Pesquisar este blog

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Relato de Flávio Melo sobre a Mostra Lino Rojas

Entre público:
Um momento poético num encontro real
A começar pela praça do Patriarca, uma grande área livre em meio à concorrência por espaços no centro de São Paulo, tudo que era pedra foi diluído, desmanchou-se no ar e na água em uma semana chuvosa de novembro de 2010, repleta de apresentações teatrais ao ar livre. Aconteceu ali mais uma Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. Foi o que houve, um encontro entre vários grupos de artistas, de pessoas, que deram outro sentido a tudo aquilo que até aquele momento estava estático.
Ali, em uma das pontas daquele espaço livre, havia duas estatuas, uma quase de frente para a outra. A maior estava de costas para a praça e a menor de frente para ela. A grande, dura e imóvel não exibia expressão alguma, mesmo com o pouso dos pássaros e os fleshs das máquinas fotográficas. A menor, carregava um teor de dúvida, despertava-me uma certa desconfiança típica de quem compra um produto ilícito. Era uma falsa estátua. Agora que sei, mais confiável que a outra.
Em meio ao furdunço central da cidade, no coração pulsante da Paulicéia e do capitalismo paulistano, existe o paradoxo entre as duas estátuas, a falsa e a verdadeira, diariamente a serem desvendadas, uma estática e outra a realizar pequenos movimentos a espera de uma moeda.
Existiu outro paradoxo no mês de novembro de 2010, ganhou vida a vida na praça do Patriarca, que pena que a estátua não viu.
Quem não resistiu bravamente como o senhor José Bonifácio, virou-se e pode assistir apresentações teatrais, circenses e brincadeiras, pode ver pessoas brincando de teatro, e quem não se vetou, brincou também. Pessoas anônimas como os artistas que ali apresentavam, reconheciam-se no anonimato e nas brincadeiras, hora e outra nas duras verdades.
Ajudaram a empurrar uma kombi, pois estavam brincando tão sério que envolveram-se, apenas para dar continuidade na brincadeira, na ficção da nau que não conseguia sair do lugar, então foram marinheiros, rebocadores e outros personagens ajudando a história a continuar. Ajudaram a história acontecer.
Acima do museu de arte e das galerias de esgoto e tubulações elétricas e telefônicas e abaixo dos trinta andares de uma grande instituição bancária, num limbo encantador, os artistas populares e os populares artistas foram prisioneiros, mágicos, foram figurinistas e maquiadores. Até o sol e a chuva participaram, desta vez juntos e por mais de uma vez acompanharam a formação das rodas, as apresentações e reivindicações como a do Manuel Pedro, uma pessoa do público que fez questão de manifestar-se ao termino de uma das apresentações, "O teatro deveria ser uma matéria na escola".
Ele, o público, manteve a roda o tempo todo, ele era a roda no aquecimento dos atores, nas conversas entre os espetáculos, depois da apresentação e no debate, aliás, como participou esse público dos debates, como queriam saber... "Quais os objetivos de fazer teatro de rua, político, social, qual a dificuldade?", perguntou como quem não entendia mas concordava com o que estava presenciando o Marcos Passareli, mais um integrante da roda que estava matando umas horas de seu trabalho para acompanhar um pouco da Mostra. E eram tantas etnias, tantas tribos... tive a impressão que o mundo viajou para São Paulo naquela semana.
Como se fez presente nesta Mostra o homem, como se fez importante para o teatro o homem, como se fez importante o homem para o homem. Sentaram-se, falaram, cantaram, seguraram estandartes, banners, seguiram artistas para se esconder do sol, depois da chuva, tornaram-se atores por minutos, talvez para sempre. O que de especial acontecia ali?
Talvez o encontro entre comuns, a maneira igualitária a qual o artista de rua coloca-se perante os outros artistas na rua, o reconhecimento das funções pessoais na coletividade conforme descreve Peter Burke no livro Cultura Popular na Idade Moderna sobre uma comunidade tribal pequena:
O artífice ou o cantor caça, pesca ou cultiva o solo como outros membros da comunidade, e estes entalham ou cantam como ele, ainda que não o façam tão bem nem com a mesma frequência. A participação das demais pessoas na apresentação artística é importante. Elas respondem a charadas e cantam em coros.
É provável que a liberdade do acontecimento em praça pública, o conteúdo simples e conhecido por uma gama de pessoas seja o convite a participação dos populares. E eles participaram!
Este ano, como aliás já vem acontecendo de outras edições, a Mostra expandiu e por isso o povo da zona norte pode ver O Filhote do Filhote de Elefante, analogias a parte, tenho a impressão de que ali, estão acostumados a ver homens bichos, primeiro tubarões que eram homens e agora estes. Os moradores da zona leste viram, Mercadores de Liberdade, a Herança de nós todos, Diásporas – uma dispersão da(s) humanidade(s) e Quem ensinou o diabo a amassar o pão? Todos já de barriga cheia de comer o pão que ele havia amassado. No centro, naquele espaço inimaginável do teatro Arena apresentou-se o Anuário Imaginário. Na praça do Patriarca, O Negrinho do Pastoreio, Sombras da luz, Aconteceu no Brasil enquanto o ônibus  não vem, Circo do só eu, O comecim das coisas, Êta vida, Reprise, Reis de fumaça, A farsa do advogado Pathelin, Terra Papagalli, Este lado para cima – isto não é um espetáculo, O pavão misterioso, Fio de pão – a lenda da Cobra Norato e A Festa da Rosinha Boca Mole.
Tudo isso acontecendo na sombra do advogado Norato o misterioso, que comia o pão da Rosinha enquanto o negrinho esperava o ônibus e apontava para cima pensando "só eu" estava no comecim. E agora? Êta reprise de acontecimentos nessa terra de papagalli!
Na 5ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, pernambucanos, campinenses, prudentinos, santistas, brasilienses, sulistas e paulistanos, todos reunidos e reunindo pequenas multidões para uma festa das culturas populares em plena praça do Patriarca ao sabor do horário comercial, lotado de pessoas.
E então, esta semana, ao menos esta semana, não viraram as costas uns para os outros, nem as estátuas nem os homens, apenas uma estátua para todos os homens, mas ela não teve escolha, nós é que tivemos.

Flavio Melo, ator e diretor do grupo teatral Nativos Terra Rasgada

Nenhum comentário: