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segunda-feira, 27 de abril de 2009

Corpocidade I - O passeio Público

Depois de olhar a cidade como apenas um caminhante, mais um entre tantos, o artista repassa sua vista. Lentes de aumento, olho, coração e todo o corpo se deixam então OLHAR o espaço. Rampa. Altura. Desníveis. Calçamento. Meios-fios. Círculos. Curvas que dão ao desvio. Monumentos. Abismos.
O espaço do passeio público localizado em Salvador, Teatro Vila Velha vai se sugestionando ao corpo, o corpo pleno do artista que em sua imaginação constrói imagens, muitas, imagem-poema, disformes, imagens vocais. Imagens que compreende agora espaços inteiros tomando a dimensão de si. Ali, no passeio público, o cenário-cidade se auto-define, sem medo, ousado, gigante. O artista retira-se da condição de artista, embrenha-se nos percursos, nos fluxos, para não somente encontrar o outro, mas ser ele próprio multidão. Não massa, mas extensões. Não mais um bloco de iguais feito tijolos, mas uma correnteza de múltiplos, de diferenças. O espaço sem a ação não há de ser nada, a idéia de agir sobre ele é que o tira da condição de espaço inóqüo e o potencializa em espacialidade, gerando no corpo também espacialidade. Corpo e espaço agora constituem-se “espacialidades engravidadas” em vias de vida.
É possível construir um corpo em arte a partir dessas espacialidades. É possível materializar a espacialidade como elemento de potencia artística que gera sempre um novo corpo. Espacialidade em Arte. Não uma espacialidade pura em si, mas esta espacialidade do confronto ou encontro entre Corpo/Espaço.
O passeio é público. A expressão lembra que quando as cidades modernas estavam em seus nascedouros, as andanças e deambulações, criavam no passante, passeiador, flanêur, uma aura poética e convulsiva. A cidade surpreendia e assustava. A cidade era do caminhante e carregava a promessa de um mundo novo, desconhecido que se agigantava ante o olhar de quem se demorasse um pouco mais entre as ruelas abertas recentemente.
Dessa aura o passeio público de Salvador reserva-nos quase uma nostalgia, mesmo para alguém que ali nunca esteve. Por outro lado a memória ali guardada e envelhecida fala-nos de outra cidade, não da que ficou para trás, mas daquela que está por vir, daquela que veio, daquela que vive.
O passeio público é esse espaço, de uma esquina a outra, paradoxo. E quem por ali viu esquinas? Ou pontes e arranhas-ceus? Eu vi. O passeio público é aquele espaço primeiro, aquele de uma cidade sonhada pelo olho do artista. Uma cidade salvadorinha, ou que nome possamos dar. Uma micro-potência da outra Salvador, que cumpriu a promessa de ser cosmopolita, que guardou suas memórias e se mostra ao turista. A Salvadorinha do passeio público descreve uma cartografia particular, insinua-se poema e cena no mapa do corpo do artista. O passeio público é esse espaço-potência pra quem se arriscar. De novo em desvios, abismos pontes e muitas pedras em meio ao caminho. O lugar se esconde. Vontade de revelá-lo. De revelá-lo em mim. Parece que está ao fundo, entre largas construções. Parece indiferente, poucos são os que por ali passeiam. Mas os lugares são feitos pelos olhos, pela retina dês-programada. Por que um lugar tão lindo e vivo ante meus olhos, anda assim, ás vezes como coisa nenhuma na cidade? Porque assim são os lugares, como as gentes, prenhes de relações e vidas. Prenhes também de desolação.
Volto logo em Salvador...desejo muitas vezes ser um pouco esse lugar. Desejo atravessar aqueles rumos do passeio público, descobri-los, dar voltas, entoar cantos, subir árvores, deitar nos bancos, olhar no olho dos pequenos monumentos resistentes, nem sei porquê, e ser então em Arte esse espaço tornado outro, tornado vivo.
Renata Lemes – Mestranda UNICAMP

sábado, 25 de abril de 2009

Um encontro histórico em um local com muita história



O V Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) foi um sucesso, já que afirma-se como movimento político e como uma rede inclusiva, um espaço físico e virtual onde a solidariedade fortalece seus membros, ao mesmo tempo acirra a luta e o enfrentamento com o estado mínimo e com a ideologia de mercado.

