Política Cultural em São José dos Campos:
Cultura em Movimento
Paulo Roxo Barja[1] (http://www.paulobarja.blogspot.com/)
São José dos Campos tem, hoje, artistas de destaque em diversos segmentos: artes visuais, dança, literatura, música, teatro. A cidade conta inclusive com uma orquestra sinfônica de qualidade. Isso tudo, porém, já se sabe. Mas uma pergunta fica no ar: será que a cidade possui uma política cultural consistente e compatível com seu porte?
No início da década de 1980, em São José dos Campos, artistas, intelectuais, políticos e outros cidadãos interessados em cultura começaram a lutar pela criação de uma fundação cultural para o município. Após quatro anos de reuniões e manifestações públicas em praças e escolas de São José, o prefeito Hélio Augusto de Souza criou, em 1986, a Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), com o objetivo de valorizar a produção cultural local, incentivando as ações culturais na cidade. Para atingir este objetivo, a FCCR atuaria por meio de comissões setoriais com representantes eleitos para o Conselho Deliberativo da Fundação, responsável pela discussão e formulação da política pública para a cultura na esfera municipal.
Desde sua criação, a FCCR vem fomentando iniciativas culturais relevantes no município, dentre as quais podemos destacar, pelo porte, abrangência e continuidade, o Festivale, festival de teatro tradicionalmente realizado no mês de setembro em diversos espaços culturais do município, e o Festidança, festival de dança realizado anualmente no Teatro Municipal, no mês de junho. Mais recentemente, a FCCR tem marcado presença também no Festival da Mantiqueira, garantindo espaço aos escritores joseenses neste encontro literário que ocorre anualmente em São Francisco Xavier.
No entanto, se é verdade que, à época de sua criação, a FCCR representava uma iniciativa importante para o movimento cultural de São José dos Campos, hoje essa importância tem sido relativizada e até mesmo questionada pelo próprio meio artístico. Relativizada, quando se constata que algumas das mais importantes iniciativas para o fomento das atividades culturais no município têm sido apoiadas, na verdade, pelo SESC e/ou com recursos estaduais e federais repassados diretamente aos artistas, via editais públicos. Questionada, pelo fato de que boa parte dos cargos vinculados à FCCR tem sido tradicionalmente preenchida por critérios políticos. É consenso no meio artístico que esse viés político, com cargos comissionados, reduz a capacidade de atuação efetiva da Fundação na condução de uma política cultural consistente para o município.
A mudança nos rumos da Fundação começou no final de 2000, quando uma lei municipal do vereador Jorley Amaral (PFL) extinguiu diversas comissões internas da FCCR, criando um Conselho Deliberativo com 27 representantes da sociedade civil (ValeParaibano, 2004). Desde então, o Conselho tem sido ocupado majoritariamente por pessoas desvinculadas do meio artístico, o que tem colaborado para um inequívoco distanciamento entre as ações da FCCR e os anseios e reivindicações da comunidade artística joseense.
Este cenário tem levado os artistas da cidade à procura de caminhos alternativos, independentes da FCCR, para a viabilização de suas atividades – ainda que dentro do próprio município. Menos mal: hoje, São José dos Campos conta com grupos artísticos reconhecidos nacionalmente e atuantes graças a um histórico de projetos aprovados na FUNARTE, no Ministério da Cultura (MinC) e no Programa de Ação Cultural (ProAC, este último vinculado à Secretaria de Estado da Cultura de SP).
Apresentaremos, a seguir, um breve olhar sobre as trajetórias da Companhia Cultural Bola de Meia e da Companhia Teatro da Cidade. Somados ao Libercanto (grupo de canto coral que completa 20 anos em 2011), estes são grupos joseenses que têm conseguido manter uma trilha consistente de realizações no campo artístico ao longo das últimas duas décadas.
Debruçar-se sobre os caminhos percorridos por estes grupos permitirá entender melhor os processos do fazer artístico no contexto do município de São José dos Campos. São exemplos relevantes de qualidade no fazer artístico e resistência cultural, até mesmo por sua longevidade – ainda hoje, poucos são os grupos artísticos que atingem os 20 anos de idade no Brasil.
Companhia Cultural Bola de Meia
Fundada em 1989 por Jacqueline Baumgratz e Celso Pan, a Cia Cultural Bola de Meia é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e um ponto de referência no campo artístico de São José dos Campos. Os principais focos de trabalho da Cia são a pesquisa e transmissão da Cultura Popular Brasileira, da Tradição Oral e da Cultura da Infância.
