Iná Camargo Costa
I
Marx encerra o posfácio à segunda
edição do livro O capital avisando
que a dialética não se deixa intimidar por nada, além de ser essencialmente
crítica e revolucionária. Esta é uma tentativa de seguir seu exemplo.
Marxistas que honram a própria
tradição não podem aceitar a caracterização do marxismo cultural formulada pelo
inimigo, assim como Marx, Engels e os companheiros da Liga Comunista não
aceitaram o fantasma brandido pela santa aliança anticomunista do século XIX e
por isto em 1848 redigiram o histórico Manifesto
Comunista justamente para definir comunismo nos seus próprios termos.
Estamos há algum tempo desafiados
a apresentar a verdade e a verdade sobre o marxismo cultural. A primeira
verdade é histórica: a expressão é perfeitamente rastreável desde o programa
nazista. Uma vez exposta esta reconstituição, temos uma segunda verdade-desafio
a encarar: transformar a incriminação em arma de luta no front cultural,
definindo a nossa própria pauta, que dialeticamente pode tomar o próprio
resultado do rastreamento como ponto de partida, com o objetivo de resgatar
para o nosso time as incontáveis vítimas das primeiras aparições do fantasma.
Embora haja inúmeras
controvérsias no campo marxista sobre a questão do nazi-fascismo, há um
diagnóstico cada vez mais incontornável: o fascismo só prospera em situações em
que a classe proletária está desarmada em todos os sentidos, especialmente no
plano político-programático. Para dizer a mesma coisa em linguagem trotskista,
está em crise de direção e por isso é incapaz de lutar pela revolução, o único
remédio contra os males que o capital precisa lhe impor para resolver sua
própria crise, recorrendo para tanto, e em casos extremos, a regimes fascistas:
redução de salários, trabalho escravo, eliminação de direitos como organização,
expressão, saúde, educação, habitação e uma vasta pauta de violências
inomináveis, a começar pelo estado policial. Trata-se de transferir aos
trabalhadores os custos do adiamento da crise final.
Apesar das referidas controvérsias,
é fato sociologicamente demonstrado que o nazismo, na fase de germinação e
ascenso, contou com os bons serviços de elementos pequeno burgueses – derrotados,
ressentidos, fracassados, endividados e/ou falidos, desenraizados, inseguros,
forjadores de identidades, mistificadores, truculentos etc. – que aderiram com
entusiasmo a dois de seus fundamentos mais conhecidos: racismo e anticomunismo.
O racismo, dirigido abertamente ao genocídio do povo judeu na Europa (só para
começar, pois o alvo era o mundo inteiro), explorou uma das mais descaradas fraudes
literárias de que se tem notícia: Os
protocolos dos sábios de Sião, que até hoje tem adeptos mundo afora. E o
anticomunismo reage a duas causas muito imediatas: a vitoriosa revolução
bolchevique de 1917 e a revolução alemã de 1918-19, devidamente massacrada por
uma original combinação de forças entre socialdemocratas, militares e freikorps (estes últimos constituem um
dos embriões das tropas de choque nazistas, conhecidas como SA). A combinação de
ressentimento, racismo e anticomunismo produz o caldeirão onde germinará o
entusiasmo dos fanáticos por Hitler, na sua fase de ascensão, mas sobretudo os
arregimentados a partir do ano de 1933, quando o líder do movimento assumiu o
poder totalitário (claro que com o “docemente constrangido” apoio do grande
capital em crise).
A obra Mein Kampf se torna best
seller mais ou menos forjado (porque forçado e artificial) justamente a
partir de 1933 e, como observou Trotsky, é muito didática. Entre outros
motivos, porque a ideologia do movimento ali se encontra exposta em toda a sua
abrangência, ainda que de modo grosseiro, rudimentar e charlatanesco. Como esta
é a primeira aparição do fantasma do marxismo cultural, vale a pena resgatar
algumas das observações, diretrizes e critérios do Autor. É bom avisar entretanto
que o livro será citado a partir da tradução portuguesa,
mas não usaremos aspas porque não se respeitaram sintaxe nem terminologia
lusitanas, sem porém culpar o tradutor pelas dificuldades da tradução: como
avisou Lion Feuchtwanger,
o texto de Hitler tem cerca de 164 mil erros de gramática e sintaxe. (É
possível que Feuchtwanger não tenha incluído em seu cálculo as contradições – à
base do dizer e depois desdizer – que se multiplicam livro afora, para não
dizer nada das inconsequências, fraudes ostensivas e demais falhas que
envergonhariam qualquer escritor sério).
