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domingo, 31 de julho de 2016

Dramaturgia contemporânea: teatro de rua e de espaços fechados

Licko Turle
INTRODUÇÃO

Este trabalho foi elaborado a partir das aulas teóricas do professor José da Costa sobre o espetáculo Os Sertões, de Zé Celso e o Teatro Oficina, que atuaram sobre mim como uma espécie de ‘provocação’, atiçando a curiosidade e levantando questões sobre o meu objeto de pesquisa – o grupo Tá Na Rua - no que se refere à sua origem e aos seus princípios. Sendo Amir Haddad um dos fundadores do Teatro Oficina, foi inevitável fazer conjecturas e comparações entre o pensamento deste com aquele teatrólogo, observando semelhanças e diferenças existentes no trabalho de ambos, cinqüenta anos após terem realizado, juntos, as suas primeiras experiências teatrais, quando dividiam, ainda em 1957, os bancos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na cidade de São Paulo.
Tais experiências tiveram início com a montagem amadora de Cândida, de Bernard Shaw, encenada no Colégio São Bento (SP), onde foi criado o Teatro Oficina. Amir Haddad foi o seu primeiro diretor, tendo dirigido as peças A Ponte, de Carlos Queiroz Telles, e Vento forte para papagaio subir, de José Celso Martinez Corrêa. Foi premiado como melhor diretor no Festival de Teatro de Estudantes de Santos (SP), organizado por Paschoal Carlos Magno em 1959, com A Incubadeira, de José Celso Martinez Corrêa, que ainda ganhou, neste festival, o prêmio de melhor texto.
Amir Haddad dirigia As Moscas, de Jean–Paul Sartre, quando ocorreu o seu desligamento do grupo, e José Celso assume, então, a função de diretor. As circunstâncias que levaram à sua saída do Teatro Oficina tiveram os contornos de um rompimento, cujos motivos estariam ligados a divergências com relação aos rumos do trabalho do Teatro Oficina. Como pano de fundo, uma surda disputa pela direção e pelo controle do grupo, que pode ser notada em depoimentos dos envolvidos no episódio, como nesta declaração de José Celso:

Demos um golpe no Amir Haddad, fizemos uma sacanagem com ele, não me lembro muito bem como, mas passava por aquele negócio de ata e tal. O Amir era o chefe dos outros e nós demos um golpe para destituí-lo, para botar tudo terra abaixo. A gente tinha que agir, inclusive não importando os meios, as maneiras.  (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p. 30)

Em Depoimento ao SNT (1982), Haddad afirma que seu processo de afastamento do grupo se deu durante um trabalho de co–produção entre o Teatro Oficina e o Teatro Arena, para a montagem de Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Augusto Boal, do qual Amir não participou. Sua ausência da equipe deste trabalho já explicitava os primeiros sinais de divergência:
A ligação Arena–Oficina não deu certo porque as propostas do Oficina estavam muito ligadas ao TBC. Zé Celso voltou para o Oficina para seguir a trajetória dele e eu fiquei de fora. A divisão entre a gente estava clara, mas só vim me dar conta disso no dia em que cheguei no Oficina e a fechadura tinha sido trocada. (HADDAD, Depoimento ao SNT, 1982, p. 21).

Em recente entrevista[1], Amir Haddad fala de seu período no Teatro Oficina e suas relações com Zé Celso:

Eu era um garoto recém chegado do interior, estava em São Paulo a três, quatro anos e caí dentro do teatro atraído pela efervescência cultural da cidade de São Paulo: o Teatro Brasileiro de Comédia, a indústria automobilística, tudo isso que fez o Brasil da década de 50 (...) e fazer teatro era uma coisa inevitável, mesmo não tendo pensado nisso (...) Eu queria ser ator e eles determinaram que eu seria diretor; o Renato Borghi falou: ‘você vai dirigir!’ e eu dirigia... (...) O Zé Celso também já estava por perto, mas ele não fez nada nessa época; eu dirigi Cândida, de Bernard Shaw, e daí fui para o Oficina. E eu fui levando o Oficina sem nenhum projeto, fui dirigindo um grupo de teatro.  
(...) Um dia, houve um ensaio que eu tive que faltar e (...) quando eu voltei, fiquei admirado com o acabamento da cena, com o cuidado que [Zé Celso] tinha tido, e a mão forte dele em cima dos atores; eu vi que ele sabia, nesse sentido, muito mais de direção do que eu.
A gente pode falar [hoje] de uma diferença fundamental que determinou os dois caminhos (...) Essa diferença ficou evidente para mim [naquele momento]; o meu rolava frouxo e o dele rolava forte, pesado, amarrado, conduzido com uma liderança muito forte em cima do ator, entende? E isso não era uma busca minha consciente; eu não ia falar: ‘ah, Zé Celso, eu sou de outra linha’, mas ao longo dos anos essa diferença foi se fazendo (...) Depois que eu saí, ele levou com muita força o Oficina, fazendo espetáculos tradicionais ou não, mas levou com muita força, porque tinha alguma coisa na cabeça  a esse respeito, e eu não tinha nada (...)
O Zé Celso sabia mais do que eu; é provável que ele já tivesse uma idéia de espetáculo, [pois] trabalhava dentro do realismo psicológico americano (...)
Eu acho que isso só foi desaparecer em O Rei da Vela; só aí o Zé Celso rompeu com essa possibilidade (...) Ele estourou e eu fiquei encantado, porque aquilo batia na minha sensibilidade: era desorganizado, os atores falavam com a platéia, tinha muito palavrão. Então, aquela competência do Teatro Oficina, aquele psicologismo de Os pequenos burgueses, aquela finalização exata, aquela coisa toda, morreu. Como se o Zé Celso também falasse: ‘Chega de fazer teatro! Agora eu quero fazer teatro! Chega de TBC, eu vou descobrir qual é o meu caminho’. Entende? E nós dois fomos, mas eu numa reta e ele em outra.
 (...) Eu fui abandonando qualquer condicionamento, qualquer fechamento e fui pra rua (...) Embora o Zé Celso toque nesse grande espetáculo armado, ele permanece no espaço fechado e não perde a idéia de ‘teatro’ nunca.


         Desse modo, Amir Haddad estabelece a diferença que iria, mais tarde, tornar-se fundamental entre as suas propostas teatrais e as de José Celso – a questão do espaço – analisada, aqui, como um dos elementos do espetáculo Dar não dói... O que dói é resistir, encenado pelo grupo Tá Na Rua sob a sua direção. 

DAR NÂO DÓI, O QUE DÓI É RESISTIR! e OS SERTÕES
Uma aproximação possível: semelhanças e diferenças

Dar não dói... O que dói é resistir! - que passarei a grifar somente DND - foi um espetáculo construído e realizado pelo grupo de teatro Tá Na Rua, do Rio de Janeiro, e dirigido por Amir Haddad, entre junho de 2003 e dezembro de 2006. Foi escolhido como o objeto deste trabalho por várias razões: é um marco referencial na história do grupo, que comemorou 25 anos em 2005; foi assistido por públicos diversos e por um grande número de pessoas, em distintos espaços do Rio de Janeiro, Brasil e exterior[2], recebendo destaque na imprensa[3]; representa também, para seu diretor, a síntese das experimentações de dramaturgia para espaços abertos, em termos da concreção da linguagem teatral e das propostas ética e estética que o Tá Na Rua vem buscando desde 1980.
Entretanto, o principal motivo dessa escolha é que DND coloca, através do seu discurso teatral, grande parte das questões abordadas no curso Os Sertões do Teatro Oficina e aspectos da cena contemporânea: dramaturgia, imagem, corpo e espaço, ministrado no primeiro semestre de 2007, pelo Prof. Dr. José da Costa, dentro do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO.
Das reflexões e discussões realizadas em aula, que estabelecem relações nítidas com este espetáculo, destacam-se: as idéias de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1995) e as figuras conceituais do Rizoma e do Corpo Sem Órgãos; as questões relativas à crise da encenação no teatro contemporâneo, com as considerações sobre o teatro épico e reflexões sobre a memória em Freud, sob o olhar de Jacques Derrida (2005); a possibilidade de se fazer uma análise comparativa de natureza arqueológica, como propõe Michel Foucault em sua Arqueologia do Saber (2007); a necessidade, a partir de uma obra ‘aberta’ como a que está sendo enfocada aqui, de se rediscutir o próprio termo ‘estética’, com base na ‘partilha do sensível’ e no regime de pensamento sobre a arte que Jacques Rancière (2005) denomina, paradoxalmente, de ‘estético’; e, principalmente, a notável semelhança com que as questões suscitadas por DND aproximam-se daquelas reveladas pelas análises do ciclo de Os Sertões, realizadas pelo prof. José da Costa sobre o projeto homônimo de José Celso Martinez Corrêa e o Teatro Oficina.
Em seu artigo “Zé Celso e Euclides da Cunha: Os Sertões do Teatro Oficina” (2006), Da Costa afirma que este coletivo atinge o propósito de fender o texto original, fazendo-o não através de uma estrutura discursiva dialogada, mas, sim, de vocalizações, as quais terminam por revelar paralelamente o próprio Teatro Oficina, com suas visões e posicionamentos:
 Poderíamos, ao contrário dessa alternativa dramática, aproximar a leitura teatral de Zé Celso da mera vocalização, da elocução em voz alta de um texto qualquer para certos ouvintes. Esta percepção do trabalho teatral do Oficina com Os Sertões como quase o de uma pura leitura em voz alta nos é facultada pelo fato de que, quase sempre, é o próprio texto de Euclides da Cunha que os espectadores ouvem sendo falado ou cantado ao longo dos espetáculos do ciclo euclidiano” (...) (DA COSTA, 2006, pág. 04).

