MAMULENGO É BRINQUEDO DE RUA
Entrevista concedida a Carlos Biaggioli (setembro/06)
Há muita arte de rua e espaços alternativos sendo feita por artistas dedicados às mais variadas vertentes do que se convencionou chamar como Teatro de Bonecos: marionetes, manipulação, fantoches, sombras... e mamulengos! Tanto é que, na 1ª Mostra de Teatro de Rua da Cidade de São Paulo, realizada em setembro deste ano, fez parte um espetáculo de mamulengos apresentado na Praça do Patriarca, região central da Capital. Foi ali que o Portal da CPTconversou com o mamulengueiro Danilo Cavalcante.
Portal da CPT – Há quanto tempo você está em São Paulo?
Danilo Cavalcante – Nove anos. Sou da cidade de Canhotinho, em Pernambuco.
Portal – Como é que você começou a trabalhar com mamulengos?
Cavalcante – A primeira vez que eu vi mamulengo eu tinha 15 anos. Fui numa festa de S. Sebastião, onde vai um monte de mamulengueiro, mestre de mamulengueiro, casa de farinha, que são dois bonecos trabalhando ao mesmo tempo, e foi ali que eu entrei na barraca. Vim embora para São Paulo e comecei a trabalhar como ator, palhaço, mas não tirei da minha cabeça o mamulengo. Até que em 2004 comecei a brincar de verdade com mamulengo.
Portal – O que significa entrar na barraca?
Cavalcante – Barraca é onde ficam os bonecos. Entrar na barraca é para brincar.
Portal – É um exercício de improvisação?
Cavalcante – Não: é entrar na barraca do mamulengueiro, para brincar, mexer nos bonecos dele, dar vida aos bonecos. Mamulengo, aqui em São Paulo, se chama fantoche. Mas mamulengo possui uma estrutura própria, cabeça só de madeira, boca fechada.
Portal – E tira comédia da violência, não é? As pancadas que o boneco dá é o grande xiste cômico, a hora em que a platéia ri mais.
Cavalcante – As pessoas gostam de violência, não sei porque. Na verdade é o mal que entra, né? É o Bem contra o Mal.
Portal – Isso parece ser uma coisa muito simples, típica da arte popular nordestina: sem "psicologisse". Trabalha com o Diabo, que é uma figura alegórica muito poderosa.
Cavalcante – Com o Diabo, com a morte, com o padre e todo este cunho religioso, que é contra e é a favor...
Portal – Como é se expressar por meio de bonecos?
Cavalcante – O boneco mudou a minha vida. Se eu continuasse como palhaço e como ator aqui em São Paulo, trabalhando, com eventos também fazendo palhaço, perna de pau, se eu tivesse esta mesma função até hoje não sei se eu estaria bêbado ou jogado na sarjeta...
Portal – Quais são suas grandes referências nesta arte?
Cavalcante – Mamu Sebá, de Caruaru. Foi o primeiro mamulengueiro a me levar para dentro da barraca dele. O outro é Sandro Roberto, aqui de S. Paulo, que também é de PE. O Valdeck vi algumas vezes, mas o Sandro e o Mamu Sebá são as pessoas que mais vi e trabalhei, quem me colocou dentro do boneco.
Portal – Qual é a essência do trabalho de mamulengo? O que é importante que o artista tenha consciência, antes de ir para rua, de estabelecer a relação com o público através de bonecos?
Cavalcante – Boneco é mágico. O mamulengueiro, antes de tudo, tem que ser artesão, criador e vendedor de suas próprias histórias. É para isso que ele transfere todo o seu trabalho de artista. No meu caso, para o boneco. É um trabalho de rara beleza, sem muito luxo. A barraca é de chita, os bonecos são todos de madeira, a pintura à tinta óleo, a boca a gente pinta com esmalte para dar um colorido melhor. Mas é um espetáculo de rara beleza, um improviso.
Portal – Como é esta relação do improviso com a platéia? As gags lançadas na relação da platéia já estão preparadas, fazem parte de um repertório, ou você as cria na hora, dependendo de cada platéia?
Cavalcante – Cada platéia é um espetáculo diferente. Para adulto é de um jeito, para criança é de outra e para Terceira Idade é de outra. Cada espetáculo depende de como eles reagem. Criança é participativa até demais. Adulto viaja demais. Terceira Idade é maravilhosa. Eu tenho, na cabeça, o roteiro, mas varia de acordo com o público. É ping-pong, pergunta-e-resposta, como no circo, né? Conta até três, conta até quatro. Rosinha passou? Eles vão falar que passou, então este jogo a gente já tem marcado na cabeça, assim como a embolada, que não tem nada de improviso, que é toda decorada.