Jacqueline, atual Coordenadora Pedagógica de Projetos Institucionais da Cia, recorda o início de sua trajetória no meio artístico:
"A minha militância cultural se dava nas favelas e comunidades principalmente através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base); sempre me mantive distante do poder político e governamental local."
Na década de 1980, Jacqueline participou da FEJOTA (Federação Joseense de Teatro Amador) e, em 1989, criou a Cia Cultural Bola de Meia, sobre a qual afirma:
"O Bola de Meia viveu até 2005 com verba de suas criações artísticas e culturais (teatro infantil, shows musicais, manifestações da Cultura Popular e cursos de aprimoramento artístico e cultural para crianças e educadores), buscando apoios e patrocínios diretos com empresas privadas; somente há pouco tempo começou a fazer essa experiência com verba pública e através de editais."
Um marco importante para o grupo foi o reconhecimento recebido do Governo Federal: hoje a companhia é um Ponto de Cultura com projetos em nível nacional e estadual. Os Pontos de Cultura foram criados em 2004, dentro do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura (MinC). São iniciativas culturais "reconhecidas e apoiadas financeira e institucionalmente pelo Ministro da Cultura que desenvolvem ações de impacto sócio-cultural em suas comunidades" (MinC, 2011).
Atualmente, a Cia Cultural Bola de Meia tem diversos projetos selecionados pelo Ministério da Cultura (inclusive projetos premiados pelo MinC) e pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, através de editais públicos.
Além do apoio recebido nos níveis estadual e federal, colabora para a sustentabilidade da instituição o valor arrecadado através de campanhas, doações, criação e circulação de espetáculos, oficinas culturais e vendas de produtos como cds, livros, jogos e camisetas.
Companhia Teatro da Cidade
A Cia Teatro da Cidade foi criada em 1990, como Grupo Estável da Fundação Cultural. No entanto, conforme conta a atriz Andréia Barros (que atua no grupo desde sua criação), a Cia tornou-se independente, desvinculando-se da FCCR, já no final de 1993, quando começou a caminhar com suas próprias pernas. Essa ruptura teve um efeito positivo, pois a ausência de um grupo estável de teatro vinculado à Fundação Cultural acabou abrindo caminho para a formação de novos grupos teatrais, como a Companhia Cultural Velhus Novatus e a Cia Sem Máscaras, esta última voltada prioritariamente para o teatro de rua. Além disso, segundo Andréia, a Cia Teatro da Cidade passou a ter maior liberdade, por exemplo, no que se refere à definição de repertório. Não por acaso, a primeira montagem do grupo nesta nova etapa foi justamente a peça "Toda Nudez Será Castigada", de Nélson Rodrigues.
A partir daí, a produção de várias montagens da Cia Teatro da Cidade contou com o apoio da Sérgio Porto Engenharia, "independentemente da Lei de Incentivo Fiscal (LIF)", como destaca Andréia. O apoio recebido através da LIF, por outro lado, permitiu a produção das peças "Prometeu Acorrentado" e "Don Juan", bem como a circulação de "Maria Peregrina", peça de Luis Alberto de Abreu. Esta última, por sinal, veio confirmar para o grupo a máxima de Tolstói ("Para ser universal, cante a sua aldeia"): Abreu criou o texto inspirado na andarilha que viveu em São José dos Campos, e a montagem de Maria Peregrina projetou definitivamente o grupo no cenário nacional.
Outro motivo para Maria Peregrina marcar a história da Cia Teatro da Cidade é o fato de que, para criar o espetáculo, em 2000, o grupo alugou um galpão no bairro Monte Castelo. Nascia aí o Centro de Artes Cênicas (CAC) Walmor Chagas, que se tornou sede do grupo e espaço permanente de pesquisa e difusão cultural. Desde então, para a manutenção não apenas do grupo como também do próprio CAC, faz-se "de tudo um pouco": mostras, festivais, oficinas, workshops e até rifas.
Em agosto de 2010, o CAC Walmor Chagas mudou de endereço, passando a funcionar no Jardim da Granja. Aberto à comunidade, o espaço abriga cursos, oficinas, palestras e apresentações artísticas diversas, além dos ensaios do grupo.
