As ruas são a
morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente
agitado que vivencia, experimenta, conhece e inventa tantas coisas entre as
fachadas dos prédios quanto os indivíduos no abrigo de suas quatro paredes.
Selma
Bustamante fundou o Grupo de Teatro Baião
de Dois no ano de 1989, após ter trabalhado uma década com o mestre Ilo
Krugli no Grupo Ventoforte (SP).
Juntamente com Edgard Lippo passaram a desenvolver no Baião pesquisas e espetáculos que abordassem a diversidade cultural
do Brasil. Inquietos e ávidos pela estrada, não demoraram muito em São Paulo e
partiram para o Piauí, depois de alguns anos seguiram para Manaus de barco
pelos rios da Amazônia, sentindo pelo caminho o poder das águas e a força da floresta.
Desde então, há mais de 20 anos, a capital amazonense se tornou a Cidade-sede
para o Baião de Dois. Mestre Edgard
já partiu para o mundo dos encantados da floresta e Selma segue firme na arte
da cena.
Palhaça Kandura em cena - Selma Bustamante |
Também
há mais de duas décadas que Selma tem trabalho continuado com a palhaçaria
feminina. Sua palhaça, a Kandura, surgiu das vivências, trocas e curiosidades
da atriz. Aliás, acredito que o que mantém Bustamante na ativa nestes quase 40
anos dedicado as artes, como se estivesse recém-começado, seja de fato a sua
curiosidade aguçada, que por sua vez fermenta a vontade de experimentar o novo.
Por isso é comum encontrar Selma Bustamante agitando alguns festivais pelo país
ou empenhada em realizar uma oficina daquilo que aprendeu com a palhaça Kandura,
para os interessados em ampliar seu conhecimento e prática a respeito das artes
circenses. Não é atoa que Selma adora a frase da poetisa Cora Coralina: Feliz aquele que transfere o que sabe e
aprende o que ensina. Se tiver oportunidade faça uma oficina com
Selma/Kandura.
Selma Bustamante quando ainda estava no Ventoforte |
Conheço
Selma Bustamante há 10 anos e nestas andanças pelo Brasil pude assistir
inúmeras apresentações dela com a Kandura, mas quero falar aqui de um trabalho
específico que assisti umas quatro vezes. Trata-se do espetáculo solo de rua
que ela mais tem apresentado: Se Essa Rua
Fosse Minha, cuja estreia foi no ano de 2012, em Manaus (AM). O bom de
assistir em diferentes Estados do país é ter observado como Selma se sai diante
dos diferentes comportamentos do público, que para nós artistas de rua muitas
vezes são diferenças abissais. Mas Selma se sai brilhantemente de palhaçatriz, conquista o espectador e
sua Kandura espalha afetos.
O
espetáculo de Teatro de Rua Se Essa Rua
Fosse Minha, mostra por meio da palhaça Kandura, a vida de uma moradora de
rua que carrega consigo uma história de vida baseada no cotidiano difícil de
quem vive à margem, mas com o objetivo de nunca deixar de sonhar. Em silêncio,
a personagem compartilha sua situação com a plateia. Segundo Selma, a peça é
repleta de sensações e sentimentos de uma mulher e seu dia a dia que inclui
mudanças, transformações da vida e carregam o peso da passagem do tempo. Sem
fala, a palhaça Kandura vai mostrando seu universo e produzindo afeição com o
público por meio de interação.
Logo do grupo de Selma Bustamante |
Kandura
chega à cena carregando um estojo (case) pesado de guitarra de onde tira muitos
apetrechos cênicos, uma bacia grande e uma vassoura. Estabelece contato visual
com a plateia e o ambiente que irá ocupar por quase uma hora. Vai começando
leve, vai varrendo o espaço emitindo melodias, doce e suave, após muitas risadas
da plateia, quando Kandura já conquistou a todos, sua história vai ficando
densa, complexa. Há a cena do casamento, que parece ser o grande desejo não
realizado de Kandura que coloca adereços de noiva e o noivo nunca chega. Cena
forte. Algumas vezes alguém da plateia se habilita a casar-se com ela, mas
sabemos que esse momento de dor e solidão faz parte do universo de Kandura, que
logo ela vai quebrar a cena e em segundos todos estarão gargalhando quando ela
deliberadamente puxa do peito um coração recortado de cor vermelho vivo e
entrega para alguém que ali assisti. Eis o grande trunfo de Selma Bustamante, a
capacidade de perceber o publico da rua e saber quando e como mudar o jogo das
cenas. Selma e Kandura te guiam numa montanha russa de emoções.