Portal – É você quem faz os seus bonecos?
Cavalcante – Sim. Tem o do Mestre Saúba, que é um boneco pequeno, e tem o seu Garó, do Messaúba. Mas o resto é tudo meu.
Portal – Hoje em dia você trabalha só com seus bonecos?
Cavalcante – Só mamulengos.
Portal – Por que sua opção por trabalhar sozinho?
Cavalcante – Eu tenho preguiça de ensaiar. Se pudesse, matava os diretores. Como não tenho muito saco, prefiro trabalhar sozinho. Meu trabalho não é ensaiado: eu vou lá e faço, improviso, no gogó — justamente por causa dessa preguiça. Eu combino com os músicos meia-hora antes, entramos e fazemos o espetáculo. Sem ensaio, nada. "Olha, eu falo isso para você", pronto e acabou. Acontece um pouquinho no circo, mas no mamulengo a gente não ensaia.
Portal – Independente de ser sozinho ou acompanhado, você está trabalha com mamulengo há quantos anos?
Cavalcante – Firmemente desde 2004. Mas vivencio o mamulengo desde os meus 15 anos, portanto, há vinte anos.
Portal – Quais são os grandes erros de quem trabalha com mamulengos?
Cavalcante – A pessoa pensar no boneco primeiramente para ganhar dinheiro. Isso é um grande equívoco. Eu acredito no dom, com o qual você nasce. Eu sou privilegiado de Deus e nasci com o dom para trabalhar com boneco. E faço só boneco hoje. Eu não faço outras coisas.
Portal – Você tem facilidade para mudanças de registro de voz. Isso é técnica? É improviso, sem querer? É uma junção disso tudo? Você trabalha bem com as duas mãos, consegue trocar um braço sozinho, enquanto o outro já está levantado, o que demanda boa coordenação motora e principalmente vocal. Existe uma preparação sua, neste sentido? Durante todos esses anos, houve da sua parte alguma preocupação com este tipo de formação?
Cavalcante – Vou ser bem sincero. Nunca parei para nada. Só olhei. Fiz assim com o Mamú Sebá: olhei, dentro da barraca dele. Olhei, criei as vozes, imaginei o boneco, botei na mão e já saiu a voz, que saiu naturalmente. Às vezes, quando eu estou muito cansado, acontece de eu trocar voz, fazer voz feminina no masculino, por causa do número de apresentações. Mas eu tomo muito cuidado. Eu não ensaio: é só na cabeça!
Portal – E quanto à sua formação? Que recursos você agregou nestes 20 anos de ofício, que hoje facilitam sua atuação com Teatro de Mamulengo?
Cavalcante – A vivência. Eu não pesquiso Teatro de Mamulengo, eu vivo o Teatro de Mamulengo, a cultura popular. Vejo muito mamulengo, muita coisa de boneco, muita coisa de palhaço – entrei no circo também, fiz algumas coisas. Vejo Teatro de Rua, teatro de palco, leio contos (Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho). Tudo isso foi material pro meu mamulengo de hoje. Porém, há pessoas muito importantes, para mim, aqui em São Paulo, como Ednaldo Freire, Cida Almeida eHeraldo Firmino, cara sensacional, pegou muito no meu pé quando eu fui fazer o estudo de palhaço lá com ele.
Portal – Então é o famoso "anti-herói" que estamos aqui entrevistando! O Teatro de Mamulengo nos reporta, nós da metrópole, ao universo nordestino, vindo das entranhas da cultura brasileira. Sendo nordestino, como você vê esta relação com o espectador urbano, das grandes capitais?
Cavalcante – As artes não têm fronteiras. Lá no Nordeste, eu já vi no sítio um boneco malfeito com uma comunicação direta demais, que pode ser apresentada do jeito que eu apresentei hoje, aqui, sem mudar absolutamente nada. É bom registrar que, aqui em S. Paulo, tem um cara que botou o mamulengo na mídia, que se chama Valdeck de Garanhus. O que eu estou conversando aqui se deve muito a ele, cujo mamulengo, nascido lá nas décadas de 60, 70, com a febre de mamulengo em Pernambuco, tinha figurinos que não eram bem arrumadinhos, eram mal-cortado, enfim. A gente já tem esta preocupação de cortar direitinho, costurar, pintar direitinho. O mamulengo que a gente apresenta aqui em S. Paulo pode ser apresentado em qualquer canto. Agora, alguns daqueles que estão sendo apresentados lá em Pernambuco, as pessoas daqui não entenderiam, por causa das piadas locais. Se você disser "é nóis na fita, meu irmão" lá no Nordeste, eles não entenderão nada. O que a gente faz aqui é uma coisa mais nacional, universal, apresentável em qualquer canto, sem nenhum problema.
