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quinta-feira, 5 de outubro de 2023

A SÉRIE A SÉTIMA ARTE DA BRASIL PARALELO, APONTAMENTOS DE UMA GUERRA CULTURAL

Luiz Carlos Checchia[1]


Resumo: O artigo apresenta como a série A Sétima Arte, produzida pela empresa de conteúdos audiovisuais Brasil Paralelo, participa da Guerra Cultural empreendida atualmente pela extrema-direita brasileira. Para isso, o estudo apresenta uma rápida elaboração sobre Guerra Cultural, e a partir disso empreende uma análise nos três primeiros episódios da série, que são aqueles em que apresentam sua conceituação teórica e sua posição política. Como parte da análise em tela, debruça-se sobre alguns pontos, tais como os expedientes técnicos e estéticos, como a montagem, a música de fundo etc. Também, observa questões de conteúdo, como os temas abordados, organização do roteiro, falas de entrevistas etc. 

 

A Brasil Paralelo é uma empresa produtora de conteúdos audiovisuais fundada em Porto Alegre, no ano de 2016, e atualmente sediada na capital paulista. Seus fundadores são Filipe Valerim, que entre outras funções atua como relações públicas da empresa, Lucas Ferrugem e Henrique Viana, então recém formados pela Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio Grande do Sul. A despeito de suspeitas e obscuridades acerca do financiamento da empresa (que alega sobreviver apenas de seus sócios-assinantes nas redes sociais e plataformas de distribuição de vídeos na internet), o que nos interessa neste artigo é sua atuação como entidade inserida em meio à Guerra Cultural, atualmente empreendida pela extrema-direita brasileira. 

Segundo um de seus fundadores, Filipe Valerim, em entrevistas prestadas em diversos meios de comunicação, a motivação para a fundação da Brasil Paralelo surge do incômodo que sentiram provocado pela reeleição da presidente Dilma Rousseff, em 2014. Acreditavam que “um despertar de consciência política ganhava cada vez mais força a partir do sentimento de revolta da maioria da população”. Passados dois anos daquelas eleições e concluído o processo de deposição da presidente, esse incômodo passou a ser entusiasmo, pois, ainda segundo Valerim: "ficou claro que havia uma parcela significativa da população com o potencial de se mobilizar e gerar mudanças efetivas na rota que seguíamos”. Esse foi o ponto em que aqueles jovens resolveram fundar, utilizando câmeras e recursos emprestados, uma empresa produtora de conteúdos audiovisuais, a Brasil Paralelo. Quaisquer pesquisas rápidas no número de acessos, de visualizações e de associados às suas redes e de seu serviço próprio de compartilhamento de vídeos (streaming), o Brasil Paralelo Select, demonstra o rápido e intenso crescimento da empresa.

Seus produtos são de altíssima qualidade técnica e estética, e seus roteiros e montagens demonstram maturidade e conhecimento no manejo da comunicação de massa, evidenciando um trabalho realizado por uma equipe preparada e experiente. Os temas apresentados tratam do Brasil contemporâneo, seus problemas e origens, bem como questões ligadas à política e à cultura. 

            Todavia, por baixo da qualidade dos vídeos da Brasil Paralelo escondem-se conteúdos veiculados que fazem parte da atual Guerra Cultural em curso promovida pela extrema-direita brasileira (ROCHA, 2021). Proferidos por entrevistados apresentados como especialistas nos assuntos tratados, e revestidos com certo verniz intelectual, seus temas são na verdade mistificações que se esforçam por ocultar simplificações, distorções e mentiras sob um discurso que se pretende especializado e, portanto, irrepreensível. Toda sorte de recursos técnicos e estéticos são utilizados para provocar o efeito mistificador, do qual destaca-se o uso da trilha sonora de forma quase sub-reptícia, assim como costurar sequências narrativas que unem subtemas distintos para dar-lhes novos significados sem fazer as devidas distinções entre elas. Tais construções têm, por um dos seus principais motivos, naturalizar a ideia de que a sociedade está irremediavelmente dividida em dois grupos inconciliáveis: de um lado, os “esquerdistas” como expressão de oportunistas, abusadores, revolucionários que utilizam de todo e quaisquer meios para dominar o mundo, e do outro lado, os que defendem a sociedade e os valores humanos mais elevados.

