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sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Buraco d`Oráculo e seu tripé de sustentação

Por Adailtom Alves Teixeira, historiador e ator do Buraco d`Oráculo 

Ao longo desses dez anos o Buraco d`Oráculo cultivou experiências, parceiros, conquistas e, principalmente, uma estética própria. Desde o princípio o grupo tem um trabalho norteado por três elementos: a rua, o popular e o cômico. A rua como espaço cênico, o popular como universo de inspiração e o cômico como elemento provocativo e reflexivo.
Esse tripé de sustentação surgiu, já, no Núcleo de Teatro de Rua, coordenado por João Carlos Andreazza, em 1998. Joca queria construir uma dramaturgia para rua por meio das atividades propostas naquela oficina, pois para ele, a magia da rua reside em trabalhar no mesmo nível de quem assiste e foi nessa magia que embarcamos. Logo depois, partimos para o aprofundamento dos conceitos desse tripé quando encontramos Ednaldo Freire – grande mestre e conhecedor do cômico e do teatro popular. Uma década se passou e a nossa dedicação e estudo sobre essa linguagem perdura até hoje.
Esses três elementos dizem muito sobre o Buraco d`Oráculo, revela nosso posicionamento político, bem como nossa maneira de fazer arte, destinada a um público distante do centro urbano de São Paulo. Desde o início, a maior parte do público do Grupo tem sido os moradores dos bairros periféricos, aqueles que residem principalmente na parte leste da cidade de São Paulo. Público composto por populares e do qual fazemos parte (eu, Edson e Lucélia viemos desse ambiente) - daí o universo de inspiração ser nosso próprio público e sua cultura.
Quanto ao espaço cênico, a rua acabou sendo um destino natural, afinal é um ambiente democrático e propício ao jogo teatral, sendo também único espaço cênico possível em boa parte das comunidades por onde passamos, porque mesmo que a cidade cresça a cada minuto, o acesso à arte por parte de quem reside na periferia nos parece cada dia mais distante. No entanto, é importante frisar que a rua sempre foi uma opção, escolhemos ir e continuar nela. Com a existência de teatros e casas de espetáculos das mais variadas formas e tamanhos, a rua consolidou-se como escolha e não como ausência de alternativa. Estamos certos de que escolher a rua como palco é uma maneira também de escolher a quem se quer apresentar; e nós sabemos muito bem disso.
Assim como a língua e a ciência, o teatro também é uma estrutura viva que acompanha a evolução do tempo. Por entendermos o teatro como uma arte de seu tempo, nos coube refletir sobre a realidade popular em nossos espetáculos - nosso trabalho faz parte deste contexto e também se movimenta a caminho de um constante aprimoramento. E como a comicidade está presente nesse universo todo o tempo, este foi outro caminho natural para o Buraco d`Oráculo, afinal “o riso enraíza-se num contexto cultural do qual é, ao mesmo tempo, um componente e um elemento revelador” (MINOIS, 2003, p. 194).
Como o Grupo é uma soma literal de prática e teoria – característica presente em nossos espetáculos e nas oficinas que ministramos, bem como em nossos projetos, exemplo disso são os núcleos que criamos durante o Circular Cohab`s –, nossos anos de estrada (digo, de rua), nos permite discutir os três elementos (a rua, o popular e o cômico) de forma mais específica, procurando detalhar como o Buraco d`Oráculo entende cada um. Estudamos, testamos e aplicamos esses elementos com base em alguns autores e profissionais que enriqueceram nossa trajetória.

A rua 
Os alicerces da história do Buraco d`Oráculo foram construídos “com” e “no” teatro de rua. Um tipo de teatro que, segundo André Carreira (2007), existe desde que surgiu a cidade, portanto, é possível deduzir que teatro de rua e cidade sempre estiveram interligados de alguma forma, muito embora ambos modificaram-se ao longo dos tempos.
