Pesquisar este blog

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Um novo ciclo de conferências da cultura

       Adailtom Alves Teixeira[1]

            Foi dada a largada para um novo ciclo de conferências na área da cultura em todo o país, algumas prefeituras até já realizaram, em Porto Velho/RO, ocorre nos dias 27 e 28 de outubro de 2023; depois virão as conferências estaduais e, por fim, a IV Conferência Nacional de Cultura entre 04 a 08 de março de 2024, em Brasília. Tais processos tomam como tema “Democracia e direito à cultura”, divididos em seis eixos de debate.

            Com vistas a uma rápida discussão, tomarei aqui o Eixo I: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura, que tem como centralidade os mecanismos de participação social. Penso que erros do passado, somados à tragédia dos últimos seis anos (2017-2022) fez com que os organizadores vissem como fundante tal participação social. Se ocorrerá e como ocorrerá, bem como se tais processos serão realmente democráticos, são outras questões que precisarão ser avaliados posteriormente.

            A perspectiva é que se avance para uma política de Estado e não de governo como tem sido recorrente em nossa história e para isso é fundante o processo democrático, faz-se necessário radicalizar a participação social. O objetivo de uma política efetiva é urgente e necessário para a estabilidade do setor, sempre com pires não mão e em descontinuidade, tendo seu órgão máximo, o Minc, inclusive extinto. O processo de institucionalização, por sua vez, não pode ser desassociado dos valores democráticos, como apregoa o documento de orientação do Eixo I. Nesse sentido, recuperam as proposições de cidadania cultural de Marilena Chaui, quando ela esteve à frente da gestão pública de cultura na cidade de São Paulo, quando Luiz Erundina era prefeita (1989-1992).

As proposições da pensadora, publicadas posteriormente no livro Cidadania cultural (2006), elenca como prioridades “garantir direitos existentes, criar novos direitos e desmontar privilégios” (CHAUI, 2006, p. 65). Para tanto, recusa três concepções de cultura muito comum nas estruturas do Estado brasileiro em seus diversos entes: “a da cultura oficial produzida pelo Estado, a populista e a neoliberal” (2006, p. 67). Ou seja, procura viabilizar a cultura como direito de cidadãos e cidadãs “e como trabalho de criação” (2006, p. 67).

Desse modo, a cultura não pode ser determinada pelos dirigentes, nem servir a um processo populista que tende a ver a cultura pelo alto, isto é, apropria-se e depois devolve “a verdadeira cultura” ao povo, e muito menos ser vista pelo olhar do mercado, definida pela indústria cultural e da política efêmera dos eventos. Chaui alerta ainda que o direito à cultura não pode ser confundido “com as figuras do consumidor e do contribuinte” (2006, p. 69). Direito à cultura é entendido da seguinte maneira:

- o direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos significados culturais;

- o direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural;

- o direito de usufruir dos bens da cultura, criando locais e condições e acesso aos bens culturais para a população;

- o direito de estar informado sobre os serviços culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou usufruir;

- o direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do município;

- o direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades;

- o direito a espaços para reflexão, debate e crítica;

- o direito à informação e à comunicação” (CHAUI, 2006. P. 70-1).

 

Para mais discussões acerca desse ponto, além da própria obra de Chaui (2006), recomendo dois textos curtos, aqui e aqui.

No que tange aos Marcos legais, a Constituição Federal (CF) dão régua e compasso, tendo muitos artigos que tratam da cultura, desde aqueles dos direitos fundamentais, os que tratam da família, da organização do Estado, da comunicação social, dentre outros, mas são, sobretudo os Artigos 215 e 216 que asseguram os direitos na área da cultura. Entretanto, precisamos avançar e o ciclo das conferências são os espaços para isso (mas não só). O Sistema Nacional de Cultura (SNC), por exemplo, garantido pelo Artigo 216-A da CF, desde 2012, ainda não foi regulamentado e tramita (ou adormece em alguma gaveta) do Congresso Brasileiro, trata-se do PL9474/18. Ainda nessa direção, parece ter havido um salto importante para a consolidação do SNC, posto que com a Lei Emergencial Paulo Gustavo houve adesão de 98,6% dos municípios e 100% dos estados, entes que compõem o pacto federativo e terão um ano para criarem o chamado CPF da cultura (Conselho, Plano e Fundo). Tais elementos são fundantes em uma política estruturante.

Porém, como ocorrerá o financiamento público e orçamentário entre os entes que compõem o pacto federativo? Daí a importância das discussões nas conferências, com vistas a avançarmos na discussão e implementação das políticas públicas de cultura, que conta com um outro aporte legal significativo, o Marco Regulatório da Cultura (PL3905/21), este também tramita no Congresso. Daí a pergunta norteadora do Eixo I: “Quais ações são necessárias para fortalecer e garantir a continuidade das políticas culturais?” Penso que, no caso de Porto Velho/RO, além de pleitearmos recursos próprios da prefeitura, para que não se fique apenas na dependência dos futuros recursos federais, cabe a luta pela criação de programas específicos, com dotação orçamentária própria, a exemplo de como há em muitas cidades brasileiras. Outro ponto importante é defendermos o "Custo Amazônico" em todas as conferências: municipal, estadual e nacional.

Ernst Fischer (1973), ao buscar responder porque a arte tem sido, é e será sempre necessária na existência dos seres humanos, lembra que nossa existência como ser não basta, todas/os/es temos a necessidade de totalidade, isto é, ansiamos por unir, por meio da arte, o nosso eu limitado a uma existência humana coletiva, ou seja, tornar social a nossa individualidade. Em seus termos:

O desejo do homem [mulheres e dos demais que não se identificam dentro da binariedade] de se desenvolver e completar indica que ele [ela] é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele [dela]. E o que um homem [mulher, não binário] sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união dos indivíduos com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias (FISCHER, 1973, p. 13).

 

            A arte nos permite vivenciar sem vivermos propriamente aquela experiência (ou, em outros termos, vivermos uma experiência de um outro tipo), permite imaginar novos mundos, nos permite conhecer melhor a humanidade e a nós mesmos, posto que é conhecimento e, a partir daí, possibilita que nos reinventemos. O papel dos entes públicos (municípios, estados e União), respeitando o que já prever a CF, é estreitar a ponte entre artistas e os fruidores (demais cidadãos e cidadãs), ao mesmo tempo que permite que fruidores possam também criar, experimentar, se expressarem também por meio da arte, para tanto a construção de políticas públicas de cultura é fundamental e estas devem ser construídas com a plena participação social. Que os ciclos das conferências sejam proveitosos para toda a sociedade. Evoé!

 

Bibliografia citada

CHAUI, Marilena. Cidadania cultural. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A EMERGÊNCIA DA FORMA-FASCISMO BOLSONARISTA: UMA DESCRIÇÃO

 

Luiz Carlos Checchia - Doutor em Humanidades pela FFLCH/USP. luiz.checchia@gmail.com

 

"Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo 'sentido'. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada direção."

Caio Prado Júnior

 

“A obra principal do fascismo é o aperfeiçoamento e organização do sistema ferroviário. Os comboios agora andam bem e chegam sempre à tabela. Por exemplo, você vive em Milão; seu pai vive em Roma. Os fascistas matam seu pai, mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro.”

Fernando Pessoa



1. UMA RÁPIDA E NECESSÁRIA INTRODUÇÃO

Por fascismo entendemos uma forma-política, ou seja, uma organização política historicamente formada que passa a existir como prática possível enquanto estiverem presentes as condições objetivas e subjetivas para tal. Nesses termos, uma forma-política, mesmo que ainda não materializada, é uma possibilidade real, como é o socialismo para as sociedades capitalistas. Também precisamos considerar que como uma forma-política, ainda que superada por outra, pode ressurgir caso as condições para sua existência não sejam eliminadas por completo, sendo a reversão capitalista que pôs fim à União Soviética seu melhor exemplo. Entendemos, assim, que o fascismo é uma forma-política possível ao capitalismo, que surge dos setores mais reacionários da pequena-burguesia quando conseguem expressar-se politicamente (POULANTZAS, 1972 e 1975).  Nem sempre essa classe consegue expressar suas expectativas políticas, pois desde o alvorecer da modernidade até a consolidação do imperialismo a história da pequena-burguesia é a história de seu enfraquecimento econômico e político. Enquanto perdia a relevância social, ela ainda assistiu ao crescimento das duas principais classes do capitalismo, a burguesia e a trabalhadora; e pior ainda, via-se cada vez mais submetida e condicionada por elas.

No entanto, a pequena burguesia pode apresentar-se como alternativa política quando as crises, comuns ao capitalismo, eclodem de forma aguda e acirram os antagonismos de classes, enfraquecendo, mesmo que momentaneamente, as demais classes e seus representantes políticos. E quando emerge politicamente, os setores reacionários da pequena-burguesia o fazem carregados de ressentimentos, regressões e contradições; o fascismo é uma das formas como podem se apresentar para a sociedade. Mas essa emergência do fascismo não segue sempre o mesmo figurino: os impactos das crises em cada nação, a conformação de suas classes, seus arranjos políticos, seus arcabouços culturais e suas composições societárias vão determinar as particularidades com que o emergirá, se de fato tais setores conseguirem se colocar politicamente. Esses são os contextos políticos em que, genericamente, emergiram o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália, conforme analisado por Poulantzas e que aqui denominamos de situação-fascista. E que nos parecem ser situações recorrentes e comuns às emergências fascistas posteriores àquelas primeiras experiências ocorridas nos anos de 1920 e 1930.

Sendo o fascismo uma forma-política que se materializa em experiências particulares, podemos falar então em forma-fascismo, entendendo esse termo com a generalização que explica cada uma de suas ocorrências históricas. E cada uma delas só é possível quando um complexo de situações torna possível a sua emergência: não haveria nazismo se um conjunto de iniciativas e eventos, alguns planejados e outros acidentais não houvesse ocorrido na Alemanha. Pensando assim, percebemos a dialética entre os grandes desenvolvimentos estruturais do capitalismo imperialista, sem as quais as experiências fascistas não teriam ocorrido, e os eventos particulares em cada país e época que levam à sua efetivação. Dessa maneira, acreditamos escapar da arapuca simplista comum a muitas análises que concluem que o fascismo é fruto unicamente do imperialismo, quase como um desdobramento mecânico dele e desprezando especificidades históricas, culturais e políticas; e, doutro lado, escapamos daquelas análises que se prendem tão somente às explicações particulares e terminam por tornarem-se cegas ao amplo espectro da luta de classes em nível geopolítico. 