Neste artigo abordaremos uma parte dessas produções: os três primeiros episódios da série audiovisual intitulada A Sétima Arte, que estreou em outubro de 2021, no canal no YouTube da Brasil Paralelo. A série constitui-se de oito episódios, sendo que os três primeiros apresentam a formulação conceitual de como a empresa entende a relação entre cinema e política, enquanto que os demais episódios são “estudos de caso” de diferentes filmes. Interessa-nos, aqui, não a interpretação que a Brasil Paralelo faz de cada um dos filmes nos cinco episódios finais, mas sim, entender qual é a formulação conceitual que elabora e que norteiam sua visão geral sobre a produção cinematográfica. Acreditamos e defendemos que essa formulação conceitual é uma expressão e um instrumento da Guerra Cultural em curso no Brasil, e tem por objetivo promover e popularizar revisionismos diversos e, ainda, convencer um grande público dos valores e crenças que eivam a extrema-direita. 

Este artigo é parte de pesquisa de doutoramento em curso[2] e que tem por tema a Guerra Cultural e o Fascismo no Brasil Contemporâneo.

 

Sobre Guerra Cultural

A ideia de Guerra Cultural originou-se na luta política travada entre a burguesia que, na primeira metade do século 19, se consolidava como a classe hegemônica e a Igreja Católica (CLARK, 2003). Naquela época, a burguesia havia superado o absolutismo, e parte dessa vitória política foi a constituição e consolidação dos Estados-nacionais. Como as aristocracias absolutistas eram visceralmente associadas à Igreja Católica, sendo uma necessária à outra, o ocaso do absolutismo arrastou consigo o poder papal. Como resultado, no alvorecer do século 19 o poder central da Igreja Católica se encontrava em acentuado declínio: o Papa tinha pouca influência sobre as decisões dos bispos nos diferentes Estados europeus, e eles tendiam a compromissar-se com os governantes e as classes dirigentes de cada país, desconsiderando quaisquer ordens ou orientações mais sensíveis vindas de Roma. A situação passa a mudar quando o monge Capellari é escolhido como novo Papa, em 1831, assumindo o nome de Gregório XVI. De forte espírito conservador, já em 1832, ele publica a encíclica Mirari Vos, em que condena (e chega mesmo a chamar de “loucuras”) o liberalismo e as liberdades de consciência, de expressão e de imprensa, bem como a divulgação de tais ideias por meio de livros, panfletos e outros impressos tão comuns no período.

Tanto Gregório XVI quanto seus sucessores Pio IX e Leão XIII deram início ao movimento pelo qual a Igreja Católica passou a disputar a influência política sobre a população, visando reconquistar seu antigo papel de principal aparelho ideológico da comunidade europeia. E esse é ponto central para entender a Guerra Cultural: com o surgimento do protestantismo, a Igreja Católica já havia perdido sua condição de única religião da Europa. Agora, ela também precisava disputar sua supremacia com doutrinas políticas (liberalismo, e logo depois, o socialismo) que pregavam, no mínimo, a separação entre Estado e Igreja, e no extremo, a laicidade e o ateísmo. Era preciso, então, por um lado condenar totalmente tais doutrinas e, por outro, estabelecer uma série de expedientes de convencimento em massa, o que foi feito por meio de uma série de novos dogmas que voltaram a concentrar o poder da igreja em Roma, também criaram novas ordens religiosas e ritos populares (como peregrinações e assembleias) e, sobretudo e principalmente, fortaleceram a propaganda católica por meios de jornais, livros e outros mecanismos de divulgação e disseminação da doutrina cristã. O papa voltou a ser uma figura estimada e venerada pelos católicos e o catolicismo tornou-se uma religião profundamente popular. Esse é o contexto em que políticos liberais passam a falar sobre a Guerra Cultural travada pelo catolicismo contra o liberalismo, este esforçando-se por um mundo moderno e o primeiro empenhado em manter o poder absolutista e retrógrado emanado de Roma. Assim, trata-se de uma guerra para fazer do Papa uma espécie de imperador da fé de uma grande nação, a católica, que não se limitaria pelas fronteiras de cada um dos Estados-nação e nem dos seus governos temporais. 

