao Otelo, sem prejuízo da recomendação da leitura de todo o capítulo, para não falar de todo o livro (a análise do Inspetor Geral de Gogol é igualmente reveladora), limitemo-nos às principais conclusões. A certa altura, para explicar por que os atores têm que se interessar pela posição social dos personagens, diz Stanislavski: "Otelo rapta a filha de um alto dignitário, e o faz na posição de um estrangeiro, que por acaso está a serviço do Senado. Este é um conflito que envolve duas classes diferentes e também duas nacionalidades. Além disso, trata-se também da dependência do Senado em relação a um negro que eles desprezam. Para os venezianos, este conflito é toda a tragédia."38 E, para ilustrar a necessidade de recorrer aos conhecimentos (pressupostos pelo texto) referidos acima, temos o seguinte comentário analítico: "Não haveria o amor entre Otelo e Desdêmona sem o êxtase romântico de uma linda jovem; sem as histórias fascinantes, lendárias do Mouro, sobre suas proezas militares; sem os inúmeros obstáculos ao seu casamento desigual, que despertam as emoções de uma visionária jovem revolucionária; sem a súbita guerra, que impõe o reconhecimento das núpcias de uma jovem aristocrática com o Mouro, para salvar o país. E não haveria ruptura entre as duas raças sem o esnobismo dos venezianos, sem a honra da aristocracia; sem o seu desdém pelos povos conquistados, a um dos quais o próprio Otelo pertence; sem uma sincera convicção do opróbrio que é misturar o sangue negro e o branco".39

Depois de ler esta análise, Brecht achou que só tinha a acrescentar o seguinte: [com Stanislavski aprende-se] "como deduzir da sociedade certas características de um personagem sobre as quais a ação se baseia. Exemplo: o ciúme de Otelo, que não é uma paixão "eterna" e muito menos universal (veja-se o exemplo dos esquimós). Isto pode ser expresso no teatro. Otelo não possui apenas Desdêmona, ele possui um cargo de general. Ele tem que defender seu cargo que lhe pode ser roubado. Shakespeare escolheu expressamente um general que não herdou seu cargo, mas o conquistou por feitos específicos, e sem dúvida roubou-o de alguém. É portanto um general assalariado; ele não é proprietário de sua posição de general – como seria o caso de um senhor feudal –, como consequência e expressão de sua situação na sociedade. Em suma, ele vive num mundo de complôs por propriedade e por posições, em que a posição é tratada como propriedade. Da mesma forma, sua relação com a mulher amada se desenvolve como uma situação de propriedade. A paixão-ciúme, quando o teatro a mostra nestes termos, não fica diminuída; ao contrário, é aprofundada. Neste mesmo processo aparecem indicações das possibilidades que a sociedade tem de intervir."40 Este deveria ser, segundo Brecht, o objetivo de uma montagem épica do Otelo. E ele tem boas razões para acreditar que isto acaba correspondendo ao super-objetivo de Stanislavski.

* Professora Aposentada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP.