Se essa formulação estiver correta, como acreditamos que esteja, pensamos que acontecimentos recentes formaram em nosso país uma situação-fascista. Acontecimentos domésticos e geopolíticos promovidos a partir de um conjunto de fatores, tais como: a crise do capitalismo que eclode em 2008; mudanças nas políticas econômicas da China; a descoberta do pré-sal e o desenvolvimento de tecnologias para sua extração por parte da Petrobras; o fortalecimento de associações transnacionais contra-hegemônicas, como os BRICS e outros mais. Esse contexto intensificou as disputas políticas internas do país, e setores reacionários que haviam estabelecido acordos com o Partido dos Trabalhadores passaram a operar no sentido de tomarem o governo de assalto, sendo a expressão “com o supremo e tudo” sua melhor ilustração. É interessante notar como a parte da burguesia que tradicionalmente é o carro chefe da dominação de classe no país (MARTINS, 1975 e 2017; FERNANDES, 1972 e 2015), tendo sua representação política mais acabada no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), é posto na situação de coadjuvante do processo. Do assalto ao governo, que se configura na deposição da presidenta Dilma Rousseff, chegou-se à eleição do atual presidente da república.

Isso posto, esclarecemos que o presente artigo apresenta um ligeiro esboço da situação-fascista que favoreceu a emergência da forma-fascismo no Brasil atual, que podemos designar de bolsonarismo. Essa situação é formada por um complexo de fatores que vão desde o lugar do Brasil no contexto da disputa geopolítica até a atualidade da luta de classes no país. Dessa maneira, esperamos prestar, ainda que pequena, uma contribuição à formulação de uma teoria do fascismo e aplicá-la para a compreensão de nosso momento histórico. Isso posto, o presente artigo faz uma descrição da situação que possibilitou a emergência da forma-fascismo bolsonarista

 

2.  A FORMAÇÃO DA SITUAÇÃO-FASCISTA BOLSONARISTA

Um conjunto de fatores históricos-políticos concorrem para a formação da situação-fascista que foi favorável à emergência do bolsonarismo. São muitos e distintos entre si, de diferentes temporalidades e intensidades. Talvez, em outras ocasiões e contextos, estivessem longe de constituírem um contexto de emergência fascista, mas sua combinação no momento histórico em que ocorreram, foram determinantes para o fortalecimento da pequena-burguesia e sua agenda fascista. Neste artigo, destacamos seis desses fatores que nos parecerem serem os mais importantes e decisivos, sendo eles: a nossa tradição nazifascista; o paroquialismo da nossa política nacional; o contexto geopolítico (sobretudo a partir da eleição de Barack Obama); os grandes atos de 2013; a deposição da presidenta Dilma Rousseff; e, por fim, os desdobramentos da Operação Lava Jato. Evidentemente que muitos outros fatores ficam de fora dessa lista, mas cremos que esses quatro já nos apresentam um panorama abrangente e suficiente para compreender nossa atualidade política. Destacamos que não estamos defendendo que a combinação desses fatores resultando numa situação-fascista tenha sido planejada por alguém ou algum grupo político. Mas sim que esses eventos, iniciados em diferentes tempos, carregados de diferentes motivações e levados por sujeitos diversos e concorrentes acabaram levando a uma síntese histórica condicionada pelas especificidades da luta de classes em nosso país e suas relações com a luta de classes em escala geopolítica. 

 

Nossa tradição nazifascista

Antes mesmo de ascensão de Hitler ao governo alemão já havia no Brasil células do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, como ocorreu em Blumenau, no Estado de Santa Catarina, como escreveu o pesquisador João Henrique Zanelatto, em seu artigo O Nazismo e o Integralismo em Santa Catarina. A pesquisadora Ana Maria Dietrich, que doutorou-se com a tese Nazismo tropical? O Partido nazista no Brasil, aponta que o partido nazista “[...] se instalou e funcionou por dez anos no Brasil, atuando em 17 Estados brasileiros, com 2.900 integrantes. Também em função das “boas relações de amizade” entre os dois governos, alemão e brasileiro, que resultou na assinatura de diversos tratados comerciais e na esfera política, da caça aos comunistas e treinamento de policiais brasileiros pela GESTAPO” (DIETRICH, 2007, p. 26).  Também a história da presença do fascismo italiano no Brasil é de primeira hora; com significativas colônias italianas, o país esteve dentre aqueles que receberam as políticas implementadas por Mussolini para os imigrantes que se adaptavam a cada situação e local, considerando suas realidades locais e interesses estratégicos. Dela faziam parte os fasci all’estero “[...] as seções do Partito Nazionale Fascista (PNF) implantadas no exterior para atingir as coletividades italianas emigradas e difundir a ideologia fascista” (BERTONHA, 2008, p. 72).

Todavia, a história do fascismo no Brasil não se resume apenas às presenças de seus representantes alemães e italianos; logo nos anos de 1920 organizações autóctones se formam no país e passaram a disputar a hegemonia do movimento fascista em nosso país (BARBOSA, 2015). O movimento acabou sendo hegemonizado pela Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada oficialmente em 1932, por Plínio Salgado, e que foi certamente “[...] o mais representativo das experiências políticas portadoras de ideologias autocráticas chauvinistas na América do Sul na primeira metade do século XX” (BARBOSA, 2015, p. 72). A AIB contava com uma capilarizada rede social e assistencial, como mostra o documentário Soldado de Deus, de Sérgio Sanz. A disputa pela hegemonia do movimento fascista no Brasil ocorreu também entre integralistas e aqueles que defendiam e professavam o fascismo italiano (BERTONHA, 2015, p. 129). A doutrina integralista nunca deixou a cena política nacional, ainda que esteja reduzida a pequenos grupos espalhados pelo país e nas redes sociais. Também o nazismo campeia em nosso país desde suas primeiras horas. 

A tradição nazifascista brasileira não se restringe às experiências no início do século, em artigo que publicamos para o portal a Terra é Redonda, intitulado Fascismo, não é só na Ucrânia, abordamos diversos momentos dessa tradição, mas destacamos aqui suas expressões mais recentes e que infestam as redes sociais, plataformas virtuais que se tornaram um importante espaço de propaganda, recrutamento e organização, dados publicados por diversos órgãos preocupados com essa questão, como fez o  Observatório do Terceiro Setor. A antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, pesquisadora da UNICAMP e que se debruça a pesquisar a atuação de grupos de extrema-direita por meio da internet, afirmou, em 2019, que 334 grupos estavam em plena atividade através de sítios eletrônicos, blogues e plataformas de compartilhamento de vídeos. Essa rede formada por todos esses espaços constitui um poderoso veículo de disseminação das teorias nazifascistas e não se encerram no meio virtual: articulam-se com a vida nas ruas, por meio de grupos que agem como gangues que ocupam bairros inteiros em constante disputa territorial. 

Entre o ex presidente Bolsonaro e tais grupos há uma identificação antiga. O veículo de notícias do portal UOL veicula, ainda em 06 de abril de 2011 – portanto, sete anos antes de sua eleição, em outubro de 2018 – a seguinte matéria: Neonazistas ajudam a convocar “ato cívico” pró-Bolsonaro em São Paulo. Tratou-se de um ato em apoio ao então deputado Jair Bolsonaro, então envolvido em polêmica provocada por declarações de cunho racista feitas em um programa de televisão. Se o ato de 2011 pode parecer algo eventual, a matéria do jornal eletrônico El País de, 09 de junho de 2020, traz o título: Sites neonazistas crescem no Brasil espelhados no discurso de Bolsonaro, aponta ONG, no qual os jornalistas Gil Alessi e Naira Hofmeister apontam as atrações mútuas entre tais agrupamentos e o ex presidente da república.

O fato é que tais organizações e militantes nazifascistas têm um longo histórico no Brasil e tiveram um importante papel na ascensão do conservadorismo no país e que veio culminar na eleição de Jair Bolsonaro para presidente da república. 

 

Contextos geopolíticos

Outro elemento a se destacar nesse complexo que acreditamos formar o ninho em que o ovo da serpente bolsonarista eclodiu é o contexto econômico e geopolítico que compreende, pelo menos, desde meados dos anos de 1990 até o ano de 2014. O início daquele período foi marcado pela alta dos preços das commodities provocados por uma série de fatos combinando desde problemas climáticos em determinadas regiões do mundo, passando pela queda do valor do dólar, até o excepcional crescimento econômico chinês, que se tornou um dos maiores consumidores de commodities no mercado internacional, dentre outros. O fato é que o Brasil foi um dos principais beneficiários dessa situação, sobretudo no final do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em quase todo o seu primeiro mandato executou políticas econômicas de austeridade. Quando o governo petista passou a se aproveitar do contexto favorável, o Brasil passou a inspirar otimismo e expirar crescimento, surgindo no horizonte global como uma das mais importantes nações do início do século XXI. Combina-se a isso a eleição de Barack Obama  para a presidência dos Estados Unidos da América, que instituiu o smart power como orientação de sua política externa, que, segundo sua secretária de Estado, Hillary Clinton, poderia ser definida como: a “gama completa de ferramentas à nossa disposição – tanto diplomáticas, econômicas, militares, quanto políticas e culturais – escolhendo a ferramenta certa, ou a combinação delas, para cada situação. Com o smart power, a diplomacia será a vanguarda da política externa”. Isso significa desde os elogios rasgados que Obama fez a Lula, ou as fotos em que aparece comendo hambúrgueres com o então presidente russo Dimitri Medvedev, ou o abraço que tentou dar em Raul Castro (dignamente frustrado pelo então chefe de Estado cubano), até o brutal assassinato de Muamar Kadafi. E para compreendermos os aspectos mais sombrios do smart power em solo pátrio citamos as ações de espionagem e sedição contra a presidente Dilma Rousseff. O sítio eletrônico WikiLeaks vazou informações denunciando o aparato de espionagem implantado pelo governo Obama sobre ela e uma série de seus assessores e outros funcionários de altos cargos estatais, demonstrando o interesse do Estado estadunidense sobre os rumos políticos e econômicos do governo brasileiro. Não podemos esquecer também a participação brasileira na organização transnacional que reúne a Rússia, a Índia, a África do Sul e a China, e que foi batizada de BRICS. A relevância geopolítica dessa organização cresceu rapidamente e se tornou mais aguda quando iniciaram as tratativas para a formação de um banco transnacional de investimentos, o New Development Bank (NDB), o que representou, naquela ocasião, uma imensa afronta ao controle econômico da geopolítica mantido pelos EUA. Em matéria veiculada pelo El País, o presidente chinês Xi Jinping falou a respeito do papel dos BRICS: “[...] aperfeiçoar o sistema de governo mundial e ampliar a representação e o direito de falar sobre assuntos internacionais de todos os países emergentes”, e a matéria segue apresentando o que pensava a presidente Dilma Rousseff: “Sobre isto, Rousseff lembrou que o banco não se faz contra o FMI, ‘mas se faz a favor de nós mesmos’, afirmou. ‘O mundo se transformou num espaço bilateral e as instituições que o representam devem ser assim’, disse”.  Mais ainda, os BRICS se movimentavam no sentido de impor um novo sentido às relações internacionais, buscando maior estabilidade para o desenvolvimento global e o fazendo por fora da esfera de influência dos EUA e da Europa ocidental. Não se tratando de uma proposta de ruptura com o capitalismo, ainda assim se coloca em oposição à lógica desregulamentada do neoliberalismo. Isso posto, não fica difícil entender que a espionagem promovida pelos EUA sobre o governo brasileiro foi motivada por interesses econômicos e geopolíticos claros de atentar contra o desenvolvimento de uma força política contra-hegemônica e, ainda, assentar o país em sua posição subordinada ao bloco imperialista sob controle estadunidense, o que se efetivou com a deposição da presidenta Dilma Rousseff.