Já no início da década de 1990, o sociólogo estadunidense James Davison Hunter retoma o termo Guerra Cultural em seu livro Culture Wars: The Struggle to Define America, para designar a disputa cada vez mais acirrada que atravessava a sociedade dos Estados Unidos da América. Na disputa apontada por Hunter, opõem-se, de um lado, aqueles que defendiam uma visão tradicional da sociedade (baseada na moralidade conservadora judaico-cristã), e de outro lado, os movimentos que defendiam pautas como a liberalização do aborto, os direitos civis para a comunidade LGBTQIA+, a defesa de uma forma de vida baseada no vegetarianismo, a liberdade sexual irrestrita e o vanguardismo na arte, dentre outros. O que o sociólogo percebeu é que não se tratava de disputas pontuais sobre temas isolados, mas que cada um dos dois lados se viam como defensores de uma concepção profunda do que seria ser "americano". Como ilustração, ele publica em um dos capítulos do livro um excerto de debate travado naquela ocasião sobre a questão do aborto em que, de um lado está Randall Terry, porta-voz de um movimento anti-aborto, e, do outro lado, Faye Wattleton, ligada a uma organização civil de planejamento familiar. Ambos os contendores, a despeito da oposição radical entre suas ideias, as defendem em nome da mais verdadeira “tradição americana”. 

Para Hunter, a Guerra Cultural que presenciava não dizia respeito a uma transformação radical da sociabilidade estadunidense, algo como a superação do “modo de vida da América” por outro modo de vida qualquer, mas sim, de definir os marcos dessa sociabilidade. Por isso, para o sociólogo, tratava-se de definir os contornos e os significados mais profundos da cultura daquele povo. Se pensarmos no que Raymond Williams definiu como cultura comum, que é o conjunto de significados e valores que são formados pelas experiências de uma determinada comunidade e, ao mesmo tempo, seus impulsos à atualização e avanços, a Guerra Cultural testemunhada e estudada por Hunter é a disputa pelo que representa a memória e as tradições do povo estadunidense e, também, por qual caminho ambas seriam atualizadas. Isso não é pouca coisa: é tanto definir os significados do passado quanto os sentidos do futuro do país. Daí que é no presente onde estão entrincheirados os combatentes dessa guerra: organização familiar, Educação, Arte e Cultura, Ensino Superior e pesquisa, Direitos Civis, as formas de interpretar as Leis e de conduzir as instituições e outros aspectos da sociedade são, cada um e à sua maneira, um campo de batalha permanentemente mobilizado.

            Pelo pouco exposto já é possível distinguir alguns pontos de aproximação entre as duas situações (Guerra Cultural na Europa do século 19 e nos EUA, no 20) e a partir delas definirmos alguns poucos traços que nos ajudam a entender o que é Guerra Cultural em sentido amplo. O primeiro deles é que a Guerra Cultural diz respeito a uma dicotomia tida como insuperável e sem possibilidades de intercâmbio profundo entre eles. Evidentemente que na vida cotidiana mais vulgar há espaços de convivência em algum grau pacífica entre indivíduos de diferentes posições; mas também é verdade que a Guerra Cultural cria tensões que se mantêm latentes e que, em determinados momentos e contextos, escalam para conflitos de fato. Seja como for, a certeza que se coloca é a de que não há a possibilidade de síntese entre concepções de mundo diferentes. Ou seja, não há a possibilidade de política. Isso porque podemos considerar a “política” como a organização da ordem social por meio do debate entre ideias e posicionamentos contraditórios mediados por leis, procedimentos e instâncias que visam chegar a regramentos comuns a todos, vencedores ou perdedores dos debates. Todavia, a Guerra Cultural não é campo de debates entre contrários, nem é construção conjunta de um ambiente que seja a síntese das propostas debatidas, mas é o conjunto dos esforços em eliminar a participação do contrário, seja em termos políticos, ideológicos e mesmo, em casos extremos, físicos. 

