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quinta-feira, 7 de março de 2019

A Kandura do Baião de Dois[1]



Márcio Silveira dos Santos[2]

As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado que vivencia, experimenta, conhece e inventa tantas coisas entre as fachadas dos prédios quanto os indivíduos no abrigo de suas quatro paredes.
(Walter Benjamin) [3]

Selma Bustamante fundou o Grupo de Teatro Baião de Dois no ano de 1989, após ter trabalhado uma década com o mestre Ilo Krugli no Grupo Ventoforte (SP). Juntamente com Edgard Lippo passaram a desenvolver no Baião pesquisas e espetáculos que abordassem a diversidade cultural do Brasil. Inquietos e ávidos pela estrada, não demoraram muito em São Paulo e partiram para o Piauí, depois de alguns anos seguiram para Manaus de barco pelos rios da Amazônia, sentindo pelo caminho o poder das águas e a força da floresta. Desde então, há mais de 20 anos, a capital amazonense se tornou a Cidade-sede para o Baião de Dois. Mestre Edgard já partiu para o mundo dos encantados da floresta e Selma segue firme na arte da cena.
Palhaça Kandura em cena - Selma Bustamante
Também há mais de duas décadas que Selma tem trabalho continuado com a palhaçaria feminina. Sua palhaça, a Kandura, surgiu das vivências, trocas e curiosidades da atriz. Aliás, acredito que o que mantém Bustamante na ativa nestes quase 40 anos dedicado as artes, como se estivesse recém-começado, seja de fato a sua curiosidade aguçada, que por sua vez fermenta a vontade de experimentar o novo. Por isso é comum encontrar Selma Bustamante agitando alguns festivais pelo país ou empenhada em realizar uma oficina daquilo que aprendeu com a palhaça Kandura, para os interessados em ampliar seu conhecimento e prática a respeito das artes circenses. Não é atoa que Selma adora a frase da poetisa Cora Coralina: Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Se tiver oportunidade faça uma oficina com Selma/Kandura.
Selma Bustamante quando ainda estava no Ventoforte 
Conheço Selma Bustamante há 10 anos e nestas andanças pelo Brasil pude assistir inúmeras apresentações dela com a Kandura, mas quero falar aqui de um trabalho específico que assisti umas quatro vezes. Trata-se do espetáculo solo de rua que ela mais tem apresentado: Se Essa Rua Fosse Minha, cuja estreia foi no ano de 2012, em Manaus (AM). O bom de assistir em diferentes Estados do país é ter observado como Selma se sai diante dos diferentes comportamentos do público, que para nós artistas de rua muitas vezes são diferenças abissais. Mas Selma se sai brilhantemente de palhaçatriz, conquista o espectador e sua Kandura espalha afetos.
O espetáculo de Teatro de Rua Se Essa Rua Fosse Minha, mostra por meio da palhaça Kandura, a vida de uma moradora de rua que carrega consigo uma história de vida baseada no cotidiano difícil de quem vive à margem, mas com o objetivo de nunca deixar de sonhar. Em silêncio, a personagem compartilha sua situação com a plateia. Segundo Selma, a peça é repleta de sensações e sentimentos de uma mulher e seu dia a dia que inclui mudanças, transformações da vida e carregam o peso da passagem do tempo. Sem fala, a palhaça Kandura vai mostrando seu universo e produzindo afeição com o público por meio de interação.
Logo do grupo de Selma Bustamante
Kandura chega à cena carregando um estojo (case) pesado de guitarra de onde tira muitos apetrechos cênicos, uma bacia grande e uma vassoura. Estabelece contato visual com a plateia e o ambiente que irá ocupar por quase uma hora. Vai começando leve, vai varrendo o espaço emitindo melodias, doce e suave, após muitas risadas da plateia, quando Kandura já conquistou a todos, sua história vai ficando densa, complexa. Há a cena do casamento, que parece ser o grande desejo não realizado de Kandura que coloca adereços de noiva e o noivo nunca chega. Cena forte. Algumas vezes alguém da plateia se habilita a casar-se com ela, mas sabemos que esse momento de dor e solidão faz parte do universo de Kandura, que logo ela vai quebrar a cena e em segundos todos estarão gargalhando quando ela deliberadamente puxa do peito um coração recortado de cor vermelho vivo e entrega para alguém que ali assisti. Eis o grande trunfo de Selma Bustamante, a capacidade de perceber o publico da rua e saber quando e como mudar o jogo das cenas. Selma e Kandura te guiam numa montanha russa de emoções.
Uma das últimas atuações foi no projeto Roda na Praça, com
 jovens palhaços manauaras
Outra cena forte é quando Kandura pega um jornal da rua e observa as notícias. Ela expõe os desassossegos com relação aos fatos vigentes. Tudo na base da comunicação visual e gestual entre público e palhaça. Ela demonstra os horrores e realiza o momento que chamo de “tá lá um corpo estendido no chão” (música de João Bosco). Kandura pega um pedaço de giz e deitada no chão desenha, com a ajuda de alguém da plateia, o contorno do seu corpo estirado. Depois encobre a cabeça com o jornal aberto. Há uma tensão e silêncio por alguns segundos e logo em seguida, após um tempo dramático, Kandura rasga o jornal na altura do nariz, ficando saliente somente o nariz vermelho da palhaça respirando, provocando assim mais uma vez gargalhada geral. Completo domínio de cena e público.