 

O paroquialismo da política nacional e a nacionalização do “baixo-clero”

O filósofo político Marcos Nobre, professor da Universidade de Campinas, UNICAMP, em seu livro O imobilismo em movimento apresenta o pemedebismo, nome com que trata uma certa cultura política brasileira que se forma no processo de redemocratização do país, ao final da ditadura empresarial-militar. Segundo ele, o restabelecimento do regime democrático permitiu a emergência de um grande partido, o PMDB, que ocupa o centro político e que passa a formar uma “super maioria”, que em tempos recentemente tentou se autodenominar “centro democrático”, mas que continua a ser chamada popularmente de “baixo clero” ou “centrão”. Tivemos a oportunidade de definir o “baixo-clero” da seguinte forma em publicação no Le Monde Diplomatique Brasil, já citada acima: “[...] grupo de parlamentares que integram partidos sem um verdadeiro programa para o país e que se aproveitam de sua presença no parlamento para garantir que o Estado mantenha a manutenção de seus interesses e privilégios. São políticos sem expressividade nacional, verdadeiros coronéis que ainda mantém currais eleitorais em suas regiões, são como os Magalhães na Bahia, Sarneys no Maranhão, ou Calheiros em Alagoas”. Apesar de seu histórico caráter fragmentário, essa “super maioria” mantém tamanho poder parlamentar que força todos os governos a abrir negociações para que consigam aprovar seus projetos e garantir condições para governar. 

Enquanto os presidentes eleitos após a redemocratização eram oriundos do mesmo campo político que o “baixo-clero” a negociação que se estabelecia entre ambos tinha uma determinada magnitude cujo atendimento das demandas tinha por consequência manter a “super maioria” em seu caráter fragmentário. Todavia, quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o governo pela primeira vez optou pelo que o filósofo político André Singer denominou pacto conservador. Assim, passaram a fazer parte da “base aliada” do PT toda sorte de chefes políticos, lideranças neopentecostais, lideranças comunitárias conservadoras, dirigentes de sindicatos e outros mais. No entanto, no grau em que ocorreu, a associação entre os governos petistas e o "baixo-clero'' levou ao fortalecimento deste agrupamento, não apenas em nível federal, mas em conexões que se estenderam por estados e cidades em que o pacto conservador foi reproduzido. O "baixo-clero'' assim reforçado passou a constituir uma força política poderosa, nacionalizada e com uma base popular própria. Ao mesmo tempo, a renovação conservadora do Parlamento aumentou seu ímpeto disruptivo, que se materializou na formação de um campo político reacionário. Esse campo foi forte o bastante para hegemonizar o Congresso, desde então. 

Mas ainda faltava a esse movimento uma liderança que pudesse submeter e unificar suas lideranças, aglutinar esse campo em torno de um programa político unificado; três “candidatos” à assumir essa liderança se apresentaram, todos do MBD, eram eles o presidente do senado, Renan Calheiros, o presidente da câmara, Eduardo Cunha e o vice-presidente da República, Michel temer. Na contenda entre os três, saiu vitorioso o vice-presidente, sendo inevitável imaginar que a sua saída das sombras para a luz do protagonismo político seja o seu desfile vitorioso por sobre os inimigos abatidos.  Mas sua vitória não durou tanto quanto desejava, pois, por um lado, sua falta de base popular o impedia de tornar-se um líder político de fato, e, por outro, o campo reacionário mostrava-se refratário aos políticos tradicionais, mesmo os de direita. 

Jair Messias Bolsonaro não teve nenhuma participação na criação de todo esse ambiente, mas foi hábil em aproveitar-se dele, despontando das mais obscuras camadas do “baixo-clero”, até tornar-se a representação política desse campo. Até então, ele não passava de um caricato deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro por quase três décadas, chefe político carioca e capitão do exército reformado por má conduta. Bolsonaro já tinha alguma notoriedade por proferir discursos agressivos contra negros, mulheres, comunidade LGBTQIA+ e militantes de esquerda, além de saudar a ditadura empresarial-militar (1964-1985) e outros ainda com o mesmo teor. Sua verve excêntrica, fez dele uma figura presente em programas humorísticos como Casseta e Planeta, Urgente!, veiculados pela Rede Globo, entre 1992 e 2010, e Custe O Que Custar (CQC), veiculado pela Rede Bandeirantes, entre 2008 e 2015.

Olhando em retrospecto, percebe-se que sua ascensão é muito mais um efeito colateral daquele processo político do que parte dos planos da burguesia, que certamente tinha no PSDB um legítimo representante. De qualquer forma, aproveitando-se da conjuntura, Bolsonaro soube navegar naquela situação crítica, tornando-se o líder de um movimento reacionário.

 

A disputa campal por territórios e significados nos atos de 2013

2013 transcorreu como um daqueles anos em que uma única centelha pode incendiar toda a pradaria. No caso, a centelha potencialmente incendiária foram os vinte centavos acrescentados ao valor das passagens de ônibus na capital paulista. O reajuste provocou protestos mobilizados pelo Movimento Passe Livre, iniciados no dia 06 de junho daquele ano, e foram, logo no seu início, duramente reprimidos pela Polícia Militar. Protestos também ocorreram em outras cidades e capitais brasileiras, como Porto Alegre, Salvador, Goiânia e Rio de Janeiro. A matéria intitulada Saiba mais sobre os protestos em SP contra aumentos de ônibus e metrô, publicada pelo veículo de imprensa eletrônica G1, em 11 de junho de 2013, apresentou um ligeiro histórico do MPL. A matéria destaca que, desde o ano de 2004, os integrantes do coletivo ministravam formações políticas para o alunado de escolas públicas em áreas específicas da cidade de São Paulo, debatendo, a princípio, a gratuidade de passagens para a comunidade escolar e, com a ampliação do seu círculo de apoio e debates, passaram a pautar a sua gratuidade universal. Ou seja, ampliaram a pauta e passaram a promover a crítica do transporte “mercadoria” e reivindicá-lo como direito social, arrastando para a luz o que as empresas privadas de transporte gastam fortunas para manter à sombra: a privatização do direito ao transporte. E no bojo dessa crítica, provocaram o transbordamento do debate sobre todos os direitos sociais que são submetidos à lógica dos interesses privados, situação que Silvio Caccia Brava, explicou nos seguintes termos: “Essa equação de ‘quem usa é só quem paga’ é perversa porque exclui um terço dos cidadãos das regiões metropolitanas, que não têm recursos para arcar com o preço da tarifa. Estes andam a pé, alguns poucos de bicicleta. Esse modelo consagra a ideia de que o transporte público é uma mercadoria, não um direito. Só tem acesso a ele quem paga. E as empresas que o operam têm de ser lucrativas”.

Conquanto o MPL tenha mobilizado milhares de pessoas pelo país, formando uma multidão de milhões de brasileiros inconformados e em protestos contínuos e seguidamente desafiando as autoridades políticas e policiais, o Movimento passou a sofrer com a dura disputa pelos significados dos atos. Em pouco tempo os cartazes levantados pelas pessoas passaram a expor reivindicações cada vez mais difusas e moralistas, muitas de cunho chauvinista. Talvez o marco expressivo dessa disputa seja a abrupta mudança de "opinião" do comentarista político do Jornal da Globo, Arnaldo Jabor. Uma semana após o primeiro ato na cidade de São Paulo, em 13 de junho, o comentarista afirmou que os jovens na rua não passavam de “filhos da classe média” movidos tão somente por “burrice misturada a rancor e sem rumo”. Todavia, passados apenas poucos dias depois daquela intervenção, em 17 de junho, retratou-se afirmando: “uma juventude que estava calada desde 92, uma juventude que nascia quando Collor caia, acordou”. A disputa não se deu apenas pela mudança das narrativas das grandes emissoras e seus formadores de opinião: tomados por uma militância de extrema-direita que já estava em formação há muitos anos, em pouco tempo os protestos passaram a hostilizar os militantes de esquerda presentes, sendo o ápice dessa hostilização o ato do dia 20 de junho, na Avenida Paulista. Na ocasião, os militantes de extrema-direita vestidos com camisetas de cores verde e amarela insuflavam a população com organizados gritos como “abaixa a bandeira”, “sem partido” e “puta que o pariu, abaixa essa bandeira e levanta a do Brasil”. A massa mobilizada por aquela militância formou um imenso bloco que acuou e empurrou os militantes das organizações partidárias PT, PSOL, PCB, Esquerda Marxista, PSTU e outros rumo à Rua da Consolação, onde se dispersaram sob severas ameaças de agressão física. A respeito dessa virada, tive a oportunidade de escrever para o periódico Le Monde Diplomatique, em sua edição de 20 de maio de 2020: “A atuação das polícias também mudou: pararam de reprimir os manifestantes para defendê-los em suas longas caminhadas. De gritos de palavras-de-ordem passou-se a cantar o Hino Nacional, e o branco tornou-se a cor predominante em diversos atos substituindo o vermelho e negro das vestimentas dos black-blocs”.   