Este texto paralelo não é construído explicitamente, por palavras e discursos acrescentados. Segundo o autor, ele é percebido preponderantemente por meio de ressonâncias, formando um texto mais ‘sonoro’ que verbal, numa perspectivização do discurso euclidiano que se revela também pelas atitudes corporais dos atores, pelo tom da vocalização, pelas imagens projetadas, pela musicalidade, pelos movimentos coletivos dos atores no espaço cênico.
A partir das considerações do autor, pude perceber que o processo de construção de DND por Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua possui estrutura dramatúrgica semelhante ou aproximativa daquela utilizada por Zé Celso e o Teatro Oficina, construindo, também, ao lado do original, um texto paralelo que apresenta a visão do próprio grupo sobre um fato histórico: no caso, a ditadura militar no Brasil. Este texto paralelo é produzido por procedimentos e signos teatrais que criam, no espetáculo, um efeito permanente de distanciamento entre esse fato e os atores.
São, também, as mesmas motivações políticas do grupo Teatro Oficina, observadas por Da Costa - “a solidariedade aos movimentos sociais, lutas relativas ao espaço urbano; questionamento da institucionalização ou mercantilização neo-liberal das práticas de produção teatral e impulsos libertários no campo pessoal” (idem, pág. 05) - que levam à construção do discurso crítico dos atores do Tá Na Rua[4]. O projeto de encenação de DND também não pode ser considerado populista ou panfletário, muito menos uma provocação retrô, conforme uma leitura superficial do trabalho poderia sugerir. Mas, sim, uma tentativa do grupo de buscar sua identidade e posicionamento dentro da conjuntura política nacional após a eleição de Luis Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, para presidente do país em outubro de 2002. Naquele momento, Amir Haddad e o Tá Na Rua não sabiam exatamente qual seria o seu novo projeto teatral, uma vez que havia a expectativa e perspectiva de um governo popular. Isto caracterizava uma situação inédita para o grupo, que desde o início tinha muita facilidade para definir os temas de seus espetáculos[5], quase sempre baseados na crítica social e política.
Segundo Amir Haddad, o Grupo Tá Na Rua “é um produto da contradição do Governo Médici”, no sentido de que os primórdios do pensamento deste coletivo já apareciam em 1974 no espetáculo SOMMA, censurado pelo regime ditatorial (MOREIRA, 2006). Durante toda a sua existência, o grupo sempre buscou revelar os mecanismos cruéis do modelo sócio-econômico imposto ao país, principalmente ao longo da ditadura militar (1964-1984). Esta se estendeu até o re-estabelecimento das eleições diretas para presidente no Brasil (1989) e propiciou a eleição e re-eleição de dois projetos neo-liberais personificados nos presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992)[6] e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).
Com a possível mudança política, social e econômica que era anunciada para a população brasileira e, sendo o Tá Na Rua um grupo artístico comprometido com as questões sociais, o DND nasce da necessidade dos seus integrantes (aqueles que faziam parte do coletivo no ano de 2003[7]) de conhecerem a biografia do grupo e todos os processos que levaram à criação e ao desenvolvimento da linguagem teatral por eles praticada. Poderíamos entender que a mesma trabalha des-envolvendo as instituições sociais e suas ideologias, des-naturalizado-as em seus espetáculos, demonstrando ao público que aquilo é tão-somente uma construção social e, como tal, pode ser modificada e até melhorada pelo homem.
Por isto, revelar a ideologia que está por trás de certos comportamentos sociais é a base da dramaturgia do grupo, que procura entender aquilo que legitima determinadas institucionalizações. Segundo José Duarte, em seu livro O Que é Realidade (1998), a sociedade é formada por um conjunto de instituições legitimadas por ideologias e por seus vários mecanismos de manutenção do poder, gerando por meio desse processo uma suposta naturalização da realidade.
O Tá Na Rua procura, através de seus trabalhos, demonstrar como esta ‘realidade’ é construída, utilizando uma dramaturgia que visa revelar as contradições implícitas nesta construção através de imagens cênicas. Estas revelam que a realidade é um fenômeno social e não natural, o qual é construído a partir de um discurso lingüístico (principalmente pelo signo verbal). Tal processo é aparentemente simples, mas bastante complexo, em sua realização pelo ator. Mostrá-lo para o público requer do grupo muitas informações e a conquista de uma opinião clara sobre o assunto, para que o primeiro possa perceber, nas entrelinhas e na tessitura dos textos escolhidos, as imagens de um texto paralelo crítico e revelador que é mais ‘visto’ que ‘lido’, e que visa levar o espectador a uma reflexão. Essa dinâmica exige um treinamento permanente [8], que capacite o ator a encenar, improvisar, jogar com outras estruturas textuais, não lineares nem necessariamente dramáticas. 
A estrutura dialogada do texto dramático é típica do drama burguês. Este traz a ação para dentro da casa da família burguesa. Por isso, o Tá Na Rua raramente usa textos dramáticos tradicionais[9], buscando materiais de outra natureza que possam ser adequados para espaços abertos: letras de músicas, crônicas, e até ‘bula de remédio’ (o que não deixa de ser um texto oficial, uma prescrição lingüística hermética para leigos e, portanto, ideológico). É, por exemplo, o caso da música Bodas de Prata, utilizada para a encenação de um número constante no repertório do grupo. Essa valsa brasileira da década de 40 - cuja letra é uma apologia à instituição do casamento - é cantada por um homem, evidenciando a ótica masculina tradicional sobre o assunto. Ela apresenta, romanticamente, o lado bom de um casamento que já dura 25 anos. Os atores simplesmente mostram tudo o que, provavelmente, é produzido e reproduzido em vinte cinco anos de relacionamento entre um homem e uma mulher como, por exemplo, a divisão desigual do trabalho doméstico e a atenção aos filhos.
O processo dramatúrgico é desenvolvido da seguinte forma: a música é cantada pelo noivo, que dança com a noiva enquanto os outros atores ritualizam, por meio de movimentações pelo espaço, a imagem da cerimônia de casamento com todo o glamour possível: a festa, a valsa dos noivos. Quando a letra é repetida, os atores desconstroem aquele discurso inicial, trocando o véu da noiva por um lenço de cabeça; sobre o vestido é colocado um avental sujo; o buquê, substituído por uma vassoura. O ator, sempre cantando, tira o paletó e senta em uma poltrona. A mulher corre para entregar-lhe o jornal, tira os sapatos do marido e volta a varrer o chão. O homem abre o jornal, de forma que este lhe cubra a visão do que está acontecendo na casa: a confusão doméstica e a briga das crianças agarradas ao avental da mãe, a comida queimando, etc. No final da canção, o homem puxa a mulher para que se sente em seu colo, com as crianças a seus pés. Pose para a foto. Fim.
Para o Tá Na Rua, o fluxo destas imagens compõe a realidade da instituição ‘casamento’, e é o que precisa ser apresentado teatralmente. Esse processo cria, em relação ao texto “oficial”, um texto paralelo que estabelece uma contradição entre a letra da música e as imagens que vão sendo formadas, revelando como o discurso ideológico legitimador da instituição do casamento é incutido na consciência das pessoas como um relacionamento de dominação natural entre homem e mulher.
            Outra ação, nesta linha, foi o espetáculo Para que servem os pobres?, montado para o primeiro fórum global Rio-Eco 92. Naquela ocasião, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar o grande debate sobre como criar alternativas ao grave problema da fome e da pobreza no terceiro mundo. Dentro da lógica da estrutura dramatúrgica do grupo aqui investigado, foi escolhida a tese do antropólogo norte-americano Herbert Gans, que descreveu dezenove assertivas explicando, ironicamente, a importância e a necessidade da pobreza para a manutenção do equilíbrio social mundial. Uma das cenas desenvolvidas pelo grupo foi a “Festa Grã-fina”, que por falta de pobres para trabalharem como criados, não acontecia. Não havia garçons, cozinheiros, motoristas, músicos, para servirem... aos ricos! A montagem revelava a inversão entre causa e efeito (da pobreza e da divisão de classes no capitalismo) que a ideologia produz naturalizando a idéia de pobreza.
Na ocasião do movimento pela volta das eleições diretas para presidente no Brasil, intitulado Diretas Já, o grupo optou em ‘sair’ para as ruas e participar do comício da Candelária, em 1984, pedindo ao público presente a volta da monarquia no país. Durante a função, era mostrada, assim, a estrutura sócio-ecômica de um regime monárquico e as relações senhor-escravo: o ator branco (Amir Haddad) era o rei, e o ator negro (Roberto Black), o escravo. Todos os outros atores, que eram brancos, não faziam nada: eram todos nobres. A imagem mostrava, então, que um trabalhava para o sustento de vinte. O grupo se deslocava pelas ruas adjacentes ao Comício, pedindo a volta da monarquia e explicando ao povo estupefato que era este o melhor sistema para o país, “que sempre tinha sido assim”, e cantando em coro, ao final: “Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus... Não devemos esquecer de dizer, graças a Deus, graças a Deus!” Ou seja: a realidade é natural, é divina!
Dentro dessa lógica, a realidade é imutável. A dramaturgia desenvolvida pelo Tá Na Rua apresenta, então, alternativas para a construção de outra realidade, mostrando as brechas, as falhas das estruturas sociais, indicando possibilidades de quebrar o jogo ideológico ao demonstrar como se manifesta a super-estrutura social de um país capitalista. Então, os fatos históricos, os cordéis etc., enfim, todo material escrito lhe serve como leitmotiv; menos o texto dramático, porque este circunscreve a realidade a partir da ótica de determinada classe social, levando a discussão para o âmbito do privado.
O Teatro Oficina demonstra compartilhar desse pensamento ao usar, como matéria-prima para o seu trabalho, uma obra literária do gênero narrativo, ou seja, um texto não dramático (embora carregado de dramaticidade); um livro que durante décadas levou à legitimação equivocada de tipos, papéis sociais, padrões de comportamento, a partir de uma visão evolucionista e positivista: Os Sertões, de Euclides da Cunha. As conseqüências desastrosas desta leitura da obra, para a formação da nação brasileira, podem ser percebidas ainda hoje, principalmente no que se refere ao preconceito generalizado, entre os brasileiros do sul e sudeste em relação à população do norte e nordeste do país, que legitima ideologicamente a condição da mesma, enquanto sub-raça.
No Tá Na Rua, o material utilizado para construir o roteiro de DND foi um recorte da vida nacional, constituído por fatos relevantes ocorridos entre os anos de 1964 a 1984, que por sua vez foram transformados em narrativas dramáticas.  Neste período, a ditadura militar utilizou vários mecanismos para eliminar posições divergentes ao regime instalado e construiu um ‘texto oficial’ – o de um Brasil ideal - oferecido aos brasileiros com forte propaganda ufanista e, também, com conseqüências desastrosas na formação do pensamento daquela geração de brasileiros.
Percebe-se que ambas as companhias optaram por ‘contar’ ou ‘narrar’ parte da história recente do país, aproximando-se do gênero épico porque, nele, o narrador está sempre presente no ato mesmo de narrar, com onisciência sobre tudo o que aconteceu na história e com os personagens, seus pensamentos e emoções, e descreve objetivamente as circunstâncias da história. A voz utilizada é a do pretérito, procedimento que cria uma distância entre o narrador e o mundo narrado, permitindo um posicionamento objetivo, sem identificação ou fusão com os personagens. O ator, de ambos os grupos, jamais se “transforma” nos personagens que apresenta; evita sofrer qualquer metamorfose, nesse sentido. Na narração, ocorre um desdobramento: sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado), em que os atores-narradores apenas mostram como esses personagens se comportaram. Esta opção pela narrativa permite, aos atores e também ao público, uma liberdade de reflexão e a possibilidade de analisar a estrutura social brasileira, devido ao efeito de ‘distanciamento’ que a mesma provoca. Segundo Rosenfeld (2004), apresentar a nossa própria situação, época e sociedade, como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico e ou pelo espaço geográfico, permite ao público reconhecer que as próprias condições sociais são apenas relativas e, como tais, fugazes e não enviadas por Deus. Isso é o início da crítica, no teatro épico de Bertolt Brecht. O célebre efeito de distanciamento começa a funcionar, portanto, a partir da própria estrutura épica das peças. A ação “dramática” propriamente dita é distanciada pelo pretérito, quando a narração é posta em cena.
Os espetáculos aqui analisados utilizam vários recursos de distanciamento, como a apresentação simultânea e sucessiva de quadros, música incidental, canções, acrobacias, projeções, intervenção de um coro etc. A idéia neles implícita é a de que o teatro deve opor-se à realidade, não disfarçando o seu caráter lúdico e teatral, mas retirando o espectador da vida cotidiana, fazendo-o sentir que está inserido em uma celebração. Para isto, procuram criar um ambiente formoso e festivo, cercando o público de cores luminosas, lembrando-o de que está participando de uma manifestação lúdica, de puro jogo, e que aquilo não é a “vida”, em seu sentido mais comum.
Ambos os projetos trabalham nesta perspectiva, mostrando como foi formado e forjado o povo brasileiro, contando a sua história, a sua odisséia. Assim como o povo português tem a sua trajetória belamente descrita em Os Lusíadas, Os Sertões e DND têm no homem brasileiro comum o seu protagonista. É sobre ele que os dois espetáculos desejam falar.
Para o Tá Na Rua, o texto dramático tradicional (construído por meio de diálogos) aponta para uma dramaturgia adequada ao palco à italiana; logo, não serve para suscitar o processo dialético que o grupo propõe. Este precisou, portanto, sair em busca de uma outra possível dramaturgia. DND é a síntese dessa pesquisa – uma montagem cuja estrutura dramatúrgica permite que o espetáculo seja lançado em todas as direções, atuando de forma multidirecional e atingindo lugares não previstos – base da relação intrínseca entre o teatro e o espaço aberto da rua. Neste, tal confronto acontece com micro-ações se propagando em diferentes planos e intensidades. Pois ali tudo está em movimento, atingindo lugares inusitados que o teatro convencional não poderia atingir, devido aos seus limites espaciais e ideológicos.
O espaço fechado, mesmo com uma dramaturgia aberta, resulta no mesmo: é um teatro para uma única classe. Não modifica a realidade, porque o público que o assiste é formado, basicamente, pelo grupo social que detém um poder, do qual obviamente não deseja abrir mão. Ou, então, o público é formado por intelectuais, uma micro-sociedade que não pretende revolucionar a realidade dada já que, em última análise, é o segmento intelectual dessa mesma elite sócio-econômica.