A LIF e o FMAC
A utilização da Lei de Incentivo Fiscal (LIF) como mecanismo de fomento à produção cultural é uma alternativa que vem sendo defendida até mesmo pela própria FCCR para o financiamento de projetos artísticos no município. No entanto, tem sido cada vez mais reduzida a procura de grupos artísticos joseenses por esta modalidade de apoio. Isto pode ser explicado por diversos fatores, dentre os quais pode-se destacar a dificuldade em encontrar empresas que aceitem apoiar os espetáculos artísticos propostos, além dos entraves burocráticos para efetivar eventuais parcerias.
Artistas da cidade argumentam ainda que o caminho para obter apoio via LIF envolve concessões mercadológicas, já que uma empresa teria maior interesse em apoiar projetos que servissem de marketing para a própria empresa. Este último ponto marca provavelmente a maior diferença entre o "caminho LIF" e o "caminho FMAC", que vem sendo defendido pela comunidade artística e será detalhado a seguir.
A proposta de criação de um Fundo Municipal para Arte e Cultura (FMAC) em São José dos Campos não é nova, tendo surgido na década de 1990. Desde então, instituições e pessoas ligadas à cultura no município têm desenvolvido iniciativas em prol da aprovação e implementação efetiva do Fundo.
A ideia é simples: com a implantação do FMAC, parte dos impostos arrecadados pela Prefeitura seria destinada a projetos culturais previamente aprovados por um corpo técnico de notório saber, externo à FCCR. Os projetos, selecionados a partir de editais públicos, contemplariam as diversas linguagens artísticas e seriam realizados na própria cidade, de modo a beneficiar a comunidade joseense como um todo.
Segundo a atriz Andréia Barros,
"Em duas oportunidades, convocamos a cidade e o movimento cultural para encontros que chamamos de Cultura em Questão. Nesses encontros, foram promovidos debates inclusive com os candidatos à prefeitura (em 2004)."
Um dos mais importantes compromissos assumidos publicamente pelo então candidato Eduardo Cury, ainda em 2004, foi a criação do Fundo Municipal para Arte e Cultura. Cury assumiu a prefeitura em 2005 – mas o FMAC não foi implantado.
Desde então, em busca de alternativas para o fomento das atividades artísticas em São José dos Campos, membros da comunidade artística local têm promovido encontros para apresentar e discutir propostas para a política cultural no município.
Em 2009, a própria Fundação Cultural promoveu uma Conferência Municipal de Cultura, nas dependências do SESI São José dos Campos, com o objetivo de reunir propostas para a área cultural na cidade. Nos debates, mais uma vez foi ressaltada pela classe artística a importância da criação do Fundo Municipal para Arte e Cultura (FMAC). O movimento artístico chegou inclusive a preparar e apresentar ao Poder Público uma proposta de Projeto de Lei criando o FMAC. No entanto, o ano de 2010 terminou sem que o prefeito (reeleito) Eduardo Cury cumprisse a promessa assumida inicialmente em 2004.
Neste contexto, era natural que a classe artística retomasse sua mobilização de modo mais intenso, o que de fato ocorreu a partir do segundo semestre de 2010. Desde novembro de 2010, reuniões semanais têm sido realizadas na sede da Cia Cultural Bola de Meia para discutir política cultural – reuniões abertas não apenas aos artistas da cidade como também ao público em geral.
Paralelamente, abriu-se um debate na internet entre os interessados no tema, o que levou à criação de um grupo virtual de discussão sobre política cultural na cidade e, mais especificamente, sobre o FMAC. Como fruto das reuniões, o grupo de discussão de política cultural ("Cultura em Movimento") encaminhou à FCCR, à Prefeitura e à Câmara Municipal, em novembro de 2010, uma proposta atualizada de Projeto de Lei para a criação do FMAC. Em particular, o movimento artístico reivindicou um posicionamento oficial da Fundação Cultural em favor do Fundo.
No entanto, o Presidente da FCCR argumentou que a criação do FMAC não seria necessária, uma vez que a cidade já possuía uma Lei de Incentivo Fiscal (LIF). Este fato motivou uma nova carta encaminhada pelo movimento artístico à FCCR para esclarecer que, no entendimento da classe artística, LIF e FMAC configuram-se na verdade como caminhos bastante diferentes – e, em última análise, complementares.
De todo modo, para que a criação do FMAC seja efetivada, é necessário fazer com que o projeto seja apreciado (e aprovado) no plenário da Câmara Municipal. Uma das formas de se levar o projeto à votação na Câmara é encaminhá-lo através de iniciativa popular, o que requer a assinatura de 1% dos eleitores joseenses, conforme previsto na Lei Orgânica do Município.