É importante ressaltar que rua tem significado amplo no contexto do teatro. Uma das formas de traduzir isso é dizer que a rua é todo espaço aberto no qual pode acontecer um espetáculo teatral. Isso significa que pode ser uma rua, uma praça, um parque ou qualquer outro espaço livre. Na verdade, com a perpetuação do fenômeno das metrópoles, está ficando cada vez mais escassa a possibilidade de apresentação de um espetáculo na rua. Os carros ganharam a preferência e ocuparam o lugar do pedestre.
Em seu livro Teatro de Rua: Brasil e Argentina nos anos 1980, André Carreira afirma que “o teatro de rua abarca todos os espetáculos ao ar livre que optam por ficar fora dos teatros convencionais e utilizam espaços urbanos apropriados temporariamente para o fenômeno teatral, permeáveis ao público acidental” (2007, p. 54). Já abordei o tema em 2008, na monografia A Rua Como Palco, em que cheguei a seguinte definição: “teatro de rua é uma manifestação marginal que utiliza o corpo e o discurso no espaço aberto urbano a serviço do estético, apropriando-se ou não da paisagem urbana como cenário, de maneira a permitir a fruição a um público passante” (2008, p.17).
Marginal, é para nós uma situação essencial, algo intrínseco ao nosso posicionamento político. O termo marginal é usado porque o teatro de rua se contrapõe às artes “oficiais” e, de certa forma, ao próprio modelo social capitalista. Para entendermos isso, basta refletir a rua como um local de passagem; é um escoadouro do capital, já que por ela circulam a mercadoria e a mão-de-obra que as produz. Quando um grupo – formado por atores, músicos, dançarinos ou de qualquer outra manifestação artística – se coloca em um espaço aberto lançando novo olhar sobre ele, breca essa circulação e faz das pessoas espectadores de uma obra, ou seja, fruidores do teatro. Portanto, observando por este prisma, o teatro de rua está à margem do sistema.
Ainda que o teatro de rua venha a ser aceito, tolerado, cabe lembrar que “esta tolerância está marcada por uma atitude discriminatória que permanentemente situa este teatro no seu lugar de marginalidade, que é um lugar de enfrentamento com o padrão cultural dominante” (CARREIRA, 2007, p. 41). Pois, como já foi dito, ele rompe – ainda que por um curto período de tempo – com a lógica do sistema capitalista, já que não há cobrança de ingressos, interfere no trânsito das pessoas criando uma nova percepção daquela geografia e transformando os passantes em espectadores. Certas vezes, parte desse público, que também é marginal, ganha um papel: o papel de coadjuvantes, ao participarem, consciente ou inconscientemente, em alguns de nossos espetáculos.
Ainda falando de rompimento, André Carreira nos chama a atenção para um duplo caráter do espectador na rua, ele é espectador e “agente desordenador do espaço social” (2007, p. 64-5), isto é, o espaço também perde seu sentido primário de circulação, já que o público, ao colocar-se em volta de um grupo teatral, interrompe essa circulação, prejudicando o livre trânsito. Talvez por isso haja, muitas das vezes, enfrentamento do poder público com os grupos de teatro de rua, já que são eles (poder público) que zelam pelo bem estar dos espaços e entendem que esse rompimento, essa desorganização não deve ocorrer.
Por tudo isso, o teatro feito na rua se contrapõe ao realizado no espaço fechado, isto é, existe uma evidente oposição entre o palco à italiana e o teatro de rua ou entre o espaço fechado e o aberto. Para Amir Haddad “espetáculos e arquitetura estão intimamente ligados”, assim, esses teatros arquitetônicos foram construídos de acordo com os valores e as necessidades de quem os construíram, dessa forma o que se faz nesse teatro, bem como os atores, está “de acordo com estes interesses, valores ou necessidades” (2005, p. 61). Assim, o palco à italiana, por ter sido construído pela burguesia, estaria de acordo com os valores burgueses, já o espaço aberto, por não ter o impedimento arquitetônico, pode ser um teatro de todos.
Sem dúvida o teatro de rua é democrático, já que não há restrição, basta que o público esteja no local em que o grupo se coloca, não sendo preso por qualquer obstáculo, podendo inclusive sair a hora que bem entender, já que a única coisa que o segura é o interesse que o espetáculo venha despertar. O Buraco d`Oráculo pensou em seus destinos e fez suas escolhas. Levamos nossos espetáculos para o centro de São de Paulo, entramos na Estação Brás, desembarcamos na Praça do Forró e circulamos pelas Cohab`s (Conjuntos Habitacionais). Em cada um destes ambientes, trabalhamos o que Haddad resume da seguinte forma: “Pensar o espaço, o local dos espetáculos, e associado a isto pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador é também pensar o mundo” (2005, p. 62).
É importante ressaltar que o Buraco d`Oráculo não se coloca contra o palco à italiana, pois entende que teatro é uma opção e todos tem o direito de fazer o teatro que quiser e onde quiser. Queremos deixar claro, no entanto, a oposição histórica presente entre esses dois espaços. Com a percepção dessa oposição é possível discutir a questão do acesso, seria importante que a população tivesse acesso ao teatro em suas várias formas e nos mais diversos espaços, mas enquanto isso não é uma realidade o teatro de rua pode facilitar o acesso aos cidadãos que estão distantes dos equipamentos culturais, distantes geograficamente, economicamente e culturalmente.
Esta uma década de teatro de rua do Buraco d`Oráculo permitiu o acesso a milhares de pessoas que nunca havia tido contato com essa arte. Somente no Circular Cohab`s, projeto que recebeu toda nossa dedicação de 2005 a 2007, atingimos um público de mais de trinta mil pessoas, e em todas as comunidades, centenas de pessoas jamais tinham assistido a uma peça teatral. Lembro que, no início, nossa chegada causou estranheza. No primeiro fim de semana nosso público era formado por poucas pessoas; no segundo, àqueles da semana anterior apareciam acompanhados por outros e dias depois passamos a ser assistidos por centenas de pessoas. Eis mais um dos aspectos a ser enaltecido no teatro de rua: a capacidade de se deslocar por toda a cidade sem tornar precário o espetáculo, sem prejudicar-se técnica ou esteticamente.
Outro aspecto do teatro de rua é que atores e espectadores estão no mesmo nível, um não está acima do outro, tornando a rua, através do espetáculo, uma ágora, isto é, um espaço de debate e reflexão. Os atores jogam para o público, estes por sua vez também jogam para os atores, daí a grande interferência nos espetáculos em espaços abertos. Dependendo da proposta, é justamente esse jogo que alimenta o espetáculo. Para o Buraco d`Oráculo a interferência sempre foi bem-vinda, já que muitos de seus espetáculos são provocativos, necessitando, portanto desse jogo.
O debate de temas de nosso cotidiano esteve sempre presente nos textos que escolhemos. Na rua, podemos tocar nas relações humanas e na forma como elas acontecem. Quando se apresenta o espetáculo, debatendo, discutindo um problema, este se coletiviza, torna-se social. O teatro cumpre aí uma função importante para a sociedade, já que deve mobilizar os assistentes, (co)movê-los (mover junto) em torno de seus problemas, bem como de suas angústias.
Por tudo isso o Buraco d`Oráculo optou pelo teatro de rua, buscando compreender como essa arte pode contribuir com a discussão do homem em seu espaço e seu tempo e, assim, contribuir com a sociedade no qual estamos inseridos. Desde o princípio já foram oito espetáculos levados para os espaços abertos, todos tendo como centro o homem urbano comum.