Não é possível pensar nesses termos e não lembrar do nazismo, a mais extrema das experiências fascistas. A Guerra Cultural é um componente intrínseco à forma-fascismo justamente porque visa a constante redução (e se possível, a eliminação) da participação política de todo e qualquer sujeito social marcado como “indesejado”. A Guerra Cultural no fascismo é tratada como técnica e teve diferentes formuladores. Mas não há dúvidas que o ponto de partida da técnica da Guerra Cultural empreendida pelos fascistas é o livro Minha Luta, escrito por Hitler enquanto esteve preso por encabeçar uma fracassada tentativa de golpe, em 1923. No livro, o líder nazista atribui a um único “inimigo” do povo alemão, o povo judeu, todas as “mazelas” pelas quais os alemães e sua cultura estavam submetidos: marxismo, liberalismo, decadência racial, derrota na Primeira Guerra etc. Esse povo inimigo teria formulado e estava realizando uma espécie de plano para a conquista do mundo, e parte desse planejamento seria influenciar toda a intelectualidade e toda a produção artística, promover casamentos inter-raciais, atacar as tradições germânicas e ocidentais etc. A única maneira de evitar a total derrocada da alta cultura ocidental seria os alemães se levantarem contra o inimigo e seus "tentáculos" espalhados pelo mundo da cultura e da política. Da pátria do socialismo, a URSS, até as nações liberais da Europa ocidental, tudo deveria ser conquistado para a salvação da cultura alemã e a edificação de um novo mundo onde o III Reich alemão, o Reich de Mil Anos, seria o único e verdadeiro guardião do patrimônio cultural ocidental. Em Minha Luta Hitler sintetiza em mais alto grau toda a insanidade destrutiva que significa a ideia de uma Guerra Cultural, uma guerra que é sempre de aniquilação total do adversário.

 

A Série A Sétima Arte Como Instrumento de Guerra Cultural

No conjunto, os três primeiros episódios da série A Sétima Arte da empresa Brasil Paralelo cumprem uma jornada que narra uma história do cinema, apresentado como uma arte nova, de forte cunho comunitário, em que os valores e aspirações mais profundos da humanidade são projetados na tela em forma de filmes. Assim, as histórias contadas pelo cinema são quase como um rito em que o humano se encontra consigo mesmo, com o que tem de mais elevado e sublime. As grandes personagens são representações do que o humano tem de melhor, e contar suas histórias é apresentar ao público o exemplo a ser seguido. Assim, seriam como os mitos são para as comunidades primitivas, mas com um significativo diferencial: enquanto os mitos dizem respeito ao espaço restrito de cada comunidade, o cinema, sendo uma arte de massas, amplia essa comunicação para um sem número de comunidades, unificando-as sob o mesmo universo de significados. O cinema chega assim à ideia de “arte universal”.

Mas essa “arte universal" que fala do humano para os seres humanos, em algum momento do século 20, passa a ser utilizada como instrumento de propaganda. Isso foi feito, sobretudo, por russos/soviéticos, nazistas e estadunidenses. No entanto, no específico caso desses últimos, o uso propagandístico do cinema não ocorreu por interesses de controle das massas, mas por necessidades impostas pela entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial: era preciso sensibilizar o senso comum, engajar a população nos esforços de guerra e explicar-lhes o conflito e a entrada do país nele. Mas depois da guerra, alguns realizadores se veem às voltas com uma Hollywood controlada por grandes estúdios interessados em lucros, mesmo que às custas do abandono dos tradicionais valores humanos que constituíam a sociedade. Entretanto, o maior golpe sofrido pela “grande arte do cinema” ocorre no tempo presente quando o que chamam genericamente de "progressismo" passa a agir como um verdadeiro parasita, penetrando sorrateiramente nas grandes obras. Assim, antigos clássicos do cinema passam a ser refilmados ou recebem continuações mantendo seus personagens de origem, mas modificados em seus significados e sentidos, além de passarem a contar com novos personagens, mais diretamente afeitos aos interesses e ao imaginário progressistas, passando a ser instrumentos de doutrinação. Todavia, diferentemente da velha propaganda nazista, comunista ou de guerra, a doutrinação progressista age de forma sub-reptícia, imiscuindo-se nas relações cotidianas, alterando-as sem que a maioria das pessoas perceba, modificando os valores e a cultura, em detrimento das tradições que constituíram a civilização humana.  

            A narrativa apresentada pela série A Sétima Arte já se faz presente nos títulos dos três episódios, sendo o primeiro Gênesis - O Impacto do Cinema, o segundo A Queda - A Função Política do Cinema, e, por fim, o terceiro A Teoria do Parasita Pós-Moderno no Cinema. Os títulos, postos lado a lado, já resumem quase que completamente a ideia que a série deseja defender: como que uma arte que é quase que o ritual mítico moderno é tomado de assalto por interesses mundanos até que os agentes desses interesses conseguem parasitar essa arte, esvaziando-a de seus significados e usando-a como um “Cavalo-de Tróia" contra a humanidade. 

