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sábado, 4 de julho de 2009

A rua, o popular e o cômico na trajetória do Buraco d`Oráculo

Por Adailtom Alves – Histriador e ator do grupo

Desde o princípio o Buraco d`Oráculo tem um trabalho norteado por três elementos: a rua, o popular e o cômico. A rua como espaço cênico, o popular como universo de inspiração e o cômico como elemento provocativo e reflexivo. Os três elementos revelam nosso posicionamento político, nossa maneira de fazer arte e mostra como refletimos sobre o contexto no qual estamos inseridos.

A rua 
Se as cidades são grandes mercados, a rua, na sociedade capitalista, é um escoadouro do capital, por onde circulam as mercadorias e a mão-de-obra. Quando o teatro se coloca nesses ambientes rompe com essa lógica, pois dar novo significado e torna o transeunte um espectador, um fruidor da arte teatral.

Por isso entendo teatro de rua como uma manifestação marginal que utiliza o corpo e o discurso no espaço aberto urbano a serviço do estético, apropriando-se ou não da paisagem urbana como cenário, de maneira a permitir a fruição a um público passante.

O teatro de rua é marginal porque se contrapõe as artes “oficiais” e, de certa forma, ao próprio modelo social capitalista, já que freia, ainda que por instantes, a circulação da mão de obra, desordenando o espaço público, pois ao juntar as pessoas em torno de uma apresentação, a rua perde o seu sentido originário de circulação e ganha um novo, permitindo a relação estética. Além disso, não há cobrança de ingresso – outra lógica capitalista –, o espectador está preso apenas pelo interesse que o espetáculo desperta.

Outro ponto interessante do teatro de rua é o acesso. Ao longo desses dez anos o teatro de rua do Buraco d`Oráculo permitiu o acesso a milhares de pessoas que nunca haviam tido contato com essa arte, só no Circular Cohab`s, projeto realizado de 2005 a 2007, atingiu-se um público de mais de trinta mil pessoas e a cada comunidade por onde o Grupo passou, centenas de pessoas nunca haviam assistido a nenhuma peça teatral. Esse é um aspecto que deve ser enaltecido no teatro de rua: a capacidade de se deslocar por toda a cidade sem se prejudicar técnica ou esteticamente.

O popular
Outro aspecto do trabalho do Buraco d`Oráculo é o popular. Embora, muitas das vezes cultura popular seja confundida com folclore, o Grupo tem consciência de que a cultura é dinâmica e que são plurais, merecendo saber sempre qual o contexto, o tempo, o lugar e qual o grupo social ao qual estamos nos referindo. Assim sendo, é importante questionar: se cultura popular vem do povo, a que povo refere-se o Buraco d`Oráculo?

Seus integrantes são nordestinos ou filhos de nordestinos, portanto na constituição da identidade de cada um deles perpassa a cultura nordestina. São todos moradores da periferia de São Paulo, assim como grande parte de seu público, temos aí uma cultura urbana periférica. Esses são, portanto, os elementos constitutivos da identidade do grupo e de seu público principal.

No fundo a definição é muito mais simples, está longe do academicismo, ou seja, o trabalho do Buraco d`Oráculo é fortemente influenciado pela cultura de seus membros, bem como pela região que habitam. Sua arte busca dialogar com a realidade na qual estão inseridos. O popular aí, nada mais é do que esta realidade cultural da qual fazem parte os atores e o seu público. Nosso teatro é fruto do meio cultural no qual estamos inseridos.

O cômico
Para Bergson o riso destina-se “à inteligência pura” (1983, p. 12), por isso é crítico. Exige de quem ri distanciamento da situação da qual se ri, não há envolvimento emocional. Em sua crueldade crítica, o riso precisa de eco, isto é, o efeito cômico parece ter mais força em grupo. O cômico necessita da ligação com a vida, com o real, pois se o riso é crítico, nós só rimos do que conhecemos, jamais rimos do desconhecido. Ou seja, a criação teatral precisa ter vínculos com o real, com a realidade que representa, ainda que caricaturesca.

Dentre os gêneros dramáticos a farsa oferece inúmeras possibilidades de utilização do cômico. Foi justamente este gênero que o Buraco d`Oráculo mais trabalhou. Para Georges Minois, no seu livro História do Riso e do Escárnio, o riso farsesco é a maneira que os indivíduos encontram para estravasarem seus medos e angústias, “é o único meio de o indivíduo ter uma desforra sobre as coletividades nas quais ele é integrado à força e que o oprimem e protegem, ao mesmo tempo: paróquia, religião, família, senhoria, corporação, bairro...” (2003, p. 204).

Além da farsa, utilizamos elementos grotescos, muito presente nas manifestações populares. O teórico russo Mikhail Bakhtin estudou o popular da Idade Média e do Renascimento através da obra de Rabelais, para ele o mundo rabelaisiano ou da cultura popular, é um mundo carnavalizado, uma espécie de segunda vida do povo. “É a sua vida festiva.” Não se assiste ao carnaval, mas se vive e essa vida se constrói “como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’.” Por isso “o riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo.” É também universal, já que atinge todos e, por fim, é “ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (1987, p. 10).

Os elementos cômicos trabalhados pelo Buraco d`Oráculo – a farsa e o grotesco – partem do real, um real deformado, caricaturesco. Por isso a platéia identifica-se, reconhece, mas mantém-se distante, levando-os a um riso crítico, sem envolvimento emocional. Por sua vez, o grotesco é aí preponderante como elemento rebaixador de tudo aquilo que é elevado ou que se julga elevado, provocando um riso derrisório e ambivalente, isto é, destrói o antigo para que nasça o novo regenerado.

Como é possível perceber o grupo Buraco d´Oráculo fez escolhas difíceis. Escolheu uma forma teatral marginal (teatro de rua), trabalhando o cômico, que ao longo dos tempos tem sido considerado um gênero menor, sendo que sua produção dar-se através da estética grotesca, pouco estudada e pouco aceita diante do império do belo. Por fim, o nosso público tem sido, em sua enorme maioria, aqueles que também estão à margem, à margem dos bens culturais, à margem das políticas públicas, pois como bem advertiu Milton Santos, o destino do pobre é sempre a periferia. Mas toda essa marginalidade nos enche de orgulho, porque é muito coerente com a nossa história, um grupo que teve seus membros também formados à margem dos padrões culturais vigentes (escolas e universidades). Se essa marginalidade nos sustentou ao longo desses dez anos, nos fará ir além.

Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad.: Nathanael C. Caixeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. Trad.: Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: UNESP, 2003. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 5ª ed. São Paulo: Nobel, 2000.

Publicado originalmente na revista do Centro de Pesquisa para o Teatro de Rua – Rubens Brito, caderno 1, 2008, p.35-5. Revisto 02/07/09 para esta publicação.

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