O popular 
Muito embora tenhamos consciência de que a cultura popular esteja “longe de ser um conceito bem definido pelas ciências humanas” (ARANTES, 1995, p. 7), “o popular” é parte de nossa sustentação enquanto estética. Ao buscarmos sua definição, desvendemos que o adjetivo popular pode “deslizar para um outro que encobre efetivamente a contradição e a luta: o adjetivo ‘nacional’, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida, consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade e que permita a esta última ver-se imaginariamente unificada” (CHAUÍ, 2003, p. 43).

Pudemos entender melhor as facetas da cultura popular com a orientação de Ednaldo Freire. Muitas das vezes cultura popular é também confundida com folclore, forma que alguns cientistas encontraram para aprisionar os saberes populares, mas o Grupo tem consciência de que a cultura é dinâmica e que são plurais, merecendo saber sempre qual o contexto, o tempo, o lugar e qual grupo social ao qual estamos nos referindo. Pois “se considerarmos a cultura como ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essas relações, a própria noção de cultura é avessa à unificação” (CHAUÍ, 2003, p. 45).
Assim sendo, “fazer teatro, música, poesia ou qualquer outra modalidade de arte é construir com cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com suas roupagens identificadoras particulares, e concretas, o que é mais abstrato e geral num grupo humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação na produção da sociedade” (ARANTES, 1995, p. 78). Nesse sentido é importante questionar: se cultura popular vem do povo, de qual povo o Buraco d`Oráculo tira suas referências?

Procissão de santo, zabumba, literatura de cordel, quadrilha e culinária a base de milho, mandioca, coco ou azeite. Tudo isso nos é familiar. Os integrantes do Buraco d`Oráculo são nordestinos ou filhos de nordestinos. Não há como negar que a constituição da identidade de cada um de nós perpassa a cultura nordestina. Somado a isso, somos todos da periferia de São Paulo, assim como grande parte de nosso público, e temos aí uma cultura urbana, por tratar-se de uma cidade, aliás, uma megacidade. Esses são, portanto, os elementos constitutivos da identidade do Grupo e de seu público principal. De certa forma, esses elementos (outras culturas) se fundem muitas das vezes – trata-se de uma cultura transformada ou transposta de uma área rural ou de outra região do País para um grande centro urbano (São Paulo), uma cidade global, ganhando assim novas conotações e novos aportes.
No fundo, a definição é muito mais simples e está longe do academicismo: o trabalho do Buraco d`Oráculo é fortemente influenciado pela cultura de seus membros, bem como pela região que habitam. Nossa arte busca dialogar com a realidade na qual estamos inseridos. O popular aí, nada mais é, do que esta realidade cultural. Como nossa linguagem é calcada sobre um tripé, essa questão do popular complementa o que buscamos e encontramos na rua: o debate sobre o homem urbano.
Em nossa vivência profissional, o contraponto da cultura popular pode ser exemplificado com alguns de nossos trabalhos. O primeiro espetáculo A Guerra Santa, discutia a manipulação da fé por líderes religiosos na relação com as pessoas mais simples e de como a fé vinha sendo transformada em mercadoria. Já em Amor de Donzela, Olho Nela! a discussão era sobre a esperteza do mais pobre, muita das vezes única arma que tem para defender-se contra o sistema. Quem Pensa Que Muito Engana Acaba Sendo Enganado! trouxe para a cena dois nordestinos, recém chegados a uma grande cidade, que buscavam sobreviver na mesma. O Cuscuz Fedegoso, por sua vez, repete o tema da sobrevivência e de como os populares, as pessoas simples, mesmo na informalidade, sobrevivem na cidade. Este último tinha uma forma muito especial de explicitar as nuances daqueles que são denominados populares, pois o espetáculo mostrava uma raizeira, uma vendedora ambulante e um pedinte, todos repreendidos pelo Estado, presente na figura do policial autoritário. Percebemos os dois universos culturais, seja o nordestino, seja a periferia paulistana. Na maioria das vezes esses dois universos estão juntos, como nos dois últimos espetáculos citados. Sempre apresentados de forma cômica e crítica, pois como adverte Marilena Chauí, a ideologia dominante perpassa todas as classes, por isso “o autoritarismo se encontra presente tanto nas manifestações culturais dominantes quanto nas dominadas” (2003, p. 62). Todas as personagens tem defeitos, daí o universo da farsa, já que uma de suas características é todos querendo enganar a todos o tempo todo. Refletir sobre essa realidade, isto é, sobre a enganação, é discuti-la criticamente.