Portal – Pode-se dizer que este teu espetáculo, de certa forma, no bom sentido da palavra, até dependa da platéia, no sentido da relação viva. Como você vê o Teatro de Mamulengo, como ocupação artística do espaço urbano, da rua?
Cavalcante – Ele nasceu na rua, né? É brinquedo de rua. Essa brincadeira de mexer com as pessoas é para me comunicar com elas, de elas não ficarem de braços cruzados, de responderem. É como um: "Acorda!". Às vezes, o cara está triste, de braços cruzados, eu mando ele descruzar o braço, digo que é energia negativa, o cara dá uma risada... Eu já mexi, já cumpri minha parte, que é colocar todo mundo em sintonia dentro do espetáculo.
Portal – O Teatro de Mamulengo tem uma prospecção muito boa fora do país. OBenedito, o Cabo Setenta ou o Coronel são personagens muito conhecidos. Porém, o roteiro você cria livremente, ao teu belprazer, a depender da tua relação com o público, não é?
Cavalcante – O roteiro não é fechado, tanto que hoje suprimi um boneco no final, porque eu tinha que acabar em 1 hora... Os personagens são fixos, assim como na commédia dell'arte. O Benedito é sempre o Benedito, tal como o Coronel e oCabo Setenta.
Portal – Como se fossem uma "tradução", no Brasil, dos tipos da commédia dell'arte?
Cavalcante – Isso mesmo! E aí tem a história: a surpresa de Benedito com o Boi Surubim deixado pelo Coronel Libório, quando ele vai atrás dum outro boi. À partir daí se desenvolve a história. De acordo com o público. Este é meu canovaccio.
Portal – Você tem outros canovaccios?
Cavalcante – Tem "A Batalha do Capitão Filadélfia Contra o Coisa Ruim", onde o demônio seqüestra a Rosinha, criação minha. Tem "O Mamulengo da Folia na Festa da Rosinha" e o "Boca Mole". Com estes três roteiros é que eu brinco.
Portal – Mudando um pouco de assunto, como você vê a realização desta 1ª Mostra de Teatro de Rua da cidade de S. Paulo, homenageando Lino Rojas, fundador do Instituto Pombas Urbanas?
Cavalcante – Acho importantíssimo. Uma cidade como São Paulo não ter uma mostra de Teatro de Rua? Todas as cidades têm. Cidade pequena tem festival! Espero que se esteja plantando uma semente, que tenham mais mostras. O povo precisa. O povo agradece. Uma nova formação de platéia de Teatro de Rua.
Portal – Você é um militante dentro do Movimento de Teatro de Rua de S. Paulo praticamente desde que o movimento se constituiu. Como você vê a situação atual do MTR/SP?
Cavalcante – As pessoas precisam se agrupar mais. Elas ainda ficam muito na disputa de quem é que vai liderar. Elas precisam conversar mais e ver que é um movimento, não de grupo, mas de teatro. Não é um cada um achando que é o mais importante. Seria importante haver esse encontro, pelo prazer de todos conversarem em prol do movimento, sem ficar olhando pro seu umbigo. Mas o movimento está crescendo. Ele chega lá.
Portal – Como você vê esta aproximação com o Poder Público, que culminou com a realização desta mostra?
Cavalcante – Importantíssimo. Acho que chega atrasada. A gente já bateu tanto, já correu tanto... Mas ainda acho pequeno. Ainda falta envolvimento do Estado e de uma instância federal. O Teatro de Rua é deixado de lado, como uma "coisa menor". E ele não é. É muito grande. Os mesmos custos que se tem para fazer um espetáculo de palco, se tem na rua.
Portal – Que resultados você espera depois da realização desta mostra?
Cavalcante – Espero que tenha sensibilizado o secretário, enfim, o pessoal do poder, para que tenha mais, outra mostra. Como eu disse as pessoas precisam e a gente precisa também estar mostrando nosso trabalho para as pessoas. E uma cidade como São Paulo não ter um festival de Teatro de Rua, agora ter, já é um passo importante, agora falta muito. É um pequeno degrau que a gente subiu.
Entrevista realizada por Carlos Biaggioli para o Portal da Cooperativa Paulista de Teatro, como a mesma foi retirada do ar, o entrevistador autorizou-nos a publicá-la.