NOTAS

1 Devo esta e as demais informações sobre edições soviéticas da obra de Stanislavski a Arlete Cavalieri, a quem faço questão de agradecer. A obra completa em russo, Sobranie sochinenii, foi publicada em oito volumes entre os anos de 1954 e 1961; cf. RUDNITSKY, Konstantin. Russian and Soviet Theatre. London: Thames & Hudson, 2000 (1ª ed. 1988). Como veremos adiante, esta informação é relativa à URSS, pois nos Estados Unidos o caso é diferente.
2 Cf. prefácios e/ou notas editoriais das edições brasileiras, todas da Editora Civilização Brasileira.
3 A edição portuguesa de A compra do latão (Lisboa: Vega, 1999), a propósito de uma sugestão de exercício stanislavskiano para atores, informa que Brecht está citando um ensaio (provavelmente uma resenha) de Rapaport publicado em 1936 na revista americana Theatre Workshop, número 1, com o título The work of the actor (o mesmo da tradução de Elizabeth Hapgood). Em 1937 a mesma revista publica um outro estudo em seu número 2, The actor's creative work, de Sudakov. Há várias referências ao ensaio de Rapaport na Compra do Latão.
4 Cf. EDWARDS, Christine. The Stanislavsky Heritage. New York: New York University Press, 1965, p.92.
5 BRECHT, B. Journal de Travail (1938-1955). Paris: L'Arche, 1973, p. 555.
6 STANISLAVSKI, K. Mi vida en el arte. La Habana: Arte y Literatura, 1985. Eventuais citações ou referências, todas desta edição e em tradução livre, serão feitas no corpo do texto.
7 Nas palavras do diretor: "(crítica e público) não percebiam que o detalhismo na caracterização (cenário e figurinos) era um modo de disfarçar a imaturidade do elenco". Ironicamente, ainda comenta que o TAM vivia um claro paradoxo: contando com atores que mal sabiam caminhar no palco, todos tratavam com grande menosprezo o teatro e o ator da velha escola (p.235).
8 A experiência com as peças de Ibsen também é muito reveladora, mas a sua reconstituição nos levaria longe demais.
9 Em carta de 27.09.1889 a Aleksei Suvórin, editor de um jornal de São Petersburgo, Tchékhov comenta a estréia de uma de suas peças: "Os homens não sabem os seus papéis e representam razoavelmente; as damas sabem os papéis e representam mal." (Cf. TCHÉKHOV, Anton P. Cartas a Suvórin (1886-1891). São Paulo: Edusp, 2002, p.264).
10 Cf. BRECHT, B. Écrits sur le théâtre. v. 1, Paris: L'Arche, 1989, p.202.
11 BRECHT, B. Journal de travail, op. cit..
12 Trocadilho com a palavra alemã murksen, que significa trabalhar mal ou, melhor ainda, malbaratar. Cf. nota da edição citada, p. 561, que ainda lembra ser bastante frequente este trocadilho em Brecht.
13 BRECHT, op.cit., p. 26.
14 Cf. BENJAMIN, W. Understanding Brecht. London: Verso, 1992, especialmente o ensaio "The Country where it is forbidden to mention the proletariat", pp.37-41.
15 Cf. BENJAMIN, W., Conversations with Brecht (Notes from Svendborg), in op.cit., pp.105-121.
16 Fredric Jameson desenvolve este tópico em O método Brecht, em especial na primeira parte, "Doutrina", item 8, "Da multiplicidade à contradição". Cf. JAMESON, F. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999, pp.101-124.
17 BRECHT, Journal, op. cit., p.142 (17.10.40).
18 BRECHT, B. Écrits sur le théâtre, v. 1, op.cit., p.368. Grifos nossos.
19 Id., ibid., pp. 368-9. O problema das dificuldades é enfrentado nesta mesma chave por Adorno que, em ensaio com esse título publicado em Impromptus (Barcelona: Laia, 1985), anuncia ter-se inspirado em "Cinco dificuldades para escrever a verdade", texto brechtiano de 1934.
20 BRECHT, B. A compra do latão. Op. cit., p.18. Como a tradução é portuguesa, pode ser oportuno esclarecer ao público brasileiro que as "peças fantásticas" a que se refere Brecht correspondem ao gênero que no Brasil se designa féerie; Stanislavski encenou nesse gênero O pássaro azul de Maeterlinck, entre outras de muito sucesso.
21 BRECHT, Journal, op.cit., p.450 (15.09.1947). A edição inglesa, anotada por John Willett, tem o cuidado de informar que o livro foi "compilado e publicado sob os auspícios soviéticos e era evidentemente destinado a ser a bíblia do realismo socialista, a nova ortodoxia na Alemanha Oriental". Cf. Bertolt Brecht Journals (1934-1955). London: Routledge, 1993, p.511. Para quem costuma se perguntar pelas horas, não é demais notar o atraso com que chegou essa "novidade" à Alemanha ocupada.
22 Id., ibid., p.464 (04.01.1948).
23 Mais conhecido no Brasil como diretor de cinema (Picnic e Nunca fui santa, 1956; Camelot, 1967), tem origem no teatro musical. Os interessados em Brecht e Weill devem saber que ele foi o diretor do musical Knickerbocker Holiday (Maxwell Anderson e Kurt Weill, 1938), de onde vem a canção It never was you.
24 LOGAN, Joshua. Introdução a STANISLAVSKI, C. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 7.
25 É impossível que ele não soubesse que Meyerhold só escapou da execução enquanto Stanislavski esteve vivo e pôde defendê-lo da sanha stalinista. Christine Edwards conta que a última aparição pública de Meyerhold aconteceu dez meses após a morte do mestre. Foi preso no dia seguinte à sua intervenção no Primeiro Congresso dos Diretores Teatrais da URSS, em que fez um discurso incendiário contra o realismo socialista. (Cf. Nicolai Gorchakov, apud Christine Edwards, op. cit. p. 97.)
26 Cf. nota da edição dos Ecrits sur le théâtre, v.2, p.600.
27 Brecht, Ecrits, v. 2, p.188.
28 Idem, ibidem, p.187.
29 Id., ibid., p.189.
30 Id., ibid., p. 190.
31 Id., ibid., p.191.
32 Id., ibid., p.193.
33 Helene Weigel in BRECHT, Ecrits, v. 2, op. cit., p.187.
34 Brecht, ibidem, p.197.
35 Brecht, A compra do latão, op. cit., pp.92-3.
36 STANISLAVSKI, C. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.117.
37 Idem, ibidem, p.118.
38 Id., ibid., p. 156.
39 Id., ibid., p.127.
40 BRECHT, Ecrits, v.2, op. cit., p.181.