Kandura - Selma Bustamante
Certa vez Selma falou em entrevista sobre essa relação com o público:
O palhaço normalmente nos remete à piada. Ele é feito para trazer o riso, mas o riso que proporciona na gente vem de uma inadequação dele no tal como ele é. Ele não vê o mundo como os outros, e o riso é uma medalha de dois lados: só existe o riso se existir a tristeza. Por conta disso, ele também tem esse lado triste, de reflexões. E é esse jogo que o bom palhaço sabe fazer: não apenas rir, mas refletir.

Selma Bustamante também é conhecida por seu lado engajado na causa dos artistas, das leis e prêmios para cultura. Sempre participando de reuniões, colegiados e fóruns de discussões e promoções de debate sobre produção, difusão, memória e circulação artística. Selma diz que, se nem um bolo cresce sem ter fermento imagina como fica a diversidade cultural sem fomento!? Ela é firme na luta!
O riso marcante de Selma Bustamante

        A atriz, palhaça e professora-pesquisadora continua circulando pelo país, apresentando a Kandura nas aldeias da Amazônia, no alto Rio Negro, em grandes festivais internacionais no centro do país, nas comunidades ribeirinhas e nos parques e ruas requintados e-ou esquecidos das grandes metrópoles. Nos dois últimos anos tem circulado mais com o solo em Festivais de palhaçaria feminina, como o Festival Internacional de Comicidade Feminina “Esse monte de Mulher Palhaça” (2016). Também pode ser encontrada circulando ou fazendo temporadas nas praças e ruas manauaras com um grupo de jovens palhaços no espetáculo Roda na Praça (2017-2018).




[1] Selma Bustamante partiu para o mundo dos encantados da floresta e do circo etéreo entre os dias 04 e 05 de Março de 2019, como se fosse ensaiado, em plena festa de carnaval. Segundo informações de amigas e amigos presentes em seu velório Selma parecia estar tranquila e feliz nesta passagem. Em homenagem a essa grande mulher, batalhadora e guerreira incansável publicamos aqui este texto extraído do livro Um Artista de Rua Faz Mais Que Um Ministro da Cultura. SANTOS, Márcio Silveira. Porto Alegre: UEBA Editora, p. 133-136, 2018. O autor que foi grande amigo de Selma Bustamante agradece muito e deseja longa vida ao legado deixado por Selma/Kandura: Dezenas e dezenas de palhaços e palhaças espalhadas por este mundão.
[2] Márcio Silveira dos Santos é professor, pesquisador, ator, diretor, dramaturgo. Integrante do Grupo Manjericão (RS). Doutorando em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor dos livros: Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016) e Um Artista de Rua faz mais que um Ministro da Cultura (2018), UEBA Editora.
[3] BENJAMIN, Walter. Passagens. 2ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 468, 2009.