O ocorrido na Avenida Paulista, naquele 20 de junho de 2013, tratou-se praticamente de uma disputa campal, uma guerra por territórios. Tipo de disputa que não é nova no país: conhece-se muito a já citada Revoada dos Galinhas Verdes, na praça da Sé, mas as disputas territoriais entre fascistas e antifascistas são mais constantes do que divulgadas.

 

A deposição de Dilma Rousseff

O mundo sofreu um gigantesco abalo a partir de 2008, quando se iniciou nos EUA a crise que desarranjou o capitalismo. Na ocasião, o então presidente Lula acreditava que o mercado internacional de commodities continuaria favorável e, portanto, se a crise econômica chegasse ao país, não passaria de uma “marolinha”. Sua crença era de que seria possível superar a crise que se avolumava mantendo a contraditória combinação entre as políticas desenvolvimentistas e o atendimento dos interesses do rentismo. Como o desdobrar dos fatos mostraram, as previsões do presidente eram equivocadas, e a nossa economia estava muito mais subordinadas ao cenário global do que ele supunha, e, portanto, as políticas internas sem rompimento com aquele cenário não foram suficientes para conter a “marolinha” que era, na verdade, um vagalhão. Por isso, ao passar a faixa presidencial para sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2010, ele também lhe passava uma bomba-relógio que logo explodiria.

O primeiro mandato de Dilma se iniciou já sob as dificuldades provocadas por um mercado internacional instável ao mesmo tempo em que se formava um desconfortável contexto doméstico: o quadro econômico nacional se degradava rapidamente; o sistema financeiro passa a acossar o governo e o arranjo entre políticas desenvolvimentistas e liberais começava a se esfacelar. Aproveitando-se do momento conturbado do governo de Dilma, o PSDB buscou escapar do isolamento político tentando liderar a oposição ao Partido dos Trabalhadores, ao passo em que os meios de comunicação iniciaram um constantemente suas políticas econômicas. Se tudo isso já não fosse o suficiente, recrudesceram os ataques imperialistas capitaneados pelos EUA. Esse é o cenário em que irromperam as manifestações de julho de 2013. 

Naquele ano, milhares de jovens ocuparam as ruas para protestar contra o aumento das passagens de ônibus e questionando a relação entre o direito ao transporte e o transporte enquanto mercadoria. Em pouco tempo, o movimento foi capturado por novas palavras de ordens, associando o governo petista a toda sorte de esquemas de corrupção e acusando os partidos de esquerda de oportunismo e parasitismo. Tais palavras de ordem passaram a ser repercutidas insistentemente pela grande imprensa, por formadores de opinião e por grupos que começavam a despontar, como Vem Prá Rua e Movimento Brasil Livre. Esses grupos eram capitaneados por jovens lideranças carismáticas, propagandistas bem treinados e capacitados como Kim Kataguiri, Fernando Holiday e Rogério Chequer. Também havia diversos oportunistas que passaram a associar-se a esse amplo movimento como os músicos Roger Moreira e Lobão, o ex-ator Alexandre Frota e atores e atrizes como Marcelo Serrado, Alexandre Garcia, Susana Vieira e Luiza Tomé. Além deles, muitos outros formadores de opinião embarcaram numa verdadeira caravana antipetista e ampliaram ainda mais a repercussão anti-comunista e por uma renovação política sem participação de partidos ou agentes de esquerda, recuperando as mais confusas expressões do chamado perigo vermelho, tão propalado durante a Guerra Fria.

Apesar de todos os ataques sofridos, Dilma conseguiu reeleger-se em 2014, vencendo por uma pequena margem de votos seu adversário no segundo turno, o candidato Aécio Neves, do PSDB. No entanto, ainda que o PT tenha vencido as eleições presidenciais, foi a direita e a extrema-direita quem venceu as eleições para a composição do Congresso Nacional. Todas as manifestações, campanhas negativas e ataques de diversas naturezas, inclusive as mais bárbaras ofensas machistas contra Dilma e toda a esquerda, desencadeadas a partir de 2013, criaram um “caldo de cultura” de forte cunho reacionário, levando à eleição do mais conservador congresso desde o golpe de 1964, sobre o qual escreveu o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (2014): “O Congresso eleito em 2014, renovado em 46,59% na Câmara e em 81,48% em relação às vagas em disputa no Senado, é pulverizado partidariamente, liberal economicamente, conservador socialmente, atrasado do ponto de vista dos direitos humanos e temerário em questões ambientais”. Dito em outras palavras, o que antes só foi possível à força de um golpe, agora obteve-se pelo voto popular. Aproveitando-se desse clima, pouco após as eleições, Aécio Neves levantou nova palavra de ordem: não aceitando o resultado das eleições, passou a exigir a deposição da presidenta pela vaga acusação de “estelionato eleitoral”. Enquanto o PSDB se esforçava para voltar ao protagonismo da política nacional, o “baixo-clero”, com a faca entre dentes, percebia a formação do clima propício para virar a mesa da conciliação de classes contra quem bancava o seu almoço: os governos petistas. A maioria do Congresso começa a pressionar o governo de Dilma, utilizando para isso das chamadas “pautas-bombas”, que travavam as suas discussões e impediam o andamento de iniciativas do governo federal. Todas essas forças conservadoras, oportunistas e reacionárias passaram a concorrer no mesmo sentido: a interrupção do segundo mandato da presidenta. Sabemos suficientemente bem como se desenvolveu o processo que levou até a sua deposição, em 31 de agosto de 2016, quando se encerrou o primeiro ato do golpe que mudou o país. Michel Temer eleva-se à presidência da república e inicia as profundas reformas liberais exigidas pela burguesia, no entanto, enfrenta muita resistência e, ao fim e ao cabo, não contava com o apoio popular necessário para efetivar toda a agenda liberal esperada. E contava menos ainda com a legitimação das urnas para ocupar a cadeira em que passou a despachar. Pouco tempo após a efetivação de Michel Temer como o novo presidente da república, inicia-se a corrida eleitoral para 2018.

 

A Lava Jato e as eleições de 2018

Na manhã da segunda-feira, 17 de março de 2014, uma série de investigações da Polícia Federal foram unificadas em uma única operação, cuja alcunha era Lava Jato. Em campo, 400 agentes federais cumprindo 81 mandados de busca e apreensão descobriram a ponta de um novelo que envolvia uma ampla rede de corrupção envolvendo doleiros, empresários e dirigentes de empresas estatais. As investigações passaram a se desdobrar em diversas frentes pelo país, o que exigiu, por parte do Ministério Público Federal, a organização de forças-tarefas e outras iniciativas investigativas que acabaram sendo conhecidas genericamente como “força-tarefa da Lava Jato”. Esse empreendimento se desdobrou em mais de 80 fases de operações e mais de mil mandados de prisão, sua sede principal era o Ministério Público Federal de Curitiba, no Paraná, e graças aos seus desdobramentos o procurador da república Deltan Dallagnol e o juiz federal Sérgio Moro foram alçados à condição de verdadeiros heróis nacionais.

O que surgiu como um significativo esforço contra a corrupção sistêmica no Estado brasileiro logo se converteu em perseguição política contra a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o principal candidato à presidência em 2018, e conferiu ares de legalidade a uma das principais etapas do golpe desferido contra o povo brasileiro em 2016. Utilizando-se de vazamentos seletivos de informações para os grandes veículos de informação, Moro e parte dos procuradores que integravam a Lava Jato garantiram a contínua construção de uma campanha de convencimento que praticamente sentenciou os governos petistas ante a opinião pública, e que o Estado brasileiro, mergulhado em “esquemas de corrupção” precisaria passar por profundas transformações estruturais. Em pesquisa realizada em 2017, constatou-se que “Para 78% dos brasileiros, o nível de corrupção aumentou no país”. Graças a essa campanha as ruas passaram a ser tomadas por manifestações cada vez mais hostis que pediam a interrupção do governo Dilma enquanto ovacionavam Moro como um herói nacional. É preciso destacar que Dilma nunca se tornou alvo de investigação da Lava Jato, ainda assim, a maneira como a Força-Tarefa centrou fogo em altos cargos de seu governo e em quadros de direção do Partido dos Trabalhadores fez com que a presidente fosse tragada pelas narrativas criadas.

Enquanto ainda se organizava o golpe palaciano que depôs a presidenta Dilma Rousseff, a Lava Jato também manteve sua carga voltada contra o PT e Lula, já então com as eleições de 2018 em seu horizonte. Lula foi condenado por Sérgio Moro, em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão, no dia 12 de julho de 2017, por “crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá”. Em 28 de janeiro do ano seguinte, a oitava turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), confirmou a condenação do ex-presidente, aumentando a pena para doze anos e um mês. Um pouco mais de três meses depois, no dia 18 de abril, aquela mesma turma rejeitou o último recurso apresentado pela defesa do ex-presidente Lula, encerrando a tramitação em segunda instância do processo e tirando, em definitivo, as suas chances de concorrer às eleições daquele ano. As forças políticas do Brasil deram livre curso às investidas da Lava Jato contra diversos políticos, garantindo que muitos fossem preservados de acordo com a conveniência, como ocorreu com Geraldo Alckmin. 

Lula é impedido de concorrer às eleições, todavia, os candidatos mais afeitos aos interesses da burguesia, como Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles, por sua vez, não decolam nas pesquisas. Sob risco de ver o cavalo da oportunidade passar à sua frente sem conseguir montá-lo, a burguesia abandona seus candidatos e passa a apoiar Jair Messias Bolsonaro. O ex capitão se elegeu vencendo Fernando Haddad, com um pouco mais de 55% dos votos, encerrando assim o terceiro ato do golpe.

 

3. UMA CONCLUSÃO POSSÍVEL

O estudo da experiência recente da política brasileira à luz de tais formulações sobre o fascismo nos permite compreender como a ascensão da forma-fascismo bolsonarista não é um “ponto fora da curva”, uma excepcionalidade ou algo assim. A despeito de todo o regressismo de seu discurso, o bolsonarismo surgiu como uma contradição e uma alternativa ao lulismo e inaugurou um novo momento histórico. Essa contradição tem, como cerne, o grau profundo e promíscuo com o qual o Partido dos Trabalhadores associou-se com o “baixo-clero”, tão bem explicado no já citado livro de André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. Não podemos esquecer que quase todos os sujeitos políticos que estiveram na proa do golpe contra o governo do PT foram, anteriormente, seus associados. Mesmo Bolsonaro estava filiado ao Partido Progressista de Maluf, então na “base aliada” dos governos petistas. Evidentemente que não estamos defendendo que a ascensão do fascismo bolsonarista tenha sido parte dos planos petistas, como já dissemos. Mas as escolhas políticas feitas pelo Partido dos Trabalhadores em busca da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva levaram ao fortalecimento do “baixo-clero” enquanto enfraquecia os setores à esquerda do espectro político nacional. 