Foto: Luanda Moreno

Se ainda ficaram algumas dúvidas, muitas foram sanadas e as definições apareceram nas falas dos presentes. As maiores dificuldades de definição era sobre o que vem a ser um articulador ou esta rede. O articulador é a base ao mesmo tempo em que ajuda a ampliar esta base, ou seja, ao articular, trazendo mais articuladores para a Rede, fortalece a base, o local e o nacional, posto, um ser conseqüência do outro, daí a sua horizontalidade. Um vai e vem em que ninguém é melhor ou maior que o outro, mas que, no entanto, a ação de um reflete no do outro. Ou como disse um articulador do Rio (perdão esqueci o nome), relacionando a definição com o seu corpo: “É a partir da articulação que se gera o movimento.”

Quanto a Rede, foi frisado para não esquecermos sempre de olhar para o lado e para baixo, e eu acrescento para cima e para frente, já que a rede vai em todas as direções, mas se o alvo é nos tornarmos grandes e fortes, precisamos fortalecer o local, pois é de lá que parte o movimento. Afinal, se o articulador está no local e é dele que parte o movimento, eis aí a importância do local para pensarmos no nacional. Embora o articulador não fique limitado por nenhuma fronteira imaginária. Por fim, a melhor definição de Rede veio do poeta popular Edmilson Santini: “Rede é um tecido inteiro em movimento.” Logo, precisamos caminhar juntos, mas sempre olhando para todos os lados, para vê se os demais estão conosco, porque se alguns estiverem caminhando muito a frente a Rede pode romper. Parafraseando o companheiro gaúcho, ainda no encontro em São Paulo: numa escalada, o grupo não pode esquecer o último, pois o ritmo dele dita a velocidade do grupo.

O encontro foi feliz também do ponto de vista da escolha do local, além de lindo, tem também uma história extraordinária. A cidade, Paty do Alferes, surgiu a partir de um caminho alternativo para transportar o ouro que vinha das Minas Gerais, isto é, opunha-se ao caminho de Paraty. A rota foi aberta em 1698. A medida que foi crescendo recebeu diversos nomes: Rossa do Alferes, Sítio do Alferes, Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Alferes e Vila de Paty do Alferes. Alferes era um cargo que correspondia a 2º Tenente e Francisco Tavares, responsável por patrulhar a região naquele período, emprestou (estranhamente) seu cargo e não seu nome a região. O Tenente, digo o Alferes, começou a plantar para vender alimentos às pessoas que por ali passavam, assim começou o desenvolvimento do lugar.

No século XIX, o local que abrigou o encontro era uma fazenda, com casa grande e senzala, como pode ser constatado pela arquitetura. A região tornou-se produtora de café, abrigava, portanto, além do fazendeiro Manoel Francisco Xavier, muitos escravos. No local há um painel que conta sobre uma revolta dos escravos ocorrida em 1838, o absurdo é que vem escrita em letras pequenas, quando deveriam está em letras enormes. Os líderes foram Manoel Congo e Mariana Crioula. Na fuga/revolta havia oitenta escravos que encontraram-se com outros fugidos das regiões vizinhas. Dezesseis foram capturados e condenados, entre eles, as lideranças; estes, condenados a morte. Os nomes constam da entrada da capelinha que há no lugar. Lá também é possível vê o documento que os condenou à morte, bem como um instrumento de castigo dos escravos.

Pulando para o século XX e, em específico para Aldeia de Arcozelo – para que o texto não fique muito longo – foi inaugurada em 1965, pelo sonhador Paschoal Carlos Magno. A Aldeia tem dois teatros, um ao ar livre e outro fechado. No final da década de 70, querendo manter a Aldeia a todo custo, Paschoal Carlos Magno é obrigado vender a própria casa para pagar dívidas do lugar. Desesperado, em 1979 ameaça incendiar o lugar, já que os governantes não entendiam o seu sonho. Recebeu incentivo de todo o Brasil, que lhe enviaram notas de cruzeiros pelo correio para que pudesse salvar o lugar.

Trinta anos depois (2009) o local ainda necessita de socorro para que não deteriore ainda mais. Apesar de pertencer ao Governo Federal, alguns pavilhões estão em completa ruína e interditados, uma prova de como é tratado nossa história, nossa memória e nossa arte. Portanto o local afirma-se como resistência: resistência ao tempo, ao descaso dos governantes, resistência civil e cidadã, por parte dos escravos que lutaram por liberdade, resistência de Paschoal Carlos Magno, que buscou incentivar as artes brasileira, sobretudo o teatro.