Espaço
Pensemos em futebol! Fazer teatro dentro do prédio teatral é ‘jogar na casa do adversário’, onde ‘a torcida é toda contra’. É uma armadilha, porque esses edifícios já são ideológicos em si, construídos para fazer a manutenção da ideologia burguesa. Tanto é, que só uma classe, basicamente, tem acesso a esses espaços: aquela que detém o poder. Apresentar-se nestes equipamentos significa proporcionar, a essa elite, os instrumentos necessários à construção de mecanismos de defesa contra as ações divergentes dela, num fenômeno de apropriação e aniquilamento ou até de incorporação da linguagem, com o intuito de reduzi-la. Ali, no edifício teatral, a realidade oficial e seus mecanismos, como censura e outros, conseguem atuar fortemente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o espetáculo Somma, criado e dirigido por Amir Haddad em 1974. Nessa ocasião, a crítica teatral agiu de forma aniquiladora. Ela, que é formadora da consciência de toda uma classe social e do pensamento teatral, atuou no sentido de desqualificar o próprio caráter de teatralidade do espetáculo, eximindo-se de qualquer tipo de apoio ao elenco do Grupo Teatro Mágico, quando a peça foi arbitrariamente interditada pela censura (REBELLO, 2006).
Os Sertões, do Oficina, acaba caindo nesse tipo de equívoco pois, sendo apresentado num espaço fechado, torna-se acessível somente à classe média e acaba, assim, cumprindo a ambígua função de um teatro classista que se quer conscientizador. Isto fica claro, por exemplo, se analisarmos a situação pelo viés da acessibilidade à informação. O espetáculo era pago pelo público; teve bilheteria. Nesse caso, a informação é paga; terá acesso a ela somente quem tiver dinheiro para garantir o acesso a ela. Quem não tiver dinheiro, não poderá apreender o universo simbólico ali proposto, não obterá as informações que o Oficina pretende compartilhar. E o potencial transformador destas informações, de posse apenas de uma elite, se dilui. Ainda que a intenção do teatro Oficina seja questionar, criticar ou revolucionar a realidade, o próprio teatro, etc, cria-se um paradoxo, ou talvez uma simples incoerência entre desejo e ato.
Ao se apresentar em espaços abertos, onde a informação não é paga, o Tá Na Rua rompe com essa distorção. Leva a discussão ideológica para a rua, restaurando a idéia da Ágora grega, onde os grandes temas que interessavam à pólis eram discutidos pelos cidadãos das cidades-Estado. Na rua, as instituições são expostas, esgarçadas, carnavalizadas; enfim, “viradas ao avesso” pelos atores. Assim, deixam à mostra o material de que são constituídas: a sua verdadeira anatomia – as vértebras, os membros, os órgãos que a mantêm viva. A idéia é desequilibrar este corpo. O simples ato de levar a instituição para fora do espaço privado, tornando-a pública, já inverte a lógica a ela inerente, questiona as suas regras, torna-a vulnerável, relativiza a verdade absoluta de seu discurso ideológico.
Na rua, em espaço aberto, é criado um campo de batalha. Uma liça, uma arena, um palco onde será travado o confronto direto entre os homens e as instituições. Por isso, o Tá Na Rua denomina grande parte de seus espetáculos como “autos”, com o sentido medieval de que um fato importante para a comunidade é exposto à opinião pública, e então analisado e julgado coletivamente. É ele quem escolhe o lugar do embate, e não a instituição em foco. A lógica aqui presente é a de não estabelecer um confronto direto. Para que confrontar a política no próprio Senado, ou questionar o casamento dentro de uma igreja? É no campo das artes que se dá a dimensão estética da política, isto é, a “partilha do sensível”.
Segundo Jacques Rancière, 