            Analisar e debater obras artísticas ou as linguagens artísticas em si, utilizando-se de diferentes referenciais estéticos e associando-as a distintos posicionamentos políticos, é próprio de sociedades em movimento e buscando alguma forma de desenvolvimento. No entanto, a série A Sétima Arte não propõe debates, mas sim atua como instrumento de Guerra Cultural, intentando a desqualificação de sujeitos (indivíduos, grupos ou organizações) que defendem posicionamentos políticos e sociais diferentes dos seus e que, portanto, entende serem socialmente nocivos. A produtora de conteúdos faz isso por meio da manipulação de diversos recursos audiovisuais bem como da construção narrativa do tema apresentado em A Sétima Arte. Assim sendo, a seguir, pretendemos passar em revista, ainda que de forma breve, algumas dessas manipulações.  

            O primeiro ponto, é a própria ideia de apresentar um manifesto, ou uma tese (como anunciam fazer no início do último dos três episódios) como um documentário. Mesmo o conceito de documentário é problemático no sentido de que seus realizadores e pesquisadores tendem a debater sua relação com a verdade (WINSTON, 2011). O estatuto da verdade é algo muito complexo, distante de um posicionamento político que se acredita ser verdadeiro por seus defensores. Daí que muito do que é apresentado como tal é, quando muito, uma versão, ou um posicionamento frente à verdade. O documentarista, quando trabalha imbuído de  honestidade ou ao menos com algum conhecimento de causa, sabe que não está pondo em tela a realidade, mas uma representação dela. Seu compromisso é tentar realizar uma representação que tenha o maior número possível de conexões com a própria realidade. Mas as conexões nunca serão totais, seja porque a verdade em si não pode ser a obra de uma pessoa ou um grupo, nem pode uma teoria abarcá-la por completo, dado que a totalidade da realidade não pode ser apreendida pela consciência humana. Assim, o documentário é sempre uma aproximação, um recorte, uma olhadela sobre a realidade comumente limitada e condicionada. Se a realidade fosse o picadeiro, o público seria o garoto que olha escondido por um buraco na lona, e o documentarista é o malandro que rasgou a lona para que o garoto pudesse entrever o espetáculo. 

            Ainda assim, o gênero documentário alcança certa credibilidade e respeitabilidade frente ao público, que tende a crer em seus conteúdos. Certo é que muitos documentaristas se preocupam em agir como verdadeiros jornalistas investigativos, lançando luzes sobre processos muitas vezes não percebidos, mesmo em fenômenos sociais de grande monta, como o documentário Ucrânia em Chamas, dirigido por Igor Lapatonok, em 2016. Mas há outros que carregam aspectos muito mais poéticos, que visam não necessariamente a exposição direta de uma ideia ou mensagem, mas se preocupam em sensibilizar o público a respeito de uma da situação ou condição sem se preocupar de definir ou cravar uma opinião a respeito. As diferentes formas de ser dos documentários podem ser organizadas em seus distintos seis modos de realização, como apresentado por Bill Nichols (2010).

            Isso posto, podemos pensar na primeira manipulação operada em A Sétima Arte. Ao longo dos dois primeiros episódios, o documentário é realizado no modo participativo, mas por meio de excertos de entrevistas prestadas por pessoas apresentadas como especialistas. Todavia, no terceiro episódio, em que se apresenta a tese defendida pela série (ou seja, que o suposto “progressismo” é um “parasita”), surge a “voz de Deus”, como é chamado o recurso em que uma locução em off narra o que é mostrado no vídeo ou pondera sobre o que significa (NICHOLS, 2010). Isso, por si, pressupõe um recurso de manipulação de sentido e significado, mas fica ainda mais contundente porque a locução não surge para apresentar o tema, mas para fazer uma afirmação determinante, a apresentação de uma tese. Assim, sutilmente, o que se apresentava como um documentário, passa a ser um manifesto, fazendo-o sem avisar ou anunciar ao público. 

            Outro recurso de manipulação diz respeito à edição do conteúdo. O uso de entrevistas é algo comum aos documentários. O seu uso visa geralmente apresentar posicionamentos, reflexões, explicações etc., de cada um dos registros dos entrevistados, coligindo-os para criar, assim, uma síntese como conclusão ou reflexão que seria, então, a opinião do documentarista. Mas na série A Sétima Arte as entrevistas são cortadas em pequenos excertos que são colados um após o outro formando um único enunciado. Todos os entrevistados compartilham das mesmas opiniões, e, portanto, os cortes em suas falas não causam contradições entre o que falaram e o que foi montado, mas para o público cria-se um discurso potencializado pelas imagens e vozes de diversos especialistas. Subjacente à edição das entrevistas está o uso constante de trilhas sonoras que servem para amplificar os efeitos emocionais do filme. Assim, em momentos em que se apresentam ideias defendidas ouvem-se músicas que vão das mais suaves e sublimes até aquelas que despertam a sensação de elevação moral. Mas quando aparecem os “inimigos”, ouvimos músicas sombrias, agressivas, que mobilizam sensações de medo, insegurança ou perigo.