Uma das últimas atuações foi no projeto Roda na Praça, com jovens palhaços manauaras |
Outra
cena forte é quando Kandura pega um jornal da rua e observa as notícias. Ela
expõe os desassossegos com relação aos fatos vigentes. Tudo na base da
comunicação visual e gestual entre público e palhaça. Ela demonstra os horrores
e realiza o momento que chamo de “tá lá
um corpo estendido no chão” (música de João Bosco). Kandura pega um pedaço
de giz e deitada no chão desenha, com a ajuda de alguém da plateia, o contorno
do seu corpo estirado. Depois encobre a cabeça com o jornal aberto. Há uma
tensão e silêncio por alguns segundos e logo em seguida, após um tempo
dramático, Kandura rasga o jornal na altura do nariz, ficando saliente somente
o nariz vermelho da palhaça respirando, provocando assim mais uma vez
gargalhada geral. Completo domínio de cena e público.
O
palhaço normalmente nos remete à piada. Ele é feito para trazer o riso, mas o
riso que proporciona na gente vem de uma inadequação dele no tal como ele é.
Ele não vê o mundo como os outros, e o riso é uma medalha de dois lados: só
existe o riso se existir a tristeza. Por conta disso, ele também tem esse lado
triste, de reflexões. E é esse jogo que o bom palhaço sabe fazer: não apenas
rir, mas refletir.
Selma Bustamante também é conhecida por seu lado engajado na
causa dos artistas, das leis e prêmios para cultura. Sempre participando de
reuniões, colegiados e fóruns de discussões e promoções de debate sobre
produção, difusão, memória e circulação artística. Selma diz que, se nem um bolo cresce sem ter fermento
imagina como fica a diversidade cultural sem fomento!? Ela é firme na luta!
O riso marcante de Selma Bustamante |
A atriz, palhaça e professora-pesquisadora continua circulando pelo
país, apresentando a Kandura nas aldeias da Amazônia, no alto Rio Negro, em grandes
festivais internacionais no centro do país, nas comunidades ribeirinhas e nos
parques e ruas requintados e-ou esquecidos das grandes metrópoles. Nos dois
últimos anos tem circulado mais com o solo em Festivais de palhaçaria feminina,
como o Festival Internacional de Comicidade Feminina “Esse monte de Mulher
Palhaça” (2016). Também pode ser encontrada circulando ou fazendo temporadas
nas praças e ruas manauaras com um grupo de jovens palhaços no espetáculo Roda na Praça (2017-2018).
[1] Selma Bustamante partiu para o
mundo dos encantados da floresta e do circo etéreo entre os dias 04 e 05 de
Março de 2019, como se fosse ensaiado, em plena festa de carnaval. Segundo
informações de amigas e amigos presentes em seu velório Selma parecia estar tranquila
e feliz nesta passagem. Em homenagem a essa grande mulher, batalhadora e
guerreira incansável publicamos aqui este texto extraído do livro Um Artista de
Rua Faz Mais Que Um Ministro da Cultura. SANTOS, Márcio Silveira. Porto Alegre:
UEBA Editora, p. 133-136, 2018. O autor que foi grande amigo de Selma
Bustamante agradece muito e deseja longa vida ao legado deixado por
Selma/Kandura: Dezenas e dezenas de palhaços e palhaças espalhadas por este
mundão.
[2] Márcio
Silveira dos Santos é professor, pesquisador, ator, diretor, dramaturgo.
Integrante do Grupo Manjericão (RS). Doutorando em Teatro pelo Programa de
Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor dos
livros: Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016) e Um Artista de Rua
faz mais que um Ministro da Cultura (2018), UEBA Editora.
[3] BENJAMIN, Walter. Passagens.
2ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 468, 2009.