Por isso, mesmo uma eventual derrota eleitoral do bolsonarismo não o eliminará das dinâmicas da luta de classes no Brasil. Pode ser que se altere, que ganhe novos contornos e referências, mas não deixará de existir. Em seu bojo, o “baixo-clero” tornou-se uma força nacional que representa os anseios de boa parte da pequena-burguesia; o senso comum foi militarizado; o pensamento individualista avançou; o Estado profundo brasileiro ampliou-se e aprofundou-se com os militares ocuparam e hoje influenciam espectros da burocracia estatal em tal proporção nunca visto antes etc.

Na trilha aberta pela ascensão do Bolsonarismo muita coisa mudou no Brasil e isso convoca-nos a atualizar as reflexões e os debates acerca do fascismo e sua atualidade. Este artigo é um esforço neste sentido.

 

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Chauvinismo e extrema direita. Crítica aos herdeiros do sigma. São Paulo, Editora UNESP, 2015.

BERTONHA, João Fábio. Sobre a direita, estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá, Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2008.

BRAY, Mark. O manual antifascista. São Paulo, Autonomia Literária, 2019.

CARNEIRO, Márcia Regina da Silva Ramos. “Uma velha novidade: o Integralismo no século XXI.” Boletim do Tempo Presente, vol. 1, no. 03, 2012, pp. 1-26.

CHAUI, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São Paulo, Autêntica, 2013.

DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O Partido Nazista no Brasil. Tese de doutorado. Janeiro 2007.

FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972.

____________, Florestan. “Notas sobre o fascismo na América Latina.” Poder e contrapoder na América Latina, Expressão Popular, 2015.

FRESU, Gianni. Nas trincheiras do ocidente. Ponta Grossa, Editora UEPG, 2017.

GUTERMAN, Marcos. Nazistas entre nós, a trajetória dos oficiais de Hitler depois da guerra. São Paulo, Editora Contexto, 2016.

IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. Petrópolis, Editora Vozes, 1976.

LÊNIN. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo, Global Editora, 1979.

LUKÁCS, Georg. A destruição da razão. São Paulo, Instituto Lukács, 2020.

MANNHEIM, Karl. “O pensamento conservador.” Introdução crítica à Sociologia Rural, Hucitec, 1981, pp. 77-131.

MANOÏLESCO, Mihail. O século do corporativismo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1938.

MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1975.

MARTINS, José de Souza. A política do Brasil Lúmpen e místico. São Paulo, Editora Contexto, 2017.

MARX, Karl. O manifesto comunista de 1848. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1967.

MILLS, C. Wright. A elite do poder. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.

NOBRE, Marcos. O Imobilismo em movimento. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2013.

OCTAVIO, Ianni. Imperialismo e cultura. Petrópolis, Editora Vozes, 1976.

POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.

_____________, Nicos. Fascismo e ditadura. vol. I e II, Porto, Portucalense Editora, 1972.

SANTOS, Theotonio dos. Socialismo ou fascismo, o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Florianópolis, Insular, 2018.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os fascismos.” O século XX, vol. II, Civilização Brasileira, 2005, pp. 109-163.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012.

TRINDADE, Hélgio. Integralismo o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo/Rio de Janeiro, DIFEL, 1979.

WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. São Paulo, Boitempo editorial, 2014.

ZETKIN, Clara. “A luta contra o fascismo.” Como nasce e morre o fascismo, Autonomia Literária, 2019, pp. 32-75.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

A SÉRIE A SÉTIMA ARTE DA BRASIL PARALELO, APONTAMENTOS DE UMA GUERRA CULTURAL

Luiz Carlos Checchia[1]


Resumo: O artigo apresenta como a série A Sétima Arte, produzida pela empresa de conteúdos audiovisuais Brasil Paralelo, participa da Guerra Cultural empreendida atualmente pela extrema-direita brasileira. Para isso, o estudo apresenta uma rápida elaboração sobre Guerra Cultural, e a partir disso empreende uma análise nos três primeiros episódios da série, que são aqueles em que apresentam sua conceituação teórica e sua posição política. Como parte da análise em tela, debruça-se sobre alguns pontos, tais como os expedientes técnicos e estéticos, como a montagem, a música de fundo etc. Também, observa questões de conteúdo, como os temas abordados, organização do roteiro, falas de entrevistas etc. 

 

A Brasil Paralelo é uma empresa produtora de conteúdos audiovisuais fundada em Porto Alegre, no ano de 2016, e atualmente sediada na capital paulista. Seus fundadores são Filipe Valerim, que entre outras funções atua como relações públicas da empresa, Lucas Ferrugem e Henrique Viana, então recém formados pela Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio Grande do Sul. A despeito de suspeitas e obscuridades acerca do financiamento da empresa (que alega sobreviver apenas de seus sócios-assinantes nas redes sociais e plataformas de distribuição de vídeos na internet), o que nos interessa neste artigo é sua atuação como entidade inserida em meio à Guerra Cultural, atualmente empreendida pela extrema-direita brasileira. 

Segundo um de seus fundadores, Filipe Valerim, em entrevistas prestadas em diversos meios de comunicação, a motivação para a fundação da Brasil Paralelo surge do incômodo que sentiram provocado pela reeleição da presidente Dilma Rousseff, em 2014. Acreditavam que “um despertar de consciência política ganhava cada vez mais força a partir do sentimento de revolta da maioria da população”. Passados dois anos daquelas eleições e concluído o processo de deposição da presidente, esse incômodo passou a ser entusiasmo, pois, ainda segundo Valerim: "ficou claro que havia uma parcela significativa da população com o potencial de se mobilizar e gerar mudanças efetivas na rota que seguíamos”. Esse foi o ponto em que aqueles jovens resolveram fundar, utilizando câmeras e recursos emprestados, uma empresa produtora de conteúdos audiovisuais, a Brasil Paralelo. Quaisquer pesquisas rápidas no número de acessos, de visualizações e de associados às suas redes e de seu serviço próprio de compartilhamento de vídeos (streaming), o Brasil Paralelo Select, demonstra o rápido e intenso crescimento da empresa.

Seus produtos são de altíssima qualidade técnica e estética, e seus roteiros e montagens demonstram maturidade e conhecimento no manejo da comunicação de massa, evidenciando um trabalho realizado por uma equipe preparada e experiente. Os temas apresentados tratam do Brasil contemporâneo, seus problemas e origens, bem como questões ligadas à política e à cultura. 

            Todavia, por baixo da qualidade dos vídeos da Brasil Paralelo escondem-se conteúdos veiculados que fazem parte da atual Guerra Cultural em curso promovida pela extrema-direita brasileira (ROCHA, 2021). Proferidos por entrevistados apresentados como especialistas nos assuntos tratados, e revestidos com certo verniz intelectual, seus temas são na verdade mistificações que se esforçam por ocultar simplificações, distorções e mentiras sob um discurso que se pretende especializado e, portanto, irrepreensível. Toda sorte de recursos técnicos e estéticos são utilizados para provocar o efeito mistificador, do qual destaca-se o uso da trilha sonora de forma quase sub-reptícia, assim como costurar sequências narrativas que unem subtemas distintos para dar-lhes novos significados sem fazer as devidas distinções entre elas. Tais construções têm, por um dos seus principais motivos, naturalizar a ideia de que a sociedade está irremediavelmente dividida em dois grupos inconciliáveis: de um lado, os “esquerdistas” como expressão de oportunistas, abusadores, revolucionários que utilizam de todo e quaisquer meios para dominar o mundo, e do outro lado, os que defendem a sociedade e os valores humanos mais elevados.

Neste artigo abordaremos uma parte dessas produções: os três primeiros episódios da série audiovisual intitulada A Sétima Arte, que estreou em outubro de 2021, no canal no YouTube da Brasil Paralelo. A série constitui-se de oito episódios, sendo que os três primeiros apresentam a formulação conceitual de como a empresa entende a relação entre cinema e política, enquanto que os demais episódios são “estudos de caso” de diferentes filmes. Interessa-nos, aqui, não a interpretação que a Brasil Paralelo faz de cada um dos filmes nos cinco episódios finais, mas sim, entender qual é a formulação conceitual que elabora e que norteiam sua visão geral sobre a produção cinematográfica. Acreditamos e defendemos que essa formulação conceitual é uma expressão e um instrumento da Guerra Cultural em curso no Brasil, e tem por objetivo promover e popularizar revisionismos diversos e, ainda, convencer um grande público dos valores e crenças que eivam a extrema-direita. 

Este artigo é parte de pesquisa de doutoramento em curso[2] e que tem por tema a Guerra Cultural e o Fascismo no Brasil Contemporâneo.

 

Sobre Guerra Cultural

A ideia de Guerra Cultural originou-se na luta política travada entre a burguesia que, na primeira metade do século 19, se consolidava como a classe hegemônica e a Igreja Católica (CLARK, 2003). Naquela época, a burguesia havia superado o absolutismo, e parte dessa vitória política foi a constituição e consolidação dos Estados-nacionais. Como as aristocracias absolutistas eram visceralmente associadas à Igreja Católica, sendo uma necessária à outra, o ocaso do absolutismo arrastou consigo o poder papal. Como resultado, no alvorecer do século 19 o poder central da Igreja Católica se encontrava em acentuado declínio: o Papa tinha pouca influência sobre as decisões dos bispos nos diferentes Estados europeus, e eles tendiam a compromissar-se com os governantes e as classes dirigentes de cada país, desconsiderando quaisquer ordens ou orientações mais sensíveis vindas de Roma. A situação passa a mudar quando o monge Capellari é escolhido como novo Papa, em 1831, assumindo o nome de Gregório XVI. De forte espírito conservador, já em 1832, ele publica a encíclica Mirari Vos, em que condena (e chega mesmo a chamar de “loucuras”) o liberalismo e as liberdades de consciência, de expressão e de imprensa, bem como a divulgação de tais ideias por meio de livros, panfletos e outros impressos tão comuns no período.