Outro momento que demonstra bem como a edição que parece ser “neutra” carrega um posicionamento ocorre no segundo episódio, aos 18 minutos e 27 segundos, quando se encerra a abordagem sobre a propaganda comunista dos bolcheviques e passa-se para a propaganda nazista. Sem nenhuma mediação explicativa sobre as diferenças de ambas as ideologias e de suas propagandas, vai-se de um tema ao outro unindo-os por uma imagem do ministro da comunicação nazista, Goebbels, e uma citação sua, exibida em letreiro, em que elogia a propaganda comunista. Essa transição cria uma linha de continuidade entre comunistas e nazistas, colocando-os como que no mesmo campo de interesses e personalidade política.

Ao utilizar elementos de montagem de forma tão dissimulada, a série A Sétima Arte entra em um âmbito que não é a apresentação de um posicionamento político, a de uma representação da realidade posta para debate público etc., mas torna-se um esforço de convencimento por meio de manipulações em nível estético, portanto, pré-cognitivo.

            Se há questionamentos no uso dos recursos audiovisuais, outros e mais complexos encontram-se na narrativa construída. Ao longo dos episódios se forma a seguinte narrativa: a) o equilíbrio da sociedade repousa em um arranjo entre as pessoas e as organizações e entidades, e que se ampara em valores e tradições compartilhados entre todos; b) o cinema é a arte com o maior poder de apreender as representações societárias e sintetizá-las em obras que, apresentadas ao público, atuam como os mitos, ou seja, atualizam os significados e valores comunitários, preserva as tradições e mantém o equilíbrio do arranjo societário; c) organizações má intencionadas, que visam perturbar o arranjo societário e mudar a ordem que rege a sociedade, usam de diversos meios para efetivar seus intentos. No caso do cinema, essas organizações atuam no sentido de influenciar roteiros, alterar seus sentidos, modificar personagens etc., sempre objetivando mudar as representações e, através disso, mudar a sociedade; d) sendo assim, essas organizações não são competidoras honestas, não são adversários políticos, mas são verdadeiros “parasitas” que atuam de forma clandestina, sabotando a cultura e os costumes. E por isso, devem ser vistos como inimigos da humanidade, devemos todos denunciá-los, todos devem ficar em prontidão constante e mobilizados para rechaçar suas ofensivas. Ou seja, devem-se manter permanentemente em estado de guerra.