Para sensibilizar a população em relação à importância do FMAC para o município e colher assinaturas para o projeto de lei de iniciativa popular propondo a criação do FMAC, o grupo "Cultura em Movimento" realizou manifestação pública no dia 18 de dezembro de 2010, em frente à Praça Afonso Pena – palco tradicional de manifestações políticas e culturais joseenses. Na ocasião, os artistas distribuíram à população um folheto de cordel explicando a diferença entre a LIF e o FMAC, e defendendo a criação deste (Barja, 2010).
Em 2011, continuam as reuniões periódicas do movimento artístico, e novas manifestações coletivas deverão ser realizadas, visando o estabelecimento de uma política cultural para o município que seja capaz de atender os anseios da população e da comunidade artística, independentemente de grupo ou partido político. Embora a criação do FMAC possa ser apontada como a bandeira principal do movimento, há diversas outras questões relevantes em pauta, como a inclusão do município no Sistema Nacional de Cultura, a possível ocupação artística do Parque Vicentina Aranha, a reabertura do Teatro Benedito Alves e o lançamento de editais públicos para eventos, prêmios, projetos e seminários nas áreas de Arte e Cultura, entre outros.
Considerações finais
Do relato efetuado, bem como dos exemplos expostos, pode-se concluir que a atividade artística na cidade ainda depende muito dos esforços de pequenos grupos bastante atuantes. A complexidade e a pluralidade do movimento artístico em São José dos Campos ficam evidentes quando se participa dos debates, por vezes acalorados, entre os artistas engajados no estabelecimento de uma política cultural efetiva para o município.
A Cultura segue em movimento. A discussão em torno da política cultural joseense e, em particular, a proposta de criação do Fundo Municipal para Arte e Cultura (FMAC), no momento, têm servido como fatores aglutinadores da classe artística em seus vários segmentos. Parece claro, porém, que a eventual criação do FMAC será apenas um primeiro passo numa longa caminhada. A análise (e fiscalização) desse tipo de iniciativa cabe à sociedade joseense como um todo, e deverá ser um processo contínuo. Como diz Maiakovski, "o mar da história é agitado".
Referências
Barja, P. Pensando política cultural. Disponível em: http://paulobarja.blogspot.com/2010/10/pensando-politica-cultural.html (consulta: 20/01/2011).
Barja, P. Cultura Pra Todo Mundo (folheto de cordel, 4p, edição artesanal, dez/2010).
Câmara Municipal de S.J.Campos. Conferência Municipal de Cultura de São José dos Campos. Disponível em: http://camarasjc.sp.tempsite.ws/clicknow/interna.php?pag=noticias&id=MTEw (consulta: 26/01/2011)
Cia Cultural Bola de Meia. Nossa História. Disponível em: http://www.ciabolademeia.org.br/historico.htm (consulta: 26/01/2011)
Cia Teatro da Cidade. A Cia. Disponível em: http://www.ciateatrodacidade.com.br/acia.htm (consulta: 26/01/2011)
Cultura em Movimento. Fundo Municipal para Arte e Cultura (FMAC). Folheto informativo, dez/2010.
Libercanto. Nossa História. Disponível em: http://www.libercantocoral.com.br/quem.php (consulta: 27/01/2011)
Ministério da Cultura. Pontos de Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura (consulta: 25/01/2011)
Periódicos
VALEPARAIBANO. Nova gestão atrai partidos aliados e consolida poder político da Fundação. 14/11/2004. São José dos Campos, 2004. Disponível em: http://jornal.valeparaibano.com.br/2004/11/14/sjc/fundac1.html (consulta: 23/01/2011)
Depoimentos
Barros, Andréia. Depoimento escrito concedido via internet, em 10/10/2010, e entrevista concedida ao autor em 24/01/2011.
Baumgratz, Jacqueline. Depoimento escrito concedido ao autor via internet, de 8 a 11/10/2010.
Cultura em movimento. Depoimentos colhidos durante encontros semanais para discussão de política cultural (Cia Cultural Bola de Meia, nov/2010 a jan/2011).
[1]Paulo Barja é músico, professor e pesquisador; mestre em Física (1996) e doutor em Ciências (2000) pela Unicamp (pós-doutorado pela USP); trabalha na Univap desde 2002, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Bioengenharia da Univap; membro da Academia Joseense de Letras e criador dos Cordéis Joseenses, com cerca de 30 títulos até o momento (www.cordeisjoseenses.blogspot.com).