Tanto Gregório XVI quanto seus sucessores Pio IX e Leão XIII deram início ao movimento pelo qual a Igreja Católica passou a disputar a influência política sobre a população, visando reconquistar seu antigo papel de principal aparelho ideológico da comunidade europeia. E esse é ponto central para entender a Guerra Cultural: com o surgimento do protestantismo, a Igreja Católica já havia perdido sua condição de única religião da Europa. Agora, ela também precisava disputar sua supremacia com doutrinas políticas (liberalismo, e logo depois, o socialismo) que pregavam, no mínimo, a separação entre Estado e Igreja, e no extremo, a laicidade e o ateísmo. Era preciso, então, por um lado condenar totalmente tais doutrinas e, por outro, estabelecer uma série de expedientes de convencimento em massa, o que foi feito por meio de uma série de novos dogmas que voltaram a concentrar o poder da igreja em Roma, também criaram novas ordens religiosas e ritos populares (como peregrinações e assembleias) e, sobretudo e principalmente, fortaleceram a propaganda católica por meios de jornais, livros e outros mecanismos de divulgação e disseminação da doutrina cristã. O papa voltou a ser uma figura estimada e venerada pelos católicos e o catolicismo tornou-se uma religião profundamente popular. Esse é o contexto em que políticos liberais passam a falar sobre a Guerra Cultural travada pelo catolicismo contra o liberalismo, este esforçando-se por um mundo moderno e o primeiro empenhado em manter o poder absolutista e retrógrado emanado de Roma. Assim, trata-se de uma guerra para fazer do Papa uma espécie de imperador da fé de uma grande nação, a católica, que não se limitaria pelas fronteiras de cada um dos Estados-nação e nem dos seus governos temporais. 

Já no início da década de 1990, o sociólogo estadunidense James Davison Hunter retoma o termo Guerra Cultural em seu livro Culture Wars: The Struggle to Define America, para designar a disputa cada vez mais acirrada que atravessava a sociedade dos Estados Unidos da América. Na disputa apontada por Hunter, opõem-se, de um lado, aqueles que defendiam uma visão tradicional da sociedade (baseada na moralidade conservadora judaico-cristã), e de outro lado, os movimentos que defendiam pautas como a liberalização do aborto, os direitos civis para a comunidade LGBTQIA+, a defesa de uma forma de vida baseada no vegetarianismo, a liberdade sexual irrestrita e o vanguardismo na arte, dentre outros. O que o sociólogo percebeu é que não se tratava de disputas pontuais sobre temas isolados, mas que cada um dos dois lados se viam como defensores de uma concepção profunda do que seria ser "americano". Como ilustração, ele publica em um dos capítulos do livro um excerto de debate travado naquela ocasião sobre a questão do aborto em que, de um lado está Randall Terry, porta-voz de um movimento anti-aborto, e, do outro lado, Faye Wattleton, ligada a uma organização civil de planejamento familiar. Ambos os contendores, a despeito da oposição radical entre suas ideias, as defendem em nome da mais verdadeira “tradição americana”. 

Para Hunter, a Guerra Cultural que presenciava não dizia respeito a uma transformação radical da sociabilidade estadunidense, algo como a superação do “modo de vida da América” por outro modo de vida qualquer, mas sim, de definir os marcos dessa sociabilidade. Por isso, para o sociólogo, tratava-se de definir os contornos e os significados mais profundos da cultura daquele povo. Se pensarmos no que Raymond Williams definiu como cultura comum, que é o conjunto de significados e valores que são formados pelas experiências de uma determinada comunidade e, ao mesmo tempo, seus impulsos à atualização e avanços, a Guerra Cultural testemunhada e estudada por Hunter é a disputa pelo que representa a memória e as tradições do povo estadunidense e, também, por qual caminho ambas seriam atualizadas. Isso não é pouca coisa: é tanto definir os significados do passado quanto os sentidos do futuro do país. Daí que é no presente onde estão entrincheirados os combatentes dessa guerra: organização familiar, Educação, Arte e Cultura, Ensino Superior e pesquisa, Direitos Civis, as formas de interpretar as Leis e de conduzir as instituições e outros aspectos da sociedade são, cada um e à sua maneira, um campo de batalha permanentemente mobilizado.

            Pelo pouco exposto já é possível distinguir alguns pontos de aproximação entre as duas situações (Guerra Cultural na Europa do século 19 e nos EUA, no 20) e a partir delas definirmos alguns poucos traços que nos ajudam a entender o que é Guerra Cultural em sentido amplo. O primeiro deles é que a Guerra Cultural diz respeito a uma dicotomia tida como insuperável e sem possibilidades de intercâmbio profundo entre eles. Evidentemente que na vida cotidiana mais vulgar há espaços de convivência em algum grau pacífica entre indivíduos de diferentes posições; mas também é verdade que a Guerra Cultural cria tensões que se mantêm latentes e que, em determinados momentos e contextos, escalam para conflitos de fato. Seja como for, a certeza que se coloca é a de que não há a possibilidade de síntese entre concepções de mundo diferentes. Ou seja, não há a possibilidade de política. Isso porque podemos considerar a “política” como a organização da ordem social por meio do debate entre ideias e posicionamentos contraditórios mediados por leis, procedimentos e instâncias que visam chegar a regramentos comuns a todos, vencedores ou perdedores dos debates. Todavia, a Guerra Cultural não é campo de debates entre contrários, nem é construção conjunta de um ambiente que seja a síntese das propostas debatidas, mas é o conjunto dos esforços em eliminar a participação do contrário, seja em termos políticos, ideológicos e mesmo, em casos extremos, físicos. 

Não é possível pensar nesses termos e não lembrar do nazismo, a mais extrema das experiências fascistas. A Guerra Cultural é um componente intrínseco à forma-fascismo justamente porque visa a constante redução (e se possível, a eliminação) da participação política de todo e qualquer sujeito social marcado como “indesejado”. A Guerra Cultural no fascismo é tratada como técnica e teve diferentes formuladores. Mas não há dúvidas que o ponto de partida da técnica da Guerra Cultural empreendida pelos fascistas é o livro Minha Luta, escrito por Hitler enquanto esteve preso por encabeçar uma fracassada tentativa de golpe, em 1923. No livro, o líder nazista atribui a um único “inimigo” do povo alemão, o povo judeu, todas as “mazelas” pelas quais os alemães e sua cultura estavam submetidos: marxismo, liberalismo, decadência racial, derrota na Primeira Guerra etc. Esse povo inimigo teria formulado e estava realizando uma espécie de plano para a conquista do mundo, e parte desse planejamento seria influenciar toda a intelectualidade e toda a produção artística, promover casamentos inter-raciais, atacar as tradições germânicas e ocidentais etc. A única maneira de evitar a total derrocada da alta cultura ocidental seria os alemães se levantarem contra o inimigo e seus "tentáculos" espalhados pelo mundo da cultura e da política. Da pátria do socialismo, a URSS, até as nações liberais da Europa ocidental, tudo deveria ser conquistado para a salvação da cultura alemã e a edificação de um novo mundo onde o III Reich alemão, o Reich de Mil Anos, seria o único e verdadeiro guardião do patrimônio cultural ocidental. Em Minha Luta Hitler sintetiza em mais alto grau toda a insanidade destrutiva que significa a ideia de uma Guerra Cultural, uma guerra que é sempre de aniquilação total do adversário.

 

A Série A Sétima Arte Como Instrumento de Guerra Cultural

No conjunto, os três primeiros episódios da série A Sétima Arte da empresa Brasil Paralelo cumprem uma jornada que narra uma história do cinema, apresentado como uma arte nova, de forte cunho comunitário, em que os valores e aspirações mais profundos da humanidade são projetados na tela em forma de filmes. Assim, as histórias contadas pelo cinema são quase como um rito em que o humano se encontra consigo mesmo, com o que tem de mais elevado e sublime. As grandes personagens são representações do que o humano tem de melhor, e contar suas histórias é apresentar ao público o exemplo a ser seguido. Assim, seriam como os mitos são para as comunidades primitivas, mas com um significativo diferencial: enquanto os mitos dizem respeito ao espaço restrito de cada comunidade, o cinema, sendo uma arte de massas, amplia essa comunicação para um sem número de comunidades, unificando-as sob o mesmo universo de significados. O cinema chega assim à ideia de “arte universal”.

Mas essa “arte universal" que fala do humano para os seres humanos, em algum momento do século 20, passa a ser utilizada como instrumento de propaganda. Isso foi feito, sobretudo, por russos/soviéticos, nazistas e estadunidenses. No entanto, no específico caso desses últimos, o uso propagandístico do cinema não ocorreu por interesses de controle das massas, mas por necessidades impostas pela entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial: era preciso sensibilizar o senso comum, engajar a população nos esforços de guerra e explicar-lhes o conflito e a entrada do país nele. Mas depois da guerra, alguns realizadores se veem às voltas com uma Hollywood controlada por grandes estúdios interessados em lucros, mesmo que às custas do abandono dos tradicionais valores humanos que constituíam a sociedade. Entretanto, o maior golpe sofrido pela “grande arte do cinema” ocorre no tempo presente quando o que chamam genericamente de "progressismo" passa a agir como um verdadeiro parasita, penetrando sorrateiramente nas grandes obras. Assim, antigos clássicos do cinema passam a ser refilmados ou recebem continuações mantendo seus personagens de origem, mas modificados em seus significados e sentidos, além de passarem a contar com novos personagens, mais diretamente afeitos aos interesses e ao imaginário progressistas, passando a ser instrumentos de doutrinação. Todavia, diferentemente da velha propaganda nazista, comunista ou de guerra, a doutrinação progressista age de forma sub-reptícia, imiscuindo-se nas relações cotidianas, alterando-as sem que a maioria das pessoas perceba, modificando os valores e a cultura, em detrimento das tradições que constituíram a civilização humana.  

            A narrativa apresentada pela série A Sétima Arte já se faz presente nos títulos dos três episódios, sendo o primeiro Gênesis - O Impacto do Cinema, o segundo A Queda - A Função Política do Cinema, e, por fim, o terceiro A Teoria do Parasita Pós-Moderno no Cinema. Os títulos, postos lado a lado, já resumem quase que completamente a ideia que a série deseja defender: como que uma arte que é quase que o ritual mítico moderno é tomado de assalto por interesses mundanos até que os agentes desses interesses conseguem parasitar essa arte, esvaziando-a de seus significados e usando-a como um “Cavalo-de Tróia" contra a humanidade. 