Portanto, popular para o Buraco d`Oráculo, diz respeito a formação cultural de seus integrantes e da população na qual o Grupo está inserido, bem como suas manifestações, sua forma de se organizar, seus problemas e suas maneiras de lidarem com estes problemas. Por fim, de forma mais antropológica, se “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado” (LARAIA, 2005, p. 45), o Buraco d`Oráculo, mesmo sendo um coletivo não foge à regra, ainda que questione e discuta também essa regra, ou seja, nosso teatro é resultado do meio cultural no qual estamos inseridos.

O cômico
Assim que saimos do local onde nos preparamos e aparecemos para o público, sentimos as reações. De alguns despertamos um sentimento de estranheza, de outros arrancamos risos e de outros ainda as duas coisas juntas! Com isso chegamos ao terceiro elemento presente em todos os trabalhos do Buraco d`Oráculo - o cômico, acompanhado de elementos farsescos e grotescos. Temos muito a falar sobre o processo de produção do cômico, mesmo que este, embora presente em todas as produções humanas e, principalmente nos grandes artistas, sempre foi considerado um gênero menor, a começar por Aristóteles em sua Poética.
Aprendemos que o cômico está presente no gênero dramático, mas é também, um fenômeno antropológico, como bem nos mostra Patrice Pavis, por isso “não se limita ao gênero da comédia”, já “que pode ser apreendido por vários ângulos e em diversos campos” (1999, p. 58). Poderíamos até nos aprofundar mais, porém o que nos interessa aqui é como se dá a produção do cômico no gênero dramático e sabermos a que serve.
A maneira de se produzir um efeito cômico é através da contradição, “o efeito cômico surge de algo que se espera intensamente e que se resume em um exagero” (VÁZQUEZ, 1999, p. 265), por isso desvaloriza o objeto ou pessoa envolvida na situação, por isso o cômico funciona criticamente. “Enquanto que a ordem estabelecida se ampara na seriedade e solenidade para se legitimar, o riso mina seus alicerces” (VÁZQUEZ, 1999, p. 272).
Rir é próprio do homem. Como bem disse Aristóteles, o homem é um único animal que ri; complementado por Millôr Fernandes, ao afirmar que é rindo que mostra o animal que é. O fato é que o riso subverte, “por isso nas sociedades fechadas, autoritárias, a cesura se irrita com a comicidade que o suscita” (VÁZQUEZ, 1999, p. 272). Por isso Bergson afirmou que o riso destina-se “à inteligência pura” (1983, p. 12). Sabe-se que o riso é crítico, pois exige de quem ri distanciamento da situação da qual se ri, não há, portanto, envolvimento emocional.
Em sua crueldade crítica, o riso precisa de eco, isto é, o efeito cômico parece ter mais força em grupo. Embora o efeito cômico possa ocorrer tanto na vida como na arte, o que nos interessa é a segunda. Na arte o cômico é “sempre criação ou invenção, os personagens, atos ou situações criados têm sempre a ver com a comicidade na vida real como vertente essencial da existência humana. (...) O cômico na arte e na literatura tolera a deformação, a ruptura com o real até os extremos da sátira ou da caricatura, mas sem que o real deixe de estar presente” VÁZQUEZ, 1999, p. 275).