Carta do Movimento 27 de Março

CULTURA NÃO É MERCADORIA

Carta-aberta do Movimento 27 de março
Trabalhadores da cultura contra a privatização da arte! Em 1999 o movimento Arte contra a Barbárie lançou um manifesto que colocava claramente a função social do teatro como registro, difusão e reflexão insubstituível do imaginário de um povo. Os artistas reunidos no Arte contra a Barbárie denunciaram o aprofundamento da mercantilização imposta à Cultura no país através das leis de renúncia fiscal iniciadas pelo governo Sarney, seguidas por Collor e FHC e, agora, por Lula.
Nos 10 anos seguintes os trabalhadores da cultura se organizaram, conquistaram a Lei de Fomento para a cidade de São Paulo, lei inédita que corresponde ao entendimento da produção teatral como trabalho e pesquisa continuada que contribui para o desenvolvimento do potencial humano e não como um produto de mercado.
Para defender essas conquistas e avançar, muitos artistas se organizaram em movimentos como o Redemoinho, o Movimento Teatro de Rua e a Roda do Fomento, além de outros tantos coletivos de luta e resistência da cidade de São Paulo.
No dia 27 de março (dia do teatro) deste ano, os trabalhadores da cultura ocuparam o prédio da Funarte (Fundação Nacional das Artes) em São Paulo para manifestar sua discordância em relação ao projeto de Lei (Profic) apresentado pelo governo federal que mantinha a renúncia fiscal (dinheiro de imposto usado pelas empresas privadas para “investir” em cultura) e as PPPs (parcerias público-privadas) como instrumentos para fomentar a produção artística no país.
Nosso movimento (Movimento 27 de março) se forjou na ação contra o novo projeto de lei do governo federal por considerar que tanto a renúncia fiscal como as PPPs fazem parte do movimento de privatização dos serviços públicos e servem como transferência, para a iniciativa privada, da responsabilidade do Governo, que é de garantir políticas públicas para a cultura que fomentem a produção e o acesso em todo o país. As consequências dessas leis são conhecidas há mais de 10 anos; a cultura é vista como mercadoria e o seu valor é dado por um suposto “mercado” cultural definido por empresas privadas que têm como objetivo a obtenção de lucros e publicidade institucional.
Para nós, a cultura é um elemento fundamental do desenvolvimento humano tanto quanto a Saúde, a Educação, a Moradia e o Transporte.
Embora o Profic (novo projeto de lei federal) avance em ampliar o financiamento público ao fomento cultural, ainda mantém a renúncia fiscal e as PPPs na sua redação.
Nos últimos meses o Ministro Juca Ferreira promoveu inúmeros debates em todo o país sobre o novo projeto. A direita (a exemplo do senador Sarney), aliada às associações de produtores, se opôs à nova Lei por julgarem haver um “dirigismo do Estado” no campo da cultura. Para eles o financiamento através da renúncia fiscal (dinheiro público de imposto que a empresa privada decide onde vai “investir”) não é dirigismo, embora o mercado, neste caso, defina, por exemplo, que através da antiga Lei Rouanet uma empresa pode patrocinar uma multinacional do entretenimento (Cirque du Soleil) com 300 milhões de renúncia fiscal e cobrar ingressos de mais de 100 reais. Isso não é dirigismo na concepção do mercado! De fato, isso é a história do nosso país, todos os privilégios aos privilegiados! Basta!
A função da saúde, da educação e das políticas públicas nestas áreas não é fabricar dinheiro nem dar emprego para médicos, enfermeiros, professores. Da mesma forma, a arte, a cultura, o teatro e respectivas políticas públicas não podem ser encarados como fábricas de valor e empregos. Critérios como lucro, auto-sustentabilidade, produto, serviços, etc., etc., são, no mínimo, deslocados ou secundários para discutir uma política cultural. E, historicamente, o discurso pragmático e realista dos homens de negócio e suas práticas predatórias têm levado, freqüentemente, a becos sem saída.
É importante deixar clara nossa posição. O que desagrada à direita e a esses produtores é exatamente o que queremos avançar: financiamento público para a cultura não é dirigismo, é garantia de acesso e democracia para a produção e circulação da produção cultural no país. Não aceitamos a nova lei do Profic pois consideramos que a permanência da renúncia fiscal e as PPPs reforçam a visão mercadológica da arte que nós tanto repudiamos.
Se nosso governo, eleito para garantir o direito de acesso à cultura, não pode apresentar uma Lei na qual o dinheiro público vá para o financiamento de políticas públicas de cultura, devemos nos perguntar: o que impede o Ministro Juca de fazer isso?
Se a coalizão do Governo com partidos como o do senador José Sarney (que defende os interesses dos empresários) impede que os interesses dos trabalhadores da cultura e do povo brasileiro sejam contemplados, não iremos nós, trabalhadores da cultura, abrir mão de exigir uma política efetivamente pública que contemple a democratização da cultura. Não queremos e não podemos fabricar lucros. Não é essa a nossa função, não é esse o papel da cultura. Nós produzimos linguagens, alimentamos o imaginário e sonhos do que muitos chamam de povo ou nação; nós trabalhamos com o humano e a construção da humanidade. E isso não cabe no estreito mundo mercantil.
Como dizia um dramaturgo alemão muito conhecido: "Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence." (Brecht)
Não vamos aceitar a privatização da cultura nem de direito algum!
Abaixo a baixaria, cultura não é mercadoria!
Dinheiro público para políticas culturais públicas!
Contra as leis de renúncia fiscal e as PPPs!