            Analisar e debater obras artísticas ou as linguagens artísticas em si, utilizando-se de diferentes referenciais estéticos e associando-as a distintos posicionamentos políticos, é próprio de sociedades em movimento e buscando alguma forma de desenvolvimento. No entanto, a série A Sétima Arte não propõe debates, mas sim atua como instrumento de Guerra Cultural, intentando a desqualificação de sujeitos (indivíduos, grupos ou organizações) que defendem posicionamentos políticos e sociais diferentes dos seus e que, portanto, entende serem socialmente nocivos. A produtora de conteúdos faz isso por meio da manipulação de diversos recursos audiovisuais bem como da construção narrativa do tema apresentado em A Sétima Arte. Assim sendo, a seguir, pretendemos passar em revista, ainda que de forma breve, algumas dessas manipulações.  

            O primeiro ponto, é a própria ideia de apresentar um manifesto, ou uma tese (como anunciam fazer no início do último dos três episódios) como um documentário. Mesmo o conceito de documentário é problemático no sentido de que seus realizadores e pesquisadores tendem a debater sua relação com a verdade (WINSTON, 2011). O estatuto da verdade é algo muito complexo, distante de um posicionamento político que se acredita ser verdadeiro por seus defensores. Daí que muito do que é apresentado como tal é, quando muito, uma versão, ou um posicionamento frente à verdade. O documentarista, quando trabalha imbuído de  honestidade ou ao menos com algum conhecimento de causa, sabe que não está pondo em tela a realidade, mas uma representação dela. Seu compromisso é tentar realizar uma representação que tenha o maior número possível de conexões com a própria realidade. Mas as conexões nunca serão totais, seja porque a verdade em si não pode ser a obra de uma pessoa ou um grupo, nem pode uma teoria abarcá-la por completo, dado que a totalidade da realidade não pode ser apreendida pela consciência humana. Assim, o documentário é sempre uma aproximação, um recorte, uma olhadela sobre a realidade comumente limitada e condicionada. Se a realidade fosse o picadeiro, o público seria o garoto que olha escondido por um buraco na lona, e o documentarista é o malandro que rasgou a lona para que o garoto pudesse entrever o espetáculo. 

            Ainda assim, o gênero documentário alcança certa credibilidade e respeitabilidade frente ao público, que tende a crer em seus conteúdos. Certo é que muitos documentaristas se preocupam em agir como verdadeiros jornalistas investigativos, lançando luzes sobre processos muitas vezes não percebidos, mesmo em fenômenos sociais de grande monta, como o documentário Ucrânia em Chamas, dirigido por Igor Lapatonok, em 2016. Mas há outros que carregam aspectos muito mais poéticos, que visam não necessariamente a exposição direta de uma ideia ou mensagem, mas se preocupam em sensibilizar o público a respeito de uma da situação ou condição sem se preocupar de definir ou cravar uma opinião a respeito. As diferentes formas de ser dos documentários podem ser organizadas em seus distintos seis modos de realização, como apresentado por Bill Nichols (2010).

            Isso posto, podemos pensar na primeira manipulação operada em A Sétima Arte. Ao longo dos dois primeiros episódios, o documentário é realizado no modo participativo, mas por meio de excertos de entrevistas prestadas por pessoas apresentadas como especialistas. Todavia, no terceiro episódio, em que se apresenta a tese defendida pela série (ou seja, que o suposto “progressismo” é um “parasita”), surge a “voz de Deus”, como é chamado o recurso em que uma locução em off narra o que é mostrado no vídeo ou pondera sobre o que significa (NICHOLS, 2010). Isso, por si, pressupõe um recurso de manipulação de sentido e significado, mas fica ainda mais contundente porque a locução não surge para apresentar o tema, mas para fazer uma afirmação determinante, a apresentação de uma tese. Assim, sutilmente, o que se apresentava como um documentário, passa a ser um manifesto, fazendo-o sem avisar ou anunciar ao público. 

            Outro recurso de manipulação diz respeito à edição do conteúdo. O uso de entrevistas é algo comum aos documentários. O seu uso visa geralmente apresentar posicionamentos, reflexões, explicações etc., de cada um dos registros dos entrevistados, coligindo-os para criar, assim, uma síntese como conclusão ou reflexão que seria, então, a opinião do documentarista. Mas na série A Sétima Arte as entrevistas são cortadas em pequenos excertos que são colados um após o outro formando um único enunciado. Todos os entrevistados compartilham das mesmas opiniões, e, portanto, os cortes em suas falas não causam contradições entre o que falaram e o que foi montado, mas para o público cria-se um discurso potencializado pelas imagens e vozes de diversos especialistas. Subjacente à edição das entrevistas está o uso constante de trilhas sonoras que servem para amplificar os efeitos emocionais do filme. Assim, em momentos em que se apresentam ideias defendidas ouvem-se músicas que vão das mais suaves e sublimes até aquelas que despertam a sensação de elevação moral. Mas quando aparecem os “inimigos”, ouvimos músicas sombrias, agressivas, que mobilizam sensações de medo, insegurança ou perigo.

Outro momento que demonstra bem como a edição que parece ser “neutra” carrega um posicionamento ocorre no segundo episódio, aos 18 minutos e 27 segundos, quando se encerra a abordagem sobre a propaganda comunista dos bolcheviques e passa-se para a propaganda nazista. Sem nenhuma mediação explicativa sobre as diferenças de ambas as ideologias e de suas propagandas, vai-se de um tema ao outro unindo-os por uma imagem do ministro da comunicação nazista, Goebbels, e uma citação sua, exibida em letreiro, em que elogia a propaganda comunista. Essa transição cria uma linha de continuidade entre comunistas e nazistas, colocando-os como que no mesmo campo de interesses e personalidade política.

Ao utilizar elementos de montagem de forma tão dissimulada, a série A Sétima Arte entra em um âmbito que não é a apresentação de um posicionamento político, a de uma representação da realidade posta para debate público etc., mas torna-se um esforço de convencimento por meio de manipulações em nível estético, portanto, pré-cognitivo.

            Se há questionamentos no uso dos recursos audiovisuais, outros e mais complexos encontram-se na narrativa construída. Ao longo dos episódios se forma a seguinte narrativa: a) o equilíbrio da sociedade repousa em um arranjo entre as pessoas e as organizações e entidades, e que se ampara em valores e tradições compartilhados entre todos; b) o cinema é a arte com o maior poder de apreender as representações societárias e sintetizá-las em obras que, apresentadas ao público, atuam como os mitos, ou seja, atualizam os significados e valores comunitários, preserva as tradições e mantém o equilíbrio do arranjo societário; c) organizações má intencionadas, que visam perturbar o arranjo societário e mudar a ordem que rege a sociedade, usam de diversos meios para efetivar seus intentos. No caso do cinema, essas organizações atuam no sentido de influenciar roteiros, alterar seus sentidos, modificar personagens etc., sempre objetivando mudar as representações e, através disso, mudar a sociedade; d) sendo assim, essas organizações não são competidoras honestas, não são adversários políticos, mas são verdadeiros “parasitas” que atuam de forma clandestina, sabotando a cultura e os costumes. E por isso, devem ser vistos como inimigos da humanidade, devemos todos denunciá-los, todos devem ficar em prontidão constante e mobilizados para rechaçar suas ofensivas. Ou seja, devem-se manter permanentemente em estado de guerra.

            Há alguns pontos desta narrativa que precisam ser destacados. Um deles é a defesa do cristianismo como uma espécie de padrão moral da sociedade. A despeito das inúmeras elaborações a respeito, sobressai-se a leitura de que o herói mítico da sociedade moderna é o herói de tipo cristão. A dramaturgia ocidental ampara-se na ideia de herói trágico conforme emergiu da tradição clássica. O documentário A Sétima Arte, por sua vez, afirma que os heróis trágicos eram aqueles que buscavam glórias eternas, eram irascíveis, vaidosos etc. Já o herói cristão é aquele cuja grandeza está em se sacrificar pela sua comunidade, pelo seu povo. Um dos “especialistas” entrevistados pela série, Bernardo Brandão, apresentado como doutor em literatura, afirma (aos 31 minutos do primeiro episódio) que: “um herói, para o grego, é alguém que tem na árvore genealógica um deus, tem sangue divino correndo nas veias, e por isso ele é maior que um ser humano comum, ele faria coisas que um ser humano comum não faria”. A seguir, vemos e ouvimos outro “especialista”, Jonathan Pageau, apresentado como “professor de semiótica e iconologia, criador da teoria do parasitismo pós-moderno”, que afirma (por volta dos 33 minutos do mesmo episódio) que: “os heróis modernos são baseados no cavaleiro cristão, ou seja, a pessoa que põe sua força a serviço de quem não pode se defender”. Tratam-se de dois erros grosseiros, primeiramente porque a ideia de um descendente divino é conhecido como semi-deus, já o herói trágico tem outra condição. Junito de Souza Brandão (1984 e 1986), Pierre Grimal e outros especialistas explicam que o herói das tradições gregas é aquele que fere uma das principais crenças antigas, que é o metrón (uma espécie de “medida de vida” atribuída pelos deuses a cada pessoa, e todas devem viver dentro de tais medidas). O ato de romper esse metrón, conhecido como hybris, põe em movimento os mecanismos de vingança divina. Aqueles que em hybris conseguem reconhecer a sua falha trágica e penitenciam-se perante os deuses aceitando os castigos que lhes são impostos, mesmo que seja a morte, são tidos como heróis. Portanto, não é a vaidade que os distingue, mas, pelo contrário, a forma superior com que tratam o reconhecimento do erro e a penitência que o expia. Isso, na verdade, não os afasta, mas, pelo contrário, os aproxima da ideia de um herói cristão no sentido de que ambos são movidos pelos desígnios de entidades divinas. Mesmo os ciclos arturianos, de onde talvez tenha emergido a ideia de um “cavaleiro cristão”, em sua origem não apresentam esse caráter generoso ou de auto-sacrifício; são mitos que originalmente tem personalidade mais bruta e só ganham contornos mais generosos quando da maior influência da Igreja Católica e, posteriormente, do romantismo. Mas esse equívoco no roteiro de A Sétima Arte, intencional ou não, é suficiente para afirmar que o herói, na origem do cinema, era a representação do herói cristão e seu constante auto desapego e generosidade em benefício de seu povo, fazendo com que o cinema fosse uma espécie de rito de revivificação do mito. Mas o uso político do cinema tornou-o objeto de propaganda, seja a estadunidense (justificada pela guerra) seja a nazista ou comunista (injustificáveis em sua essência pois ambos seriam regimes de destruição dos valores humanos para efetivar o controle sobre as pessoas). E hoje, numa escala maior, o ataque contra o cinema está além do seu uso propagandístico, ocorrendo por meio de ideias “parasitas” que se imiscuem nos antigos roteiros e heróis, alterando-os e influenciando negativamente as pessoas. E por isso, é preciso combater o “parasita” para recuperar o velho cinema, salvar o herói cristão e sua jornada de auto sacrifício e restituir como comuns os valores e tradições humanos. Não à toa, a última fala do terceiro episódio, enunciada sob uma música de cunho religioso (aos 51 minutos e 15 segundos do terceiro episódio), é: “eu acho que as pessoas saem das salas de cinema, ela tem que sair e falar assim: ‘o que a minha vida significa, qual é o sentido que a minha vida tem, como eu faço pra redescobrir a minha vida, e como esses personagens mostram o que eu perdi’, então aí o escapismo e a consolação… eles ganham uma outra conotação. O cinema desperta a pessoa pra experiência da luz”.