Se o Brasil foi invadido 509 e nove anos atrás, em 2009 o Brasil afirma seus valores, sua arte e sua cultura popular no Encontro da RBTR na Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes. Não é a toa a data, assim podemos afirmar o verdadeiro Brasil que luta contra a classe dominante que insiste em não vê o verdadeiro Brasil. Por isso nosso encontro em uma aldeia, justamente para reafirmar nossos valores guerreiros. Arcos e flechas nas mãos guerreiros da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

Adailtom Alves 25/04/09 – 00:08

Carta de Arcozelo

A Rede Brasileira de Teatro de rua reunida na Aldeia de Arcozelo, Paty do Alferes, Rio de janeiro, após 509 anos de domínio ideológico, resgatando a importância histórica e, inspirado no sonho do saudoso Paschoal Carlos Magno, vem afirmar por meio deste documento a luta pela possibilidade de uma nova ordem, por um mundo socialmente mais justo.
Nos dias 20, 21 e 22 de abril de 2009, no seu 5º Encontro, a Rede reafirma sua missão: de lutar por políticas públicas culturais com investimento direto do Estado em todas as instâncias: municípios, Estados e União, para garantir o direito à produção e o acesso aos bens culturais a todos os cidadãos brasileiros.
A Rede Brasileira de Teatro de Rua criada em março de 2007, em Salvador/BA, é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os artistas-trabalhadores e grupos pertencentes a ela podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais, suas ações e pensamentos.
O intercâmbio da Rede Brasileira de Teatro de Rua ocorre de forma presencial e virtual, entretanto toda e qualquer deliberação é feita nos encontros presenciais, sendo que seus membros farão, ao menos, dois encontros anuais. Os articuladores de todos os Estados, bem como os coletivos regionais, deverão se organizar para participarem dos Encontros.
Os articuladores da REDE BRASILEIRA DE TEATRO DE RUA dos estados do AC, AL, CE, BA, ES, GO, MA, MG, PA, PR, RJ, RR, RN, RO, RS e SP, com o objetivo de construir políticas públicas culturais mais democráticas e inclusivas, defendem:
· A representação do teatro de rua, nos Colegiados Setoriais e Conselhos das instâncias municipal, estadual e federal;
· A aprovação e regulamentação imediata da PEC 150/03, que vincula para a cultura, o mínimo de 2% no orçamento da União, 1,5% no orçamento dos estados e Distrito Federal e 1% no orçamento dos municípios;
· O direito a indicação de representantes do teatro de rua nas comissões dos editais públicos;
· A extinção da Lei Rouanet e de qualquer mecanismo de financiamento que utilize a renúncia fiscal, por compreendermos que a utilização da verba pública deve se dar através do financiamento direto do Estado, por meio de programas e editais em forma de prêmios elaborados pelos segmentos organizados da sociedade; Para tanto em apoio ao movimento 27 de março sugerimos modificações no PROFIC (anexo);
· A criação de um programa específico que contemple: produção, circulação, formação, registro, documentação, manutenção e pesquisa para o teatro de rua;
· Que os espaços públicos (ruas, praças e parques, entre outros), sejam considerados equipamentos culturais e assim contemplados na elaboração de editais de políticas públicas e no Plano Nacional de Cultura;
· A extinção de toda e qualquer cobrança de taxas, bem como a desburocratização para as apresentações de teatro de rua garantindo assim o direito de ir e vir e a livre expressão artística;
· Queremos construir uma política de Estado em contraponto a políticas de eventos que o mercado vem nos impingindo. As iniciativas de governo em criar editais para as artes devem ser transformados em leis para a garantia de sua continuidade. O Teatro de rua é um símbolo de resistência artística, comunicador e gerador de sentido, além de ser propositor de novas razões no uso dos espaços públicos abertos. Assim, instituímos o dia 27 de março, dia mundial de teatro e circo, como o dia de mobilização nacional por políticas públicas e conclamamos os artistas-trabalhadores e a população brasileira a lutarem pelo direito á cultura e a vida. “O país se apresenta pelo teatro que representa”. (Paschoal Carlos Magno) 22 de abril de 2009 Aldeia de Arcozelo, Paty do Alferes, Rio de Janeiro Rede Brasileira de Teatro de Rua

Anexo
Modificações no PROFIC
Art. 2º... ... V. - Programas setoriais de artes, criados por leis especificas, com orçamentos e regras próprias.
(...)
§ 2º Fica instituído o programa Prêmio Teatro Brasileiro a ser definido em Lei específica, com o objetivo de incentivar o desenvolvimento do teatro brasileiro e o melhor acesso da população ao mesmo, através do fomento a:
I – Núcleos artísticos teatrais nas suas diversas modalidades, com trabalho continuado;
II – Produção de espetáculos teatrais nas suas diversas modalidades;
III – Circulação de espetáculos e/ou atividades teatrais nas suas diversas modalidades.
(...)
Art. 9º I – Dotações consignadas na Lei orçamentária anual e seus créditos adicionais, nunca inferiores ao montante da renuncia fiscal disponibilizada para o incentivo de que trata o capitulo III desta Lei, garantido o mínimo correspondente a 50% (cinquenta por cento) do orçamento do Ministério da Cultura.