A certidão de nascimento do marxismo cultural foi, portanto, lavrada
por Hitler neste livro lamentável e já na base da contradição. O livro é uma
declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o
bolchevismo. Mas a certa altura lemos que o marxismo, enquanto arma da
conspiração judaica internacional, nunca
pôde criar uma cultura (p. 328), quando na página 193 ficara dito que o bolchevismo na arte
é a única forma cultural possível de exteriorização do marxismo. AH afirma que
as obras do bolchevismo são produtos doentios de loucos degenerados e desde o
século passado [o XIX] são conhecidas como dadaísmo, cubismo e futurismo, de
modo que o dever dos nazistas é impedir que o povo caia sob a influência de
tais loucuras (p. 328). Já se vê que o autor primeiro operou a fusão entre arte
moderna e revolução soviética para depois afirmar que o marxismo não pôde criar
uma cultura.
Desde as primeiras menções, o
marxismo aparece associado ao judaísmo e ambos constituem as duas maiores
ameaças ao povo alemão (p. 17): o marxismo
emerge de uma doutrina inspirada pelo egoísmo e pelo ódio, elaborada
pelos judeus (p. 39) e os judeus respondem por 90% da produção cultural na
Alemanha (p. 45). A doutrina marxista, por isso mesmo, é uma doença; seus
autores são verdadeiros demônios, monstros que planejam liquidar a civilização
e transformar o mundo num deserto (p. 49).
Sendo o marxismo a causa da decadência do povo alemão (p. 117), uma das metas
do nazismo é a sua aniquilação. Esta luta deve combinar força bruta com uma
ofensiva por novas ideias (p. 129). Daí o combate, inclusive físico, à
Socialdemocracia, pois esta organização se baseia na doutrina do judeu Karl
Marx, exposta no livro O capital. A
Socialdemocracia é contra a economia nacional e tem o objetivo de preparar o
terreno para o domínio da alta finança internacional, controlada pelos judeus
(p. 160).
O método deste livro é o da
repetição e da variação sobre o mesmo tema. Exemplos: a teoria marxista é o
aborto de um cérebro criminoso; é a tropa de choque dos judeus (p. 240). A obra
fundamental de Karl Marx foi escrita exclusivamente para os dirigentes
intelectuais da máquina que os judeus montaram para a conquista do mundo
(p.348). O judeu pratica uma dialética mentirosa (p. 349) e bolcheviques não
representam a honra nem a verdade, mas a mentira, a impostura, o furto, o saque
e o roubo. Mentira, calúnia, veneno e corrupção são armas dos judeus (p. 490).
Esta breve seleção já evidencia
que, para AH, judaísmo e marxismo estão em simbiose, de modo que o combate a um
é o combate ao outro. Mas cabe alertar que, embora AH misture tudo, o trânsito
de Socialdemocracia para bolchevismo contém um pressuposto histórico:
Socialdemocracia se refere à República de Weimar e bolchevismo à Revolução de
Outubro de 1917 e seus desdobramentos. O pesadelo e objeto da fúria e do ódio
do líder nazista são as experiências culturais desenvolvidas por
socialdemocratas e bolcheviques na Alemanha.
No capítulo das providências para
erradicar estes males, o ponto de partida é o diagnóstico de que o erro da
burguesia foi ser tolerante com o marxismo (p. 506), por isto a primeira tarefa
de um governo nazista tem que ser a de declarar guerra de morte ao marxismo, ou
ajustar as contas com os marxistas, que são inimigos mortais do povo alemão. Um
exemplo a ser seguido é Mussolini, que [na década de 1920] já tratava de
destruir o marxismo para preservar a Itália do perigo do internacionalismo (p.
504).
Este combate não precisou esperar
pela chegada dos nazistas ao poder; já estava em andamento quando da redação do
livro e um dos desafios dos aguerridos combatentes era explicar ao trabalhador
alemão que o bolchevismo é um crime horrendo contra a humanidade (p. 491). Uma
tática eficaz muito utilizada foi a conversão de “socialistas” e “comunistas”
ao nazismo – troféus amplamente ostentados (pp. 379 e 417).