(...) a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política. [10]

Então, a estética do Tá Na Rua produz uma ética que busca re-sensibilizar os sentidos e reeducar o cidadão comum pela emoção, pela maneira de perceber, ver e ouvir, vivida coletivamente.

Linguagem lingüística versus linguagem estética
Os discursos ideológicos têm na linguagem verbal o seu meio privilegiado de comunicação. As palavras, por serem polissêmicas e passíveis de múltiplas interpretações, são apreendidas de acordo com o universo simbólico de cada um. Em termos práticos, isso significa que sua inteligibilidade não é igual para todos; a prerrogativa de sua compreensão é dada a apenas uma parcela da sociedade que, deste modo, coloca as demais sob o seu domínio.
Por exemplo, a maioria das pessoas não entende o que está escrito nas entrelinhas de um contrato de aluguel, nos manuais de equipamentos eletrônicos, na bula de um remédio e, principalmente, nas leis. A Constituição e os textos oficiais são elaborados segundo um vocabulário e uma gramática que pertencem a um determinado grupo social e intelectual. Pela sintaxe - dessa elite – a população, em sua maioria, é mantida na ignorância. E como o mundo e a sociedade capitalista estão divididos em classes e papéis, o conhecimento também é dividido: alguns acabam lendo muito bem o texto oficial das instituições (são eles que os fazem, aliás) e, por isso, inscrevem esses textos na sociedade. Mas a maioria não consegue ter acesso às informações cruciais. O Tá Na Rua tenta fazer uma tradução desses textos para a linguagem popular. Todo tradutor é um traidor[11]. Torna-se, portanto, um bom tradutor para o povo, uma vez que trai o texto oficial. Abre mão da linguagem lingüística, que não é do domínio de todos, e migra para a linguagem estética, para o universo simbólico da arte. E o faz traduzindo o mundo em imagens, não em palavras. A idéia da construção do universo simbólico se dá por palavras. Logo, num mundo assim construído, aqueles que conhecem mais palavras acabam assumindo o poder desse mundo explicado pelas palavras. O Tá Na Rua se afasta propositalmente do campo das palavras, onde a realidade é construída oficialmente, e traz o confronto para o campo da sensibilidade, do sensível e do afetivo. Traz a ‘realidade’ para perto, onde é mais palpável. Em lugar de ler a realidade e a sociedade, ele propõe ver e tocar a realidade e a sociedade.

Processo de construção de uma escrita dramatúrgica “de rua”
Existe uma estrutura dramatúrgica, um modus operandi, na construção dos espetáculos do Tá Na Rua. Em primeiro lugar, o coletivo de atores conversa sobre o tema que lhes é apresentado. Este pode ser sugerido por um integrante, pela leitura de um jornal, por um momento específico que o grupo está passando, um fato político novo, um “movimento” (Aristóteles apud CHAUÍ, 2005).
Todos conversam sobre o assunto e expõem o que sabem, tanto quanto o que não sabem a respeito do mesmo (sendo às vezes o último, o mais importante). Este trabalho tem um objetivo: ‘cercar a franga’, ‘achar o mote’. Poderíamos traduzir de outra maneira estes códigos internalizados da cultura popular: estudar o assunto amplamente tem, como objetivo, o “rastreamento” da ideologia e das contradições implícitas no tema, na tentativa de descobrir qual é a instituição que responde pela mesma, (Pátria, Família, Igreja, Teatro, etc.), com suas regras e mecanismos.
Os atores do Tá Na Rua já possuem um treinamento desta dinâmica, o que lhes possibilita produzir coletivamente este ‘novo conhecimento’ e, simultaneamente, iniciar uma produção gestual de imagens que possam revelar o discurso ideológico ali presente, o qual percebem estar agindo naquela situação e atuando sobre a formação do pensamento e da consciência dos nela envolvidos. Utilizam, para isto, recursos estéticos: música, elementos cenográficos, figurinos, adereços, objetos simbólicos (MOREIRA, 2007). O que antes era pensado e dito com palavras, agora é pensado e visualizado.
Nesta fase, a liberdade de criação do ator é fundamental. Não pode haver censura nem julgamento, mas somente a liberdade de improvisar, com humor, a crueldade da verdade que a ideologia falseia e manipula. A partir deste raciocínio, pode-se dizer que o Tá Na Rua é uma anti-ideologia que atua na periferia do poder, à margem da realidade-sociedade, com o intuito de apresentá-la como o produto de uma construção arbitrária, não-natural. Nas suas ‘montagens’ não há mensagens nem heroísmos. Não existe um propósito de ‘salvar’. E em momento algum a idéia que o move é converter ou coagir, mas tão-somente revelar outros pontos de vista sobre certa questão, para que uma nova visão da realidade amplie as possibilidades de reflexão crítica sobre essa mesma realidade. Este é o jogo!