sábado, 4 de abril de 2009

Introdução ao Grotesco*

Por Adailtom Alves Teixeira - Historiador e ator do Buraco d`Oráculo

Desde sua formação o Buraco d`Oráculo trabalha com um gênero específico: a farsa. Não foi uma escolha consciente, pensada. Os espetáculos nos arrastaram para esse gênero teatral, que tem uma estrutura simples e absurda. Na farsa ocorre um desmascaramento constante e o corpo assume uma importância fundamental. No nosso caso, um corpo disforme e estranho. Um corpo grotesco.

O termo grotesco vem de gruta (em italiano grota), por causa das descobertas, no século XV, de uns ornamentos “esquisitos” retirados de escavações em frente ao Coliseu. O termo sofreu variações ao longo dos tempos. Inicialmente era apenas um substantivo, adjetivou-se e chegou a categoria estética. Esteticamente o grotesco sempre existiu e sempre esteve presente nas manifestações artísticas desde a Antiguidade, antes mesmo da invenção do termo (ante litteram).

Victor Hugo foi quem elevou o grotesco a categoria estética, ao defender, no prefácio de Cromwell, a mistura do sublime com o grotesco. Mas o que vem a ser uma categoria estética? Segundo Muniz Sodré, "a categoria responde tanto pela produção e estrutura da obra quanto pela ambiência afetiva do espectador, na qual se desenvolve o gosto, na acepção da faculdade de julgar ou apreciar objetos, aparências e comportamentos." Para tanto, “necessita de uma organização dos elementos na criação do artista".

O grotesco opera por rebaixamento, "suscitando riso, horror, espanto, repulsa" e está presente no teatro, na literatura, nas artes plásticas etc. No dizer de Sodré, "o grotesco é o belo de cabeça para baixo". Ainda segundo este autor, uma categoria estética tem três planos: ­ criação, componentes e efeitos de gosto; ­ e quatro elementos: equilíbrio de forças, reação afetiva (do espectador perante a obra), valor estético (julgamento) e trânsito estético ("o grotesco pode acontecer numa pintura, num romance, num filme, na vida real e assim por diante").

Mikhail Bakhtin afirma que para entender o grotesco é necessário um mergulho na cultura popular, que para ele é pouco estudado. Estudando a cultura popular medieval e renascentista ele denominou essa estética de realismo grotesco, que tem sua expressão máxima no carnaval, que seria "a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. Essa segunda vida se construiria como "paródia da vida ordinária." Ainda segundo o autor o riso carnavalesco é um patrimônio popular, universal e ambivalente.

Bakhtin afirma que "o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento", ou seja, faz descer a terra tudo que é elevado. O riso grotesco nos libertaria das "idéias dominantes. Ao penetrar nesse mundo sentimos uma alegria especial e ‘licenciosa’ do pensamento e da imaginação."

O grotesco está associado "a escatologia, a teratologia, aos excessos corporais, às atitudes ridículas e a toda manifestação da paródia em que se produza uma tensão risível, por efeito de um rebaixamento de valores." O fenômeno grotesco manifesta-se, ainda segundo Sodré, representado ou atuado. Sendo que o representado pode estar no suporte escrito (literatura, imprensa) e imagístico (pintura, fotografia, cinema televisão etc.). No atuado o fenômeno pode ser espontâneo ("incidentes da vida cotidiana"), encenado (teatro) e carnavalesco (associado às festas e aos espetáculos circenses).

Atuado ou representado o grotesco assume "modalidades expressivas": escatológico, teratológico, chocante (misto das anteriores, visa apenas chocar) e crítico. Este último propicia um desmascaramento das convenções, rebaixando pelo riso os cânones e o "poder absoluto." A crítica é lúcida, cruel e risível.É justamente o grotesco crítico que o Buraco d`Oráculo tem trabalhado em seus espetáculos, rebaixando e desmascarando alguns tipos sociais, fazendo com que o espectador desvele através dessa operação outros valores e encontre, no dizer de Bakhtin, o "seu corpo social."

Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

  *Publicado originalmente em A Gargalhada, nº 04, Setembro/Outubro de 2006, p. 02.