Manifesto do Movimento Escambo Livre

Todo Dia é Dia de Teatro

HOJE TEM ESPETÁCULO? Tem sim senhor!
Tem o Movimento Popular Escambo Livre de Rua, vivo, presente, pulsante, escambando nas periferias metropolitanas; na chapada do Apodi; nos sítios e assentamentos - do litoral ao sertão nordestino - subindo e descendo terras secas, serras verdejantes, levando como bagagem: poesia, teatro, ação, bandeira de luta, estandarte nas mãos! Arte diária transformada em pão, que mata a fome, provoca sede de saberes e trocas constantes de vida por arte e arte por vida nas marcantes rodas de cenas.
Somos o Movimento Escambo e com a força da arte popular pedimos e exigimos respeito e reconhecimento aos artistas e trabalhadores culturais, prestadores de serviço a serviço da vida, da paz, da cidadania, do amor. Sim! Somos brincantes!
A cortejar pelas ruas, becos e praças um teatro que não perde a graça nem a vontade de ir avante.
Somos roda viva, da arte que peleja em mostrar com beleza um teatro que cativa, instiga, motiva! Somos a pedra no sapato do palhaço; Somos a poesia do poeta-ator; Somos a escrita do poeta que não editou; Somos a música que a mídia não tocou; Somos a arte que a tv não anuncia, não anunciará e nunca anunciou.. Somos frutos da rua e do mundo. Somos o grito, eco do coração. Somos o povo cantado em cortejos Somos brincadeiras, luta em canção. Somos velhos sentados em canteiros, contando estórias de terreiros para crianças deitadas no chão. Somos o saber esculpido na memória dos MESTRES populares com suas oratórias que semeiam nossa imaginação. Somos - pelo perigo que corremos - teatro. Somos - pelo perigo que trazemos - teatro. Somos - pela alegria em que vivemos - teatro. Somos - Pela tristeza, pela dor que sentimos do outro, no outro, pelo outro - teatro. Somos - pelo abrigo do novo e do antigo - teatro. Somos por todos os atos - Somos teatro.

Manifesto elaborado pelos grupos CERVANTES do Brasil, Ciranduís e Ginga Faceira de Janduís-RN; Ar-te-ria e Abelhar de Felipe Guerra-RN; Sertão Vivo de Carnaúba dos Dantas-RN; ArteRiso de Umarizal-RN; Soltando a Voz, Semearte e Escuta de Fortaleza-CE, com fragmentos do poema “ A Título de Paixão” do poeta do Escambo Ray Lima