O processo de construção de DND
A idéia inicial do grupo foi fazer um retrospecto do período (anos 70) dentro do qual havia emergido o próprio Tá Na Rua.  Gradativamente, essa reflexão foi sendo ampliada para os anos anteriores, passando a englobar os questionamentos da Contracultura[12], dos anos iniciais da década de 60, e as grandes tensões sociais geradas naquele contexto político do país e do mundo, que culminaram no Golpe Militar de 1964 e se intensificaram dramaticamente no Ato Institucional nº 5, o chamado AI-5. Outro fator relevante que ampliou a pesquisa foi o fato de Amir Haddad ter iniciado sua carreira teatral no período anterior ao golpe militar como diretor do Teatro Oficina e ter vivido o momento histórico pré-64.
O processo de criação do espetáculo foi totalmente coletivo. A maioria dos atores e atrizes desconhecia os fatos ocorridos naquele período por serem muito jovens. Passaram a pesquisar e estudar documentos, livros, reportagens, filmes, músicas e o próprio acervo do Tá Na Rua, somando todas essas novas informações com as que já sabiam ou julgavam conhecer sobre o tema. Os que tinham vivido situações reais ligadas à repressão que se instalou no país, e o sabiam por relato de parentes ou por fragmentos de lembranças, compartilhavam-nas com os demais. Assim, foi sendo tecida uma rede de conhecimentos diversos relacionados a uma época, muitos dos quais aparentemente não estabeleciam uma relação direta e unívoca com o golpe militar, mas que faziam parte de um intrincado enredo onde estavam registrados os fatos mais significativos para toda uma geração.
Deleuze e Guatarri (1995) propõem uma figura conceitual – rizoma – como uma forma de pensar que questiona os princípios evolutivos comumente aceitos – os processos de desenvolvimento ‘em árvore’ ou ‘arborescente’ - que se perpetuaram no ocidente sob a forma de paradigma científico. Para os autores de Mil Platôs, trata-se de uma estrutura de pensamento organizada pela lógica binária e linear que construiu a psicanálise, a lingüística, o estruturalismo e até a informática.
 A esta lógica, eles propõem outra: a do rizoma, que produz um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível a modificações. Este pode ser rasgado, revertido, adaptado a montagens de qualquer natureza, ser preparado (por um indivíduo, um grupo, uma sociedade). O mapa rizomático tem múltiplas entradas, como uma toca de animal. A dramaturgia de DND foi construída – talvez o melhor termo fosse ‘se desenvolveu’ - dessa maneira rizomática: a cada fato estudado, os atores iam improvisando e produzindo imagens cênicas que sintetizavam as idéias ali contidas. Os ensaios eram, portanto, momentos de criação/improvisação intensiva, e não de fixação de cenas já estabelecidas anteriormente. A cada encontro, os mesmos temas geravam improvisações novas, imprevisíveis, num movimento de criação aparentemente desordenado, mas cuja ordem interna ia se desenhando pouco a pouco, tecendo uma verdadeira rede de acontecimentos, tecidos de forma não necessariamente linear ou cronológica. 
Simultaneamente, foi sendo escrito um roteiro – um mapa rizomático da peça - que alinhavava os fatos já num formato de narrativa, mantendo, contudo, as necessárias aberturas para possíveis transformações. Alexandre Santini, um dos atores do grupo que tem formação acadêmica em História, contribuía com a pesquisa de documentos sobre o fato. Outro, Marcelo Bragança, desenvolveu um cordel que fazia a ligação entre as cenas, funcionando como uma cortina[13] que dava o tom narrativo e popular do espetáculo. Quem vocalizava cada estrofe do cordel eram os atores, não personagens. Licko Turle, Daniel Rolin, Miguel Campelo e os outros atores levavam diariamente, para os ensaios, material musical daquele período.
Todas as improvisações tinham, na música, o motor impulsionador da dinâmica corporal dos atores em suas evoluções pelo espaço, em busca dos movimentos e imagens coletivas das cenas estudadas. ‘Música’, entendida aqui em seu mais amplo sentido: desde exemplos de músicas propriamente ditas, representativas dos fatos pesquisados[14], que iam sendo descobertas pelo grupo num verdadeiro trabalho de arqueologia musical a partir da qual foram sendo ‘desenterrados’ os antigos discos de vinil já esquecidos nas casas de cada um, às intervenções vocais livres que os atores e atrizes se permitiam fazer, em diversos momentos das cenas ou, ainda, pelo ritmo de instrumentos de percussão (principalmente o surdo) manipulados pelos próprios atores.
A trilha musical acabou tornando-se um outro texto paralelo ao roteiro teatral, uma vez que a memória brasileira está depositada em grande parte no cancioneiro popular e na tradição oral. A Música Popular Brasileira foi, sem dúvida, o mais importante veículo de protesto e de denúncia ao regime autoritário brasileiro vigente na época da ditadura, e o Tá Na Rua mergulhou profundamente no estudo dessas canções e principalmente no de suas letras que, além de complementar o texto em si, também expunham, paralelamente às cenas, o pensamento do próprio grupo. A música passou, assim, a desempenhar múltiplas funções, tais como: a de fio condutor da narrativa; de ambientação cênica; como comentário crítico aos fatos históricos apresentados; como a voz do povo brasileiro que as cantou na época e as manteve em sua memória; de elemento impulsionador dos movimentos dos atores, proporcionando o ritmo do espetáculo.
Entre vários exemplos musicais, a opção era por aquele que possuía musicalidade suficiente para sustentar a teatralidade desejada na cena. Às vezes, a mesma música era pesquisada, escolhendo-se um entre vários arranjos e/ou interpretações, quando uma versão continha elementos musicais (andamento, solos instrumentais, tipo de interpretação vocal, etc) que não satisfaziam ao sentido exigido pela cena.
Por exemplo, a versão escolhida do Hino Nacional Brasileiro foi aquela que, interpretada pela cantora Fafá de Belém, relacionava esta músico-símbolo da nação ao fato histórico do Movimento Diretas Já para presidente, ocorrido em 1984. Tornou-se uma verdadeira ‘música-imagem’ desse fato histórico. A cantora, entoando o hino, transformou-se na própria imagem das “Diretas Já”, sendo inclusive este o momento mais aguardado nos comícios por todo o Brasil. Era ela - uma artista, e não um político - quem encerrava os comícios. A música é que trazia a imagem da cena, não o contrário. Depois, nos espetáculos, o público viria a identificar aquele fato pela música e também cantava, inclusive repetindo o movimento corporal realizado pelos vários públicos dos comícios passados: braços erguidos, mãos dadas.
Derrida (2005) aponta, em Freud, a tendência da cultura ocidental, desde Platão e Aristóteles, de ilustrar prioritariamente por imagens gráficas as relações entre razão e experiência, percepção e memória. Contrariando essa histórica tendência, o Tá Na Rua foi além da criação de imagens visuais e investiu na produção de imagens sonoras como as acima relatadas, capazes de levar o espectador a uma reflexão crítica profunda a partir de um - aparentemente menos importante - estímulo musical.
Deleuze e Guatarri também falam sobre a memória. Os autores distinguem uma longa e uma curta, cuja diferença não é apenas quantitativa, mas qualitativa: a curta seria rizomática, enquanto que a longa, arborescente e centralizada. A primeira se relaciona ao esquecimento como processo; ao rizoma coletivo, temporal e nervoso. A segunda está relacionada à família, à raça, à sociedade. Os sistemas arborescentes são hierárquicos, têm memórias organizadas, mas um elemento só recebe informações de uma unidade superior.
Na construção de DND, o Tá Na Rua trabalhou com a memória curta, ou seja, com a memória rizomática que recebe informações múltiplas, e não apenas de uma unidade superior centralizadora. Dito de outro modo, esta poderia ser considerada uma memória ‘inteligente’, que está sempre em busca de linhas de fuga com um espaço fora, construindo multiplicidades e não estabilidades.
 O Samba Plataforma, de João Bosco e Aldir Blanc, pelo virtuosismo instrumental e vocal do primeiro em sua versão original, não sustentava ritmicamente a cena, que sugeria um ‘bloco-de-sujo’ de carnaval. Optou-se, então, pela utilização da versão interpretada pelo Quarteto em Cy, musicalmente mais singela que a anterior, porém mais eficaz na obtenção do sentido necessário à cena. Já O Bêbado e a Equilibrista, dos mesmos autores, embora fosse uma música bastante popular no país, cuja letra foi transmitida à geração pós-ditadura e veiculada nas mais diversas celebrações sociais (acampamentos de jovens, bares, etc), não guardava mais a memória política do fato histórico ao qual aludia. Talvez, justamente pela sua popularização acrítica, em função de uma divulgação massiva pela indústria fonográfica, esta música não era mais associada à ditadura militar. Ela foi, por assim dizer, despolitizada, e portanto o grupo teve a necessidade de reconstituir o conteúdo de sua letra, revelando através da produção de imagens visuais o que estava oculto como metáfora, naqueles versos.
Rancière aponta a mistura entre as artes como uma das marcas do regime estético da arte. Em DND, o grupo Tá Na Rua adotou esse regime de pensamento que des-hierarquiza as artes, onde o real precisa ser ficcionado para ser pensado. Por isso, a linguagem musical adquiriu, nesse espetáculo, um status de igualdade com o teatro, corroborando o pensamento daquele autor acerca da possibilidade de outras formas de se pensar a arte.    
O trabalho corporal... não existiu, no sentido estrito do que comumente se compreende pelo termo. O grupo Tá Na Rua não tem, absolutamente, nenhuma preocupação com algum tipo de performance corporal técnica. Todo o seu trabalho de preparação do ator é realizado através de um único exercício coletivo, corporal em si, realizado de forma orgânica, fluida, ininterrupta, não fragmentada e muito menos, individualizada. Todo o trabalho corporal que as improvisações exigem se dá por meio da atividade coletiva, festiva, dançante, conduzida prioritariamente pela música – de reprodução eletrônica ou acústica – que ‘é o principal elemento condutor do jogo de improvisação livre[15] praticado pelo Tá Na Rua’ (MOREIRA, 2007).
A utilização dos objetos cênicos, figurinos e adereços, acrescida às improvisações orientadas pelo mapa-roteiro, seguiram uma lógica de bricolagem – figura conceitual proposta por Lévi-Strauss (2005) para designar o pensamento mítico ou “selvagem” das culturas tribais – que opera agrupando livremente materiais heteróclitos (sobras de figurinos, máscaras de carnaval, materiais artesanais e industrializados, objetos e uniformes militares “reais” adereçados, objetos eróticos, etc) na elaboração dos personagens e cenários. Tecidos coloridos, elemento constante na estética visual do grupo Tá Na Rua, foram de fundamental importância nas cenas de grande movimentação, preenchendo o espaço de evolução dos atores, fornecendo metáforas visuais e acrescentando sentidos à narrativa verbal. 
Os atores de DND, durante o processo de criação, trabalharam com esses materiais cênicos ‘desdefinindo parcialmente os limites entre sujeito e objeto’, tal como Da Costa observa em seu estudo sobre Os Sertões. Aqui, também, os materiais cênicos não foram apenas objetos da ação dos atores. Não sendo apenas acionados, mas também acionando, parecendo evoluir por si mesmos, dançando e ocupando o espaço em diferentes planos, potencializados e transformados nos próprios agentes impulsores dos movimentos dos atores, movendo-os em ondas cinéticas. Esta dinâmica com os tecidos iniciou nos primeiros encontros do elenco e permaneceu até as últimas apresentações de DND.
Ao material selecionado, foi dado um tratamento de montagem tal como num desfile de escola-de-samba, que é um espetáculo desenvolvido dentro do carnaval, manifestação secular da cultura popular. Este possui características do teatro épico, narrativo, que tem como protagonista o povo. O enredo é contado através de imagens e alegorias, divididas em partes definidas; e cada parte se subdivide em alas[16]. A idéia do Tá Na Rua foi recriar o efeito de apresentação dos fatos que uma escola-de-samba cria, abrindo mão de uma “interpretação” no sentido teatral convencional. Assim, as cenas do espetáculo passavam ininterruptamente diante dos olhos dos espectadores, evocando o fluxo de um “rio que passou em minha vida”, eternizado nas palavras do famoso samba-enredo de Paulinho da Viola.
O processo de criação de DND seguiu o raciocínio de Rancièrie sobre a questão da denúncia da ‘crise da arte’ pelas grandes teorias e experiências vanguardistas de fusão entre a arte e a vida que, segundo esse autor, ‘evidenciam que a batalha centrada no debate sobre a história – suas ilusões e desilusões – se dá hoje no terreno da estética’ (Rancière, 2005, p. 11).
Assim, ao escolher o tema da ditadura militar, o Tá Na Rua opta por discutir a história do país por meio da sua prática estética, apresentando uma forma de partilha do sensível que busca superar a hierarquização do poder. Esta é a sua forma política de manifestação, plenamente vivida no terreno da estética.