Essa ligação com a vida e com o real é fundamental, pois se o riso é crítico, nós rimos de algo que conhecemos, jamais rimos do desconhecido. Ou seja, a criação teatral precisa ter vínculos com o real, com a realidade que representa, ainda que caricaturescamente. Buscamos isso constantemente, em todos os nossos espetáculos. Para Pavis, “no teatro, a situação cômica advém de um obstáculo dramatúrgico contra o qual se chocam as personagens, conscientemente ou não” (1999, p. 59) O riso se produz justamente pela condição distanciada de quem observa, esse distanciamento o coloca em uma posição superior ao que e a quem vê, por isso quando o que é esperado não acontece, provoca a surpresa e o riso, ou seja, o real é revelado e o irreal ou o prometido, desmascarado.
Dentre os gêneros dramáticos a farsa oferece inúmeras possibilidades de utilização do cômico. Ainda que inicialmente esta não tenha sido uma escolha consciente, já que suas propostas de espetáculos partem da observação do mundo a sua volta e de temas que discutam o observado, foi justamente este gênero que o Buraco d`Oráculo mais trabalhou em seus dez anos. Consequentemente, todos os nossos espetáculos são farsescos.
Para Margot Berthold, as origens da farsa remontam as festas dos bufões e as recitações dos menestréis na Idade Média e este gênero teria entrado para história do teatro com A Farsa do Advogado Pathelin, texto adaptado e montado pelo Buraco d`Oráculo em 2006, mas que teve sua primeira apresentação em 1465. Ainda segundo Berthold, “a crítica social e a sátira encontraram uma benvinda (sic) válvula na farsa”, que “vivia da astúcia verbal, não importando se seu palco fosse montado numa sala pública, num auditório da universidade, numa casa particular ou no palácio arcebispal” (2001, p. 256). Para Georges Minois, no seu livro História do Riso e do Escárnio, o riso farsesco é a maneira que os indivíduos encontram para estravasarem seus medos e angústias, “é o único meio de o indivíduo ter uma desforra sobre as coletividades nas quais ele é integrado à força e que o oprimem e protegem, ao mesmo tempo: paróquia, religião, família, senhoria, corporação, bairro...” (2003, p. 204).
Embora a farsa seja muito teatral, exigindo bastante do trabalho corporal do ator, segundo Patrice Pavis, ela “sempre é definida como forma primitiva e grosseira que não poderia elevar-se ao nível da comédia” (1999, p. 164). Não concordamos com a hierarquia colocada pelo autor, de qualquer forma, isso faz com que adentremos um outro aspecto trabalhado pelo Buraco d`Oráculo, sua estética grotesca, esta também desvalorizada frente à outras categorias estéticas.
O grotesco é, via de regra, pouco conhecido e pouco debatido. Os estudos mais conhecidos são os de Kayser (O Grotesco), Bakhtin (A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais) e Muniz Sodré (A Comunicação do Grotesco; O Império do Grotesco). Para este último, partindo de Aristóteles, ele define categoria estética como uma organização dos elementos internos de uma obra, constituída, por sua vez, de quatro pontos: equilíbrio de forças; reação afetiva (para o grotesco a reação do espectador seria de “espanto e riso”); valor estético (diferenciação valorativa da obra) e; trânsito estético (uma categoria não pode está presente somente em um tipo de arte; o grotesco está presente em todas as produções artísticas do homem) (2002).
Mas o que vem a ser grotesco? Para Patrice Pavis “é aquilo que é cômico por um efeito caricatural burlesco e estranho” (1999, p. 188). Já para Muniz Sodré, é “um tipo de criação que às vezes se confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e que quase sempre nos faz rir” (2002, p. 19). Por isso mesmo, “a categoria do grotesco nunca contou com a aprovação da estética classicista que fazia girar o universo estético em torno do belo” (VÁZQUEZ, 1999, p. 285).