            Há alguns pontos desta narrativa que precisam ser destacados. Um deles é a defesa do cristianismo como uma espécie de padrão moral da sociedade. A despeito das inúmeras elaborações a respeito, sobressai-se a leitura de que o herói mítico da sociedade moderna é o herói de tipo cristão. A dramaturgia ocidental ampara-se na ideia de herói trágico conforme emergiu da tradição clássica. O documentário A Sétima Arte, por sua vez, afirma que os heróis trágicos eram aqueles que buscavam glórias eternas, eram irascíveis, vaidosos etc. Já o herói cristão é aquele cuja grandeza está em se sacrificar pela sua comunidade, pelo seu povo. Um dos “especialistas” entrevistados pela série, Bernardo Brandão, apresentado como doutor em literatura, afirma (aos 31 minutos do primeiro episódio) que: “um herói, para o grego, é alguém que tem na árvore genealógica um deus, tem sangue divino correndo nas veias, e por isso ele é maior que um ser humano comum, ele faria coisas que um ser humano comum não faria”. A seguir, vemos e ouvimos outro “especialista”, Jonathan Pageau, apresentado como “professor de semiótica e iconologia, criador da teoria do parasitismo pós-moderno”, que afirma (por volta dos 33 minutos do mesmo episódio) que: “os heróis modernos são baseados no cavaleiro cristão, ou seja, a pessoa que põe sua força a serviço de quem não pode se defender”. Tratam-se de dois erros grosseiros, primeiramente porque a ideia de um descendente divino é conhecido como semi-deus, já o herói trágico tem outra condição. Junito de Souza Brandão (1984 e 1986), Pierre Grimal e outros especialistas explicam que o herói das tradições gregas é aquele que fere uma das principais crenças antigas, que é o metrón (uma espécie de “medida de vida” atribuída pelos deuses a cada pessoa, e todas devem viver dentro de tais medidas). O ato de romper esse metrón, conhecido como hybris, põe em movimento os mecanismos de vingança divina. Aqueles que em hybris conseguem reconhecer a sua falha trágica e penitenciam-se perante os deuses aceitando os castigos que lhes são impostos, mesmo que seja a morte, são tidos como heróis. Portanto, não é a vaidade que os distingue, mas, pelo contrário, a forma superior com que tratam o reconhecimento do erro e a penitência que o expia. Isso, na verdade, não os afasta, mas, pelo contrário, os aproxima da ideia de um herói cristão no sentido de que ambos são movidos pelos desígnios de entidades divinas. Mesmo os ciclos arturianos, de onde talvez tenha emergido a ideia de um “cavaleiro cristão”, em sua origem não apresentam esse caráter generoso ou de auto-sacrifício; são mitos que originalmente tem personalidade mais bruta e só ganham contornos mais generosos quando da maior influência da Igreja Católica e, posteriormente, do romantismo. Mas esse equívoco no roteiro de A Sétima Arte, intencional ou não, é suficiente para afirmar que o herói, na origem do cinema, era a representação do herói cristão e seu constante auto desapego e generosidade em benefício de seu povo, fazendo com que o cinema fosse uma espécie de rito de revivificação do mito. Mas o uso político do cinema tornou-o objeto de propaganda, seja a estadunidense (justificada pela guerra) seja a nazista ou comunista (injustificáveis em sua essência pois ambos seriam regimes de destruição dos valores humanos para efetivar o controle sobre as pessoas). E hoje, numa escala maior, o ataque contra o cinema está além do seu uso propagandístico, ocorrendo por meio de ideias “parasitas” que se imiscuem nos antigos roteiros e heróis, alterando-os e influenciando negativamente as pessoas. E por isso, é preciso combater o “parasita” para recuperar o velho cinema, salvar o herói cristão e sua jornada de auto sacrifício e restituir como comuns os valores e tradições humanos. Não à toa, a última fala do terceiro episódio, enunciada sob uma música de cunho religioso (aos 51 minutos e 15 segundos do terceiro episódio), é: “eu acho que as pessoas saem das salas de cinema, ela tem que sair e falar assim: ‘o que a minha vida significa, qual é o sentido que a minha vida tem, como eu faço pra redescobrir a minha vida, e como esses personagens mostram o que eu perdi’, então aí o escapismo e a consolação… eles ganham uma outra conotação. O cinema desperta a pessoa pra experiência da luz”.

Um último ponto que desejamos destacar é como a série recupera os ideários estadunidenses condensados no Destino Manifesto e na Tese da Fronteira. No conjunto, esses ideários desenvolvidos entre meados do século 19 e primeiras décadas do século 20 traçam os contornos do que designamos de mentalidade conservadora estadunidense, pensando aqui no conceito de mentalidades desenvolvido pelo historiador Michel Vovelle. Essa mentalidade se expressa na crença de que os EUA são uma nação excepcional, que surgiu sem um passado feudal, e que nasceu pela luta de seus cidadãos contra o absolutismo. E que assim, pela graça de Deus, são uma nação destinada a espalhar a sua moral e o seu modo de vida para o restante do mundo. Esse espalhamento se iniciou na conquista do continente, a conquista do Oeste. Lembremos que os EUA, até meados do século 19, se restringiam à sua costa leste. E a partir daquele momento, e movido ideologicamente pelo Destino Manifesto, o povo estadunidense começa a se locomover rumo à costa oeste, ao Oceano Pacífico. No caminho, o confinamento e o extermínio de povos indígenas, guerra contra o México, compra de territórios em posse de nações europeias, devastação ambiental durante a corrida do ouro e outras barbáries (BANDEIRA, 2016). Concluído o espalhamento para o Oeste, passa-se às conquistas das Antilhas e do sudeste asiático, nas Guerras Hispano-americanas, enfim, iniciando seu processo imperialista em curso ainda hoje (ANDERSON, 2015). Mas todas as arbitrariedades, tanto na colonização interna quanto no imperialismo, se justificam pela “vontade divina”. Especificamente no processo da conquista do Oeste, ainda segundo essa mentalidade, formou-se o tipo estadunidense, alguém com espírito desbravador, que preza o núcleo familiar e a vida comunitária enquanto desconfia de toda sorte de poder estatal ou das grandes corporações. Não é um intelectual: age mais pelas convicções e pelos costumes; por isso lhe é cara a moral cristã e as tradições. Esse ideário é recuperado, na série A Sétima Arte, pela ênfase que dão ao filme A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life), de Frank Capra, de 1946. Nele, vemos todos esses elementos plasmados na tela: a valorização da vida familiar e comunitária, os donos das grandes corporações como velhacos enganadores, o espírito empreendedor, o auto sacrifício etc., junto aos cuidados prestados por Deus e seus anjos. Um filme belíssimo, com roteiro muito bem elaborado e direção impecável, carregando em seu bojo o ideário que forma a mentalidade estadunidense. A sua personagem principal, George Bailey, interpretada por James Stewart, é um pequeno empresário que graças à sua empresa familiar tem construído moradias para a população mais pobre de sua cidade, sem que, com isso, consiga ele próprio se desenvolver economicamente. Seu desejo, desde a infância, era sair da cidade para conhecer o mundo e realizar grandes obras, mas as contingências familiares o mantiveram preso à empresa fundada por seu pai e seu tio. Desiludido, sem conseguir sair de sua cidade nem propiciar uma vida um pouco menos modesta para sua família, ele decide tirar sua própria vida e está prestes a se suicidar em plena noite de Natal. É nesse momento que um anjo é enviado por Deus tendo por tarefa fazê-lo notar como seus sacrifícios pessoais foram fundamentais para o equilíbrio da sua família e da sua comunidade. George Bailey seria, então, umas das mais acabadas personificações do herói cristão defendido pela empresa Brasil Paralelo.