A estréia – primeira versão de DND
A estréia de DND aconteceu no Festival Porto dos Palcos em janeiro de 2004, realizado no espaço do antigo cais do porto do Rio de Janeiro. Na ocasião, foi oferecido ao grupo um dos espaços fechados destinados ao evento, durante o qual aconteciam simultaneamente várias apresentações artísticas. Tratava-se de uma sala retangular, cujos lados de maior extensão foram preenchidos por fileiras de cadeiras, formando duas áreas de platéia. Este formato foi pensado pelo grupo para que funcionasse como uma liça do período medieval. A visão dos espectadores era, portanto, a de uma larga passarela, com dois palcos localizados nas duas extremidades. Num deles permanecia Roberto Black, o sonoplasta do grupo, com seu equipamento de som e inúmeros CDs, além de um reduzido grupo de músicos-atores com seus instrumentos. 
Além dos próprios membros do grupo Tá Na Rua, o elenco contava também com um grupo de jovens atores egressos de oficinas teatrais do Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania, a maioria com pouca ou nenhuma experiência artística.
Esta primeira versão do espetáculo tinha apenas uma hora e meia de duração, e apresentava as seguintes cenas/fatos históricos, estruturados independentemente com início, meio e fim: a apresentação dos atores, o Brasil pré-64, o golpe militar de 1964. Como em Os Sertões, eram apresentados momentos dinâmicos do processo de criação do espetáculo. Isto, entretanto, não dificultava o entendimento da proposta pelo público, que era constantemente informado pela ação do narrador – elemento responsável pela ligação entre cada cena ou quadro.
O espetáculo propiciou vários momentos de comunhão entre atores e público, o qual era convidado a participar das improvisações. Principalmente no quadro relativo à invenção da pílula anticoncepcional nos anos sessenta, a partir da qual foi vivida intensamente a ânsia de liberdade sexual da mulher, o público feminino sempre surpreendia o elenco com a sua disponibilidade, e até avidez, em participar dessa improvisação, apelidada pelos atores como “a suruba”, por apresentar uma cena de sexualidade vivida coletivamente.

DND em outros espaços
O espetáculo foi apresentado nos mais diferentes espaços[17], desde a sua estréia. Esse fato constituiu um grande desafio para o grupo, que se viu frente à necessidade quase cotidiana de repensar e refazer cada cena, em função do espaço disponível, explorando novas possibilidades espaciais, de movimentação e de comunicação com o público, decorrentes dessas mudanças.
Pode-se dizer que as transformações espaciais constantes, unidas a um cada vez maior entendimento do espetáculo pelo grupo durante o processo, provocavam transformações na sua própria escrita cênica, propiciando novos quadros e impossibilitando outros a cada situação. Foram elaborados inúmeros roteiros provisórios, que contemplavam, cada um a seu modo, questões importantes quanto à dramaturgia, à narratividade, a relação com o público. 
Uma das apresentações mais significativas foi a do Circo Voador. Além de ser o evento de reinauguração desse importante espaço cultural da cidade do Rio de Janeiro, foi este espetáculo o evento comemorativo oficial dos 25 anos do Grupo Tá Na Rua. Aqui, ele ganhou o formato de trilogia, sendo apresentado em três quartas-feiras sucessivas. O primeiro da série estava focado no golpe militar de 64; o segundo, no período compreendido entre este evento e o ano de 1968, cujos descaminhos da política nacional culminaram com a decretação do Ato Institucional nº 5; o terceiro abarcou os momentos de maior endurecimento do regime, até o movimento das Diretas Já em 1984.
Além das transformações decorrentes dos diferentes espaços em si, o Tá Na Rua deparou-se também com públicos diferenciados, cuja recepção se dava de maneira bastante desigual. (situações com crianças, jovens, estudantes no Circo Voador, lonas culturais, periferia, etc)

Conclusão
Pontos de aproximação de DND com Os Sertões, de Zé Celso e o Oficina
Embora tenham desenvolvido expressões teatrais singulares, o Teatro Oficina constitui a origem profissional comum dos dois diretores aqui apresentados - José Celso Martinez Corrêa e Amir Haddad -, cujas carreiras teatrais permitem inferir que ambos compartilham posicionamentos político-existenciais semelhantes;
Os espetáculos abordados neste estudo são, conforme a conclusão de Da Costa sobre Os Sertões do Oficina, leituras específicas de fatos históricos ocorridos no Brasil, as quais se valem da memória recente do povo brasileiro como estratégia para reconstruir, em cena, concepções políticas opostas – de “direita” e de “esquerda” -, que revelam as ideologias (sociais, morais, sexuais, religiosas) que estão presentes na nossa sociedade, porém ocultas sob o manto desses fatos históricos;
Há, em ambas as encenações, a possibilidade de um teatro capaz de suscitar uma profunda reflexão sobre o processo de construção da história e da formação do pensamento atual da sociedade brasileira, através do desvelamento das ideologias e certezas do establishment.
Há uma teatralização de textos narrativos não dramáticos; no caso do Oficina, um texto literário; no do Tá Na Rua, um mapa-roteiro montado a partir de fatos históricos obtidos em documentos como jornais, livros, revistas, filmes, músicas, etc. Assim, tanto Os Sertões como DND têm suas dramaturgias baseadas na desconstrução da cena teatral tradicional, concebidas e realizadas a partir de um mesmo processo de pensamento não logocêntrico capaz de instaurar, no interior das teatralidades propostas por cada um, o descentramento radical das unidades subjetivas e objetivas dos cânones estabelecidos, colocando em xeque as convenções teatrais e ampliando os sentidos da cena.
Ambos os espetáculos apresentam um caráter fortemente intertextual, multidirecional e polissêmico das imagens produzidas em cena. Apesar de utilizarem textos, não adotam a palavra como elemento fundamental de seu projeto de teatralização; ao contrário, revelam, pelo discurso da corporalidade e da produção coletiva de imagens cênicas, as contradições internas dos discursos escritos que, quando traduzidos imageticamente, aparecem em sua face mais crua, de maneira verdadeira e direta. 
Além da corporalidade propriamente dita, os dois espetáculos adotam também os discursos da musicalidade e do ritmo; enfim, são elementos preferencialmente não verbais os que delineiam mais intensamente as suas respectivas narratividades, colocando as duas encenações como exemplos de um pensamento teatral contemporâneo não logocêntrico.
Em suma, um estudo comparativo mais aprofundado entre Os Sertões e DND necessitaria de novos parâmetros, que extrapolem as categorias convencionais da análise teatral. Uma possibilidade, nesse sentido, é a proposta metodológica que Michel Foucault denomina como arqueologia em sua obra A Arqueologia do Saber (2005). O autor a define como uma análise comparativa que não pretende reduzir a diversidade dos discursos analisados, nem delinear a unidade que deve totalizá-los, mas contrariamente, se dirige a um complexo horizonte constituído por um emaranhado de interpositividades. Desse modo, a comparação arqueológica não teria um efeito unificador, como se dá em geral com os objetos históricos, mas multiplicador.
Segundo Foucault, na usual história das idéias, uma comparação é sempre limitada, regional, e dirige-se para a busca de formas gerais. Na confrontação de diferentes discursos, ela tende a perguntar o que os mesmos tinham em comum, que postulados implícitos compartilhavam apesar da diversidade das teorias, e a que princípios gerais obedeciam silenciosamente; o que a arqueologia propõe é justamente libertar a história do jogo das analogias e das diferenças, procurando desenhar configurações singulares e definindo o modelo arqueológico de cada formação discursiva, mostrando como uma única noção pôde abranger dois elementos arqueologicamente distintos, implicando em possíveis defasagens arqueológicas; enfim, com base no pensamento de Foucault acerca de uma arqueologia dos fatos comparativos, é possível perceber que muito mais poderia ainda ser revelado sobre os projetos teatrais do Oficina e do Tá na Rua, concretizados em Os Sertões e DND.
            A breve análise de alguns pontos comuns entre os dois espetáculos que, aqui, ganhou apenas um esforço inicial, deixa-nos, contudo, entrever a possibilidade de se realizar, para além dos limites deste trabalho, um estudo muito mais aprofundado sobre as relações internas e externas que caracterizam os discursos teatrais construídos pelo Teatro Oficina e pelo grupo Tá Na Rua, e que permitem reconhecer neles uma configuração discursiva pertencente basicamente a uma mesma região de interpositividade, embora totalmente definidos em suas configurações particulares.