Um último ponto que desejamos destacar é como a série recupera os ideários estadunidenses condensados no Destino Manifesto e na Tese da Fronteira. No conjunto, esses ideários desenvolvidos entre meados do século 19 e primeiras décadas do século 20 traçam os contornos do que designamos de mentalidade conservadora estadunidense, pensando aqui no conceito de mentalidades desenvolvido pelo historiador Michel Vovelle. Essa mentalidade se expressa na crença de que os EUA são uma nação excepcional, que surgiu sem um passado feudal, e que nasceu pela luta de seus cidadãos contra o absolutismo. E que assim, pela graça de Deus, são uma nação destinada a espalhar a sua moral e o seu modo de vida para o restante do mundo. Esse espalhamento se iniciou na conquista do continente, a conquista do Oeste. Lembremos que os EUA, até meados do século 19, se restringiam à sua costa leste. E a partir daquele momento, e movido ideologicamente pelo Destino Manifesto, o povo estadunidense começa a se locomover rumo à costa oeste, ao Oceano Pacífico. No caminho, o confinamento e o extermínio de povos indígenas, guerra contra o México, compra de territórios em posse de nações europeias, devastação ambiental durante a corrida do ouro e outras barbáries (BANDEIRA, 2016). Concluído o espalhamento para o Oeste, passa-se às conquistas das Antilhas e do sudeste asiático, nas Guerras Hispano-americanas, enfim, iniciando seu processo imperialista em curso ainda hoje (ANDERSON, 2015). Mas todas as arbitrariedades, tanto na colonização interna quanto no imperialismo, se justificam pela “vontade divina”. Especificamente no processo da conquista do Oeste, ainda segundo essa mentalidade, formou-se o tipo estadunidense, alguém com espírito desbravador, que preza o núcleo familiar e a vida comunitária enquanto desconfia de toda sorte de poder estatal ou das grandes corporações. Não é um intelectual: age mais pelas convicções e pelos costumes; por isso lhe é cara a moral cristã e as tradições. Esse ideário é recuperado, na série A Sétima Arte, pela ênfase que dão ao filme A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life), de Frank Capra, de 1946. Nele, vemos todos esses elementos plasmados na tela: a valorização da vida familiar e comunitária, os donos das grandes corporações como velhacos enganadores, o espírito empreendedor, o auto sacrifício etc., junto aos cuidados prestados por Deus e seus anjos. Um filme belíssimo, com roteiro muito bem elaborado e direção impecável, carregando em seu bojo o ideário que forma a mentalidade estadunidense. A sua personagem principal, George Bailey, interpretada por James Stewart, é um pequeno empresário que graças à sua empresa familiar tem construído moradias para a população mais pobre de sua cidade, sem que, com isso, consiga ele próprio se desenvolver economicamente. Seu desejo, desde a infância, era sair da cidade para conhecer o mundo e realizar grandes obras, mas as contingências familiares o mantiveram preso à empresa fundada por seu pai e seu tio. Desiludido, sem conseguir sair de sua cidade nem propiciar uma vida um pouco menos modesta para sua família, ele decide tirar sua própria vida e está prestes a se suicidar em plena noite de Natal. É nesse momento que um anjo é enviado por Deus tendo por tarefa fazê-lo notar como seus sacrifícios pessoais foram fundamentais para o equilíbrio da sua família e da sua comunidade. George Bailey seria, então, umas das mais acabadas personificações do herói cristão defendido pela empresa Brasil Paralelo.

 

Conclusão

Toda cultura emerge de um processo de barbárie, já escreveu Walter Benjamin. Tudo o que existe como especificidade da condição humana é fruto da luta pela sobrevivência física da espécie, mas também de lutas travadas em defesa de posicionamentos políticos e ideológicos. Embates contra feras, contra a hostilidade de territórios selvagens, contra grupos humanos, contra ideias. No entanto, do desenvolvimento histórico humano emergiu a política e as leis, a tragédia Eumênides, de Ésquilo, talvez seja a melhor figuração, na cultura ocidental, dessa emergência. E desde o advento do iluminismo, a política e as leis alcançaram importantes dimensões no comportamento das sociedades. Ainda que persistam os momentos de intensos conflitos armados eles já não visam necessariamente a eliminação total do outro, como já escreveu Clausewitz, as guerras não deixam de ser forma-política: existem não para aniquilar o adversário, mas para forçá-lo a abrir rodadas de negociação. Enfim, nas palavras do militar prussiano, a guerra é a política por outros meios.

            Mas a Guerra Cultural remete a outro fenômeno moderno: a disputa por controle total dos chamados aparelhos ideológicos de Estado em sociedades já totalmente integradas pelos meios de comunicação e de cultura de massas. Embora não tenha surgido com os fascistas, foram eles quem melhor compreenderam e desenvolveram a ideia de Guerra Cultural. E no atual momento histórico, em que vemos a ascensão de lideranças fascistas em diferentes países, e em alguns deles chegando a ser eleitos, é preciso compreender a Guerra Cultural como um fenômeno político social em pleno processo e vigor.  Além disso, também é importante compreender suas dinâmicas e referências para empreendermos uma das mais tensas tarefas que temos, como nação, pela frente: a reconstrução do Brasil. 

Este pequeno artigo abordou uma das produções da empresa Brasil Paralelo (BP). Uma que teve, por enquanto, menos acessos que outras produções mais antigas e com sucesso estrondoso, como 1964, O Brasil Entre Armas e Livros e A Cruz e a Espada. No entanto, a série A Sétima Arte é a que melhor anuncia, por enquanto, o pensamento do segmento social que a BP representa. Ao teorizar o “progressismo” como um “parasita”, ao ponderar sobre uma ideia de um herói cristão e ao recuperar as ideias do Destino Manifesto e da Tese da Fronteira, a série em questão apresenta um bem detalhado mapa ideológico fascista. Ideário que não será superado facilmente e que exige maior atenção de pesquisadores e intelectuais. 

 

Bibliografia

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Editorial Presença/Martins Fontes, Lisboa, s/d. 

ANDERSON, Perry. A Política Externa Norte-Americana e Seus Teóricos. São Paulo.

Boitempo Editorial. 2015.

ÁVILA, Arthur Lima de. História e Destino: a Frontier Thesis de Frederick Jackson Turner (1861-1932). ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005. Disponível em https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019 01/1548206372_9dc83aa8d9d7912c5a34b872f42230cf.pdf

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. 2016.

BLUMER, H. “A massa, o público e a opinião pública.” Comunicação e indústria cultural, T.A. Queiroz, editor, 1987, pp. 177-186.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis, Editora Vozes, 1986.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis, Editora Vozes, 1984.

CHECCHIA, Luiz Carlos. Apontamentos acerca da formação ideológica conservadora Estadunidense e seus mecanismos de influência. disponível em: <https://www.academia.edu/76369072/Apontamentos_acerca_da_forma%C3%A7%C3%A3o_ideol%C3%B3gica_conservadora_Estadunidense_e_seus_mecanismos_de_influ%C3%AAncia>

CLARK, Christopher. Culture War, Secular-Cattholic Conflict in nineteenth-century Europe. Cambridge University Press, 2003.

ÉSQUILO. Eumênides, in Oréstia. São Paulo, Editora Companhia das Letras. 1991

GREGÓRIO XVI. Mirari Vos. Disponível em: https://www.vatican.va/content/gregorius-xvi/it/documents/encyclica-mirari-vos-15-augusti-1832.html

GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. Difusão Europeia do livro. São Paulo, 1965.

HOFSTADTER, Richard. Antiintelectualismo nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra. 1967.

HUNTER, James D. Culture Wars, The Struggle To Define America. Basic Book, 1991.

IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. Petrópolis, Editora Vozes, 1976.

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Editora Ática, 1991.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1974.

MILLS, C. Wright. A elite do poder. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.

RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 2003.

REISZ, Karel. Tecnica del montaje. Habana, Editorial Arte y Literatura, 1985.

SIGLER, Jay A. A Tradição Conservadora no Pensamento Norte-Americano. São Paulo, IBRASA. 1972

TONETE, Leandro Ribeiro. A fronteira de Frederick Jackson Turner. Uma nova história, uma nova historiografia. Revista Latino-Americana de História. 2016. Disponível em < http://revistas.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/view/622 >

TURNER, Frederick. The Significance of the Frontier in the American History. Disponível em < http://xroads.virginia.edu/~Hyper/TURNER/chapter1.html >

TURNER, Frederick. The Frontier in American History. Edição Dover, Nova York,

Editora Dover, 2010.

VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo, Boitempo editorial, 2005.

VOVELLE, Michel. Ideologia e mentalidades. São Paulo, Editora Brasiliense, 1991.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2000.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.

WILLIS, Susan. Evidências do real. São Paulo, Boitempo editorial, 2008.

WINSTON, Brian. Documentário: penso que estamos em apuros. In Tradições e Reflexões, contribuições para a teoria e estética do documentário. LabCom Books, 2011.

WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. São Paulo, Boitempo editorial, 2014.

 



[1] Doutor pelo Programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH/USP.

email: luiz.checchia@gmail.com

 

[2] Defendida no dia 18 de setembro de 2023.