 

Conclusão

Toda cultura emerge de um processo de barbárie, já escreveu Walter Benjamin. Tudo o que existe como especificidade da condição humana é fruto da luta pela sobrevivência física da espécie, mas também de lutas travadas em defesa de posicionamentos políticos e ideológicos. Embates contra feras, contra a hostilidade de territórios selvagens, contra grupos humanos, contra ideias. No entanto, do desenvolvimento histórico humano emergiu a política e as leis, a tragédia Eumênides, de Ésquilo, talvez seja a melhor figuração, na cultura ocidental, dessa emergência. E desde o advento do iluminismo, a política e as leis alcançaram importantes dimensões no comportamento das sociedades. Ainda que persistam os momentos de intensos conflitos armados eles já não visam necessariamente a eliminação total do outro, como já escreveu Clausewitz, as guerras não deixam de ser forma-política: existem não para aniquilar o adversário, mas para forçá-lo a abrir rodadas de negociação. Enfim, nas palavras do militar prussiano, a guerra é a política por outros meios.

            Mas a Guerra Cultural remete a outro fenômeno moderno: a disputa por controle total dos chamados aparelhos ideológicos de Estado em sociedades já totalmente integradas pelos meios de comunicação e de cultura de massas. Embora não tenha surgido com os fascistas, foram eles quem melhor compreenderam e desenvolveram a ideia de Guerra Cultural. E no atual momento histórico, em que vemos a ascensão de lideranças fascistas em diferentes países, e em alguns deles chegando a ser eleitos, é preciso compreender a Guerra Cultural como um fenômeno político social em pleno processo e vigor.  Além disso, também é importante compreender suas dinâmicas e referências para empreendermos uma das mais tensas tarefas que temos, como nação, pela frente: a reconstrução do Brasil. 

Este pequeno artigo abordou uma das produções da empresa Brasil Paralelo (BP). Uma que teve, por enquanto, menos acessos que outras produções mais antigas e com sucesso estrondoso, como 1964, O Brasil Entre Armas e Livros e A Cruz e a Espada. No entanto, a série A Sétima Arte é a que melhor anuncia, por enquanto, o pensamento do segmento social que a BP representa. Ao teorizar o “progressismo” como um “parasita”, ao ponderar sobre uma ideia de um herói cristão e ao recuperar as ideias do Destino Manifesto e da Tese da Fronteira, a série em questão apresenta um bem detalhado mapa ideológico fascista. Ideário que não será superado facilmente e que exige maior atenção de pesquisadores e intelectuais. 

 

Bibliografia

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[1] Doutor pelo Programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH/USP.

email: luiz.checchia@gmail.com

 

[2] Defendida no dia 18 de setembro de 2023.


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