O ponto de divergência: espaço fechado (Oficina) x espaço aberto (Tá Na Rua)
A arquitetura teatral do Oficina e o seu desejo de estabelecer pontes entre o dentro e o fora estabelecem, segundo a análise de Da Costa, uma ‘estética de fissuramentos e aberturas’ que evidencia também uma necessidade visceral de desterritorialização e de, rizomaticamente, criar ligações com o espaço exterior ao prédio teatral.
Pode-se dizer que o grupo Oficina ‘brinca’ com a possibilidade de conectar os espaços internos (do teatro) com os externos (da cidade), mantendo, entretanto, os primeiros como um referencial seguro de onde pode, sem os riscos de sair, enxergar os segundos. Dito de outra forma, o Teatro Oficina convida o espectador a ‘espiar’ o mundo à sua volta; insinua um movimento nessa direção; cria ‘aberturas’ arquitetônicas através das quais tenta estabelecer contato com esses espaços externos; chega a revelar, simbólica e concretamente, essas passagens (espaciais, corporais, éticas) que se situam entre o dentro e o fora. Mas tudo isso permanece como desejo, não indo além da possibilidade.   
Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua radicalizam esse mesmo desejo; saem – literal e metaforicamente – do espaço interno, privado, da segurança, para aventurar-se do lado de fora. Não ‘espia’: mergulha. Não sonega o próprio desejo de rizoma: deixa-se penetrar e ser penetrado pelo rizoma do mundo; “faz rizoma” nele e com ele. O que lá era reflexão ou, nas palavras de Da Costa, “experiência intelectual da recepção corpórea”, torna-se aqui intensidade corporal vivida como experiência corporal pura: pulsação, calor, suor de um corpo único que, ao menos temporariamente, abandona suas individualidades de atores/atrizes/espectadores para tornar-se Corpo sem Órgãos (DELEUZE, 1985). Não o corpo paranóico ou masoquista produzido por uma sociedade esquizofrênica que insiste em dicotomizar as relações sociais, o mundo e a própria vida, mas o corpo-ovo, pulsante, vivo, simultaneamente sexual e anti-genealógico.  Aqui, na desterritorialização consumada pelo Tá Na Rua, a necessidade maior é a de conter o ímpeto rizomático que dificulta a colocação de limites saudáveis entre o dentro e o fora.
            Poderíamos, por exemplo, nos perguntar se beijar uma mendiga bêbada na boca, durante uma apresentação de rua, é mais, menos ou tão contundente quanto mostrar o cu para uma platéia seleta, dentro da segurança de um espaço fechado. Mas outras questões, igualmente relevantes, aparecem ao lado desta.
Trabalhando em espaço fechado, Zé Celso e o Oficina conseguiram proporcionar maior visibilidade e respeitabilidade em relação ao seu projeto teatral, uma vez que a crítica e a classe intelectual - públicos formadores de opinião – têm como atividade usual assistir aos espetáculos ‘em cartaz’, estabelecendo aprioristicamente com os mesmos uma relação de disponibilidade, ainda que esta possa ter um caráter mais profissional do que de simples ‘gosto’ pessoal. Este fato é praticamente inexistente quando se trata de uma apresentação teatral ‘de rua’, ou como Haddad prefere colocar, ‘em espaços abertos’. Para verificá-lo, basta abrirmos um jornal de grande circulação e observar que, no espaço reservado à crítica teatral, as análises são dirigidas, única e exclusivamente, a espetáculos realizados em salas. Favorável ou desfavorável, um comentário escrito e divulgado num meio de comunicação sempre funciona como um atrativo, retroalimentando o estreito círculo de relações sociais e profissionais, dentro do universo dessa arte.
De qualquer modo, e em que pesem as reais dificuldades econômicas, uma produção teatral ‘em sala fechada’ estará sempre mais apta a conseguir sustentabilidade financeira, através da bilheteria ou da venda de espaço publicitário para patrocinadores, do que um espetáculo ‘de rua’, onde o ‘passar o chapéu’ é somente tradição.
Do ponto de vista do acabamento estético, o Oficina consegue um alto grau de refinamento, visível nos espetáculos do ciclo de Os Sertões, o qual foi apresentado recentemente no Festival Cena Contemporânea, no Rio de Janeiro. Provavelmente, isto se deve à competente direção de Zé Celso ‘em cima dos atores’, conforme relata o próprio Amir Haddad na entrevista citada no início deste estudo. Não seria exagero afirmar que um tal nível de acabamento só é possível nos espetáculos realizados em espaços privados. Não porque o público da rua seja menos inteligente ou exigente que o outro, mas devido à natureza transitória e fluida desse teatro que, para existir enquanto tal, precisa estar permanentemente aberto aos imprevistos de um espaço público, os quais são, em si, parte integrante do próprio espetáculo. Sendo a agilidade – mental e física - a sua natureza essencial, as qualidades imprescindíveis ao artista ‘de rua’ relacionam-se mais com a capacidade de ‘jogar’ e improvisar rapidamente, de interagir com todos os tipos de pessoas durante o espetáculo, do que com as habilidades técnicas convencionalmente atribuídas individualmente ao ‘bom’ ator, ainda que estas estejam baseadas na corporalidade, sensibilidade e inteligência.
Trata-se, enfim, de uma questão de escolhas éticas e estéticas, que tanto um quanto o outro grupo e seus respectivos diretores já têm muito bem definidas, defendendo-as com igual paixão e empenho. Hoje, o Teatro Oficina representa uma espécie de ‘resistência’ cultural no terreno do teatro oficial, insistindo em vultosas e às vezes polêmicas produções que, em minha opinião, cumprem à sua maneira a suprema função do teatro: suscitar a reflexão das pessoas sobre as suas próprias certezas estabelecidas. E o Ta Na Rua, do lado de fora do edifício teatral, se mantém firme no propósito de buscar um teatro desclassificado que alcance a todos os cidadãos.