O grotesco está muito presente nas manifestações populares, por isso Bakhtin estudou o popular da Idade Média e do Renascimento através da obra de Rabelais, pois, para ele, o popular é mal compreendido e pouco estudado. Em sua investida pelo conhecimento da arte grotesca, Bakhtin busca conclusões sobre o mundo rabelaisiano ou da cultura popular, que é um mundo carnavalizado, uma espécie de segunda vida do povo. “É a sua vida festiva.” Não se assiste ao carnaval, mas se vive e essa vida se constrói “como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’.” Por isso “o riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo.” É também universal, já que atinge todos e, por fim, é “ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (1987, p. 10).
É interessante como neste mundo carnavalizado os populares criavam um vocabulário próprio, com grosserias e palavrões, era uma forma de eliminar “diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e eliminando regras e tabus vigentes na vida cotidiana.”[1] O que impera é a vida material e corporal, por isso o grotesco é carregado do baixo corporal e do hiperbólico. “O seu traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1987, p. 17).

Vejam que o cômico, terceiro elemento de nosso tripé, é constituído da farsa e do grotesco, que partem do real. Afinal de contas, só se rir do que se conhece, por isso a platéia é crítica, pois estão distanciados, não envolvidos emocionalmente com o que vêem e criticam, daí a função social do riso. Por sua vez o grotesco serve justamente para rebaixar aquilo que é elevado ou que se julga elevado, o grotesco faz descer à terra, provocando um riso ambivalente, isto é, destrói o antigo para que nasça o novo regenerado.

Diante dessa grande radiografia, é possível perceber que fizemos escolhas difíceis. Optamos pela forma teatral marginal (teatro de rua), pelo trabalho com o cômico (que ao longo dos tempos tem sido considerado um gênero menor), pela produção do riso (de acordo com o real e o conhecido) e pela estética grotesca (pouco estudada e pouco aceita diante do império do belo). O gênero teatral trabalhado nesses dez anos é marginal, trata-se da farsa. Não podemos afirmar que isso é definitivo, mas até o momento, todos os nossos espetáculos foram farsescos.
E a cara de nosso público? Estes nossos grandes incentivadores e prestigiadores têm sido, em sua enorme maioria, àqueles que estão à margem, à margem dos bens culturais, à margem das políticas públicas, são os moradores da periferia leste da cidade de São Paulo. As caracteríticas daqueles que nos assistem concretizam o caráter marginal de nosso jeito de fazer teatro. Toda essa marginalidade nos enche de orgulho, porque é muito coerente com a nossa história, um grupo que formou-se também à margem dos padrões (escolas e universidades) e corresponde com os nossos valores, com o que acreditamos. Toda essa marginalidade foi justamente o que nos sustentou ao longo desses dez anos de existência e nos fará ir além.
Somos três atores, três diferentes indivíduos, que deram ao Buraco d`Oráculo uma única impressão digital, uma marca desenhada sobre o tripé formado pela rua, pelo popular e pelo cômico. Esta é nossa identidade estética.

Bibliografia 
ALONSO, Aristides. “O Grotesco: transformação e estranhamento.” In: Comum. Rio de Janeiro: v.6, nº 16, 2001. Disponível em: www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum16/pdf/Ogrotesco.pdf, consultado em: 01/10/08.
ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. 14ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Primeiros Passos, 36)
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad.: Nathanael C. Caixeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad.: Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARREIRA, André. Teatro de Rua (Brasil e Argentina nos anos 1980): uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo & Rosthschild Editores, 2007.
CHAUÍ, Marilena Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 10ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
HADDAD, Amir. “Espaço” In: TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (org.). Teatro de Rua: Olhares e perspecitivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad.: Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad.: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite a Estética. Trad.: Gilson Baptista Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
TEIXEIRA, Adailtom Alves. A Rua Como Palco: o teatro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. São Paulo, 2008. 71 f. Monografia do curso de História da UNICSUL.

Notas
[1] ALONSO, Aristides. “O Grotesco: transformação e estranhamento.” In: Comum. Rio de Janeiro: v.6, nº 16, 2001, p. 66. Disponível em: www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum16/pdf/Ogrotesco.pdf, consultado em: 01/10/08.

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