[1] Entrevista concedida a Jussara Trindade e Licko Turle, para o Projeto Memória Tá Na Rua/Petrobrás no dia 05 de setembro de 2007. Realizado em sua residência, no Bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro.
[2] Rio de Janeiro-RJ, Campos dos Goytacazes-RJ, Campina Grande-PB, Fortaleza-CE, Angra dos Reis-RJ, Resende-RJ, São Paulo-SP, Jacareí-SP, São José dos Campos-SP, Nova Iguaçu-RJ, Paris-FRA.
[3] JB e outros.
[4] Para o Oficina, a questão da construção do Shopping Center Bela Vista, em São Paulo, em detrimento de um espaço cultural, tem o seu paralelo na visão do Tá Na Rua sobre a idéia de privatização das praças da cidade do Rio de Janeiro que, com o seu gradeamento e colocação de portões - abertos somente em horários determinados pela guarda municipal – cercearam o uso do espaço público, inibindo artistas e a população em geral de manterem um encontro cultural através de espetáculos abertos.
[5]A Memória Tá Na Rua, último espetáculo criado pelo coletivo, são fragmentos da memória da história mundial. De dentro de uma cartola e sorteado pelo público, saltam cenas a partir de letras de canções populares, fatos históricos nacionais ou não, referências teatrais, etc. Não há nenhum compromisso com a linearidade ou as unidades de tempo, lugar e ação. Estreou em 2007 e é, segundo Amir Haddad, um avanço dramatúrgico importante para o grupo após a montagem de DND. Dar não Dói, o que dói é resistir ou Em paz com a ditadura: O espetáculo traça um panorama da resistência cultural brasileira ao autoritarismo e à censura durante o período da ditadura militar (1964 – 1984), ressaltando a importância da democracia para a liberdade de criação artística (2004-2006) Auto de Natal “Meu Caro Jumento”: Baseado no poema do autor nordestino Patativa do Assaré, o espetáculo apresenta a narrativa do nascimento de Jesus Cristo a partir da perspectiva do Jumento, o animal que transportou a família sagrada na fuga de Belém. Espetáculo encenado durante o período das festas de Natal. (1986-2006). A Revolta de São Jorge contra os Invasores da Lua: Texto de Erotildes Miranda dos Santos, baseado na literatura de cordel, que narra a chegada dos astronautas americanos à lua, seu encontro e embate contra São Jorge, o Santo Guerreiro, tendo como pano de fundo a corrida armamentista e a polaridade entre Estados Unidos e União Soviética durante a guerra fria (2001). Cabaré Tá Na Rua – Salve a Lapa!: O “Cabaré” é um espetáculo baseado nas formas narrativas do teatro de revista e que apresenta, de forma bem-humorada e crítica, três momentos do histórico bairro da Lapa: O primeiro de 1900 a 1920 (a Lapa de João do Rio), o segundo de 1920 a 1940, o auge e o início da decadência do bairro boêmio, e o seu ressurgimento como pólo cultural a partir dos anos 90. Direção de Licko Turle (2001-2003). Só a Verdade Salva – Auto do Natal: Texto do autor nordestino Racine Santos, este espetáculo é concebido como uma imensa encenação comunitária, dentro de uma  concepção espetacular original desenvolvida por Amir Haddad junto ao Tá Na Rua, denominada liturgia carnavalizada, e que envolve um grande número de cidadãos na realização do espetáculo. Pra que servem os pobres?: Espetáculo que surge a partir de um projeto de desenvolvimento de uma dramaturgia específica para espaços abertos, baseado no ensaio homônimo do antropólogo norte–americano Herbert Gans, que discute o papel dos pobres nas sociedades capitalistas modernas. Este espetáculo foi apresentado em 1992-1998. FEBEAPÁ: Espetáculo baseado nas crônicas jornalísticas de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que com seu humor irônico e crítico traça um panorama social, político e comportamental da vida carioca e brasileira. 1993-1995. A mulher que beijou o Jumento pensando que era Roberto Carlos: Baseado em texto do cordelista Dílson Silva, este espetáculo é representativo das pesquisas do TÁ NA RUA sobre as possíveis dramaturgias para espaços abertos. Com humor popular, o texto discute as relações entre cultura popular e cultura de massa, a partir da história da moça que beijou o jumento pensando que era o cantor Roberto Carlos. Este texto compõe o material de pesquisas do grupo desde a sua formação, e foi apresentado ao público no ano de 1982. Uma Casa Brasileira, com certeza: Texto de Wilson Sayão que sintetiza em cinco quadros o universo da família brasileira, através de três casais: um casal da elite (“Caviar e Champanhe”), um de classe média (“Coca-Cola e Sanduíche)” e um casal pobre (“Pão e Água”) - (1989). Homens e Mulheres – A Ópera: Antologia de músicas do cancioneiro popular que compõem um panorama do complexo universo das relações entre homens e mulheres. Estas músicas são cantadas e/ou encenadas pelos atores, sempre estimulando a participação do público como participante ativo da encenação. 1980-1999. Morrer pela Pátria: Texto de Carlos Cavaco, escrito em 1936. Baseado na ideologia integralista, vertente brasileira do nazi–facismo atuante na década de 30, o texto discute a suposta “ameaça comunista” que pairava sobre o Brasil a partir da perspectiva de uma família de classe média. Este texto foi um material fundamental na pesquisa empreendida por Amir Haddad desde a década de 70, visando o desmonte da linguagem teatral tradicional e das estruturas autoritárias reproduzidas pelos coletivos de trabalho. Morrer pela Pátria (1984). Coração Materno: A canção de Vicente Celestino, um clássico do cancioneiro popular, constituiu – se como peça fundamental do repertório do grupo durante a intensa fase de experimentação de rua, no início dos anos 80. A encenação desta música em diversas apresentações de rua permitiu o desenvolvimento de reflexões temáticas sobre o sentimento do homem brasileiro e contribuiu para a pesquisa sobre a construção de uma dramaturgia a partir de materiais não –dramáticos. A família Tá Na Rua – um grupo de teatro tenta apresentar o seu espetáculo na rua, mas, os atores que são todos da mesma família, começam a brigar demonstrando todas as contradições deste núcleo social da classe média como o sexo forçado entre os irmãos e a índia-empregada-adotada, a mãe super-protetora, o pai omisso, o filho preferido, a filha rebelde, a santinha e educada, etc. 1981. As ‘Máscaras’ do Tá Na Rua (improvisos): As “máscaras” do Tá Na Rua foram números livres desenvolvidos a partir das características pessoais e da experiência dos atores que compunham a formação original do grupo. Sempre com muito humor e com uma margem enorme para o improviso e a participação da platéia, as “máscaras” permitiram o desenvolvimento de uma nova linguagem atorial a partir da apresentação das ‘especialidades’ dos atores: O homem–que–coça–o–saco, a mulher–que–sofre, a–mulher–que–grita–rodopia–e-cai, o-cigano–que–salta, o negro, etc. (Acervo Ta Na Rua).

[6] O presidente Collor sofreu o processo de impeachment e foi substituído, conforme rege a Constituição Brasileira, pelo vice-presidente Itamar Franco até 1994. Fernando Henrique Cardoso foi seu Ministro da Fazenda e do Planejamento e criou o Plano Real que foi decisivo na sua eleição contra o então candidato Lula em 1993. (N.A.)
[7] Em 1980, é fundado o Tá Na Rua. Em 1992, saem alguns membros e novos atores e não-atores são integrados, formando a 2ª geração. A partir da criação da Escola Carioca do Espetáculo e do Instituto Ta Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania em 1999, surge a terceira geração. Esta, já oriunda dos cursos e oficinas ministradas pelo grupo. (N.A.)
[8] Para Walter Benjamim (1994), o desaparecimento da arte de contar é o resultado do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligadas a um trabalho e um tempo compartilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. É possível reconhecer, no trabalho artístico do Tá Na Rua, esta dimensão artesanal preservada na dramaturgia - o modo de contar a história, e não o texto - que está sempre em processo de construção, aberta ao devir.

[9] Verificar (nota nº 5) os espetáculos Morrer Pela Pátria, de Carlos Cavaco (1984), e Uma Casa Brasileira, com Certeza, de Wilson Sayão (1989).
[10]  IN: “São Paulo S.A., Práticas estéticas, sociais e políticas em debate: situação estética e política”. 17 a 19 de abril de 2005, SESC Belenzinho, SP, Brasil. Tradução: Mônica Costa Netto
 http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?Referencia=3806&ParamEnd=5
[11] Traduttore, traittore.
[12] “Disseminado principalmente a partir da década de 1960, o chamado movimento de contracultura teve no teatro um importante difusor do sentimento de revolta contra as instituições que o inspiravam. Herdeiro da rebeldia das vanguardas no início do século, plantado no terreno irrigado pela cultura beat e insuflado pelos ares dos happenings e outras modalidades de livre expressão artística como a action pacting, embalado ao som do jazz e do rock, o teatro que se expande pelas ruas e em locais alternativos não apenas veicula valores que se opõe à tradição burguesa como rompe, também, com o modo dominante de produção teatral, inventando procedimentos coletivos de criação e definindo novas relações com o público (...) no teatro [brasileiro], o grupo Oficina inicia essa tendência, especialmente em sua fase de ruptura, quando José Celso Martinez Corrêa dá novo rumo à história do coletivo, mergulhando na experência anárquica de Gracias, Señor” (GUINSBURG, 2006, p. 95).
[13] “Rápidos quadros cômicos interpretados, numa revista, à frente da cortina colocada atrás do pano de boca, que se levantava no início do espetáculo só baixando no final. Esses números tinham como finalidade, além de divertir o público, possibilitar complexas mudanças de cenários, que estavam sendo feitas atrás da cortina.” (GUINSBURG e outros, 2006, p. 101).
[14] Música ‘de protesto’, o Hino da Internacional Socialista, o Hino Nacional Brasileiro na voz de Fafá de Belém, o hino católico Queremos Deus cantado pelas ‘beatas’; a canção-trilha do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, etc.
[15] Moreira (2007) diferencia o jogo de improvisação livre praticado pelo Tá Na Rua do jogo de improvisação orientado, usualmente utilizado por propositores de métodos teatrais como Viola Spolin, Jean-Pierre Ryngaert e Augusto Boal. Nestes, as improvisações se dão a partir de uma proposta verbalizada por um coordenador, enquanto que no Tá Na Rua isto não ocorre; é a partir de estímulos musicais que o grupo improvisa, sempre coletivamente.  
[16] Ver Anexo 1: Roteiro de encenação do DND.
[17] Lonas Culturas do Rio de Janeiro; Circo Voador; hall de entrada do prédio do antigo MEC, atual FUNARJ; Largo da Carioca; Largo da Lapa.