Outra tática importante é o
assalto, ruminado e deliberado, ao repertório dos marxistas. Desde a escolha da
cor vermelha para cartazes e bandeiras, até o uso esvaziado de conceitos como
assembleia, proletários, camaradas etc. (p. 357), mais a infiltração de
funcionários do partido nazista nas organizações de esquerda. A culminação
desta tática foi a adoção do nome fantasia para a empresa: Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla em alemão).
No plano da opinião pública, a operação deu muito certo. Tanto assim que os
burgueses os confundiram com os marxistas, o que produziu muitas gargalhadas a
propósito daqueles idiotas e covardes tentando decifrar o enigma da origem do
empreendimento, bem como suas intenções e finalidade (p. 356).
Para AH, não pode haver engano:
os nazistas combatem a esquerda por ser marxista e a direita por ser covarde
(p. 249). Sua convicção é a de que o povo alemão tem uma missão atribuída pelo
Criador e este é o critério para acatar ou rejeitar qualquer tese (p. 160). Por
exemplo: é dever do Estado evitar que o povo caia nas mãos de maus educadores,
ignorantes e mal intencionados. Por isso também a imprensa tem que ficar sob
controle. O Estado não pode cair na armadilha da liberdade de imprensa, que
precisa estar a serviço da nação (p. 181). E como a maioria dos jornais – tanto
os liberais quanto os marxistas – está nas mãos dos judeus, esta imprensa deve
ser destruída, inclusive a poder de granadas (p. 182).
O trabalho da propaganda nazista é pautado por uma
convicção básica: o grande erro alemão no pós guerra foi não ter atribuído incessantemente a culpa de tudo ao
adversário, mesmo que isso não correspondesse aos fatos, como de fato não
correspondia (p.136). Em tradução livre: mentir e falsear a realidade é uma
regra, ou até mesmo um princípio. Ao mesmo tempo, é preciso insistir à exaustão
na tese de que é o inimigo quem mente e calunia sempre. Isto também é uma regra
elementar. Um exemplo: a prova de que a obra Os protocolos dos sábios de Sião é verdadeira está no fato de que a
Frankfurter Zeitung [cujos
proprietários são judeus] diz que é uma fraude literária (p. 230). Um dos
mantras do livro é justamente este: em seus jornais os judeus mentem sempre;
até uma verdade é disfarce para uma falsidade e por isso também é mentira; o
judeu é o maior mestre da mentira; a mentira e a fraude são as únicas armas da
sua luta (p. 262).
Assumida a prerrogativa de
falsear os fatos em nome dos valores defendidos pelo nazismo,
segue a enumeração dos itens do programa de luta e depois de governo nazistas,
dos quais destacamos os seguintes: 1) A educação tem que se pautar pela meritocracia
(p. 315); 2) O Estado racista tem que combater o princípio marxista de que um
homem é igual a outro; 3) É preciso selecionar os melhores do ponto de vista
racial; 4) O princípio tem que ser aristocrático, expressamente contra a
democracia (p. 324), porque democracia é sintoma de decadência das nações (p.
330).
Segundo AH, o programa do partido
é declaração de fé política e, uma
vez estabelecido, não pode ter nenhum item alterado. Cada ponto deve ser
tratado como dogma; deve-se seguir o exemplo da igreja católica romana, que não
recua em seus dogmas nem diante das verdades científicas, pois é assim que se
inspira a fé cega na excelência da doutrina (p. 337). Também é bom avisar que
em reunião nazista não existe liberdade de expressão. Só falam os líderes
designados e preparados para tal. O Serviço de Ordem, integrado por brutais
combatentes, retira do recinto, na base da pancadaria, qualquer um que apenas
esboce a intenção de falar (p. 362).
Não pode haver dúvida de que a
doutrina nacional socialista tem o direito de se impor a toda a nação alemã (p.
427) e cabe à propaganda cumprir esta tarefa (p. 430): a Pátria em primeiro
lugar; em segundo o Partido (p. 446). Todos os demais pontos de vista, sejam
partidários, religiosos, humanitários etc. devem ser impiedosamente eliminados
(p. 452). Como já ficou dito, os princípios
acima devem ser tratados da mesma forma que a religião faz com seus dogmas; o objetivo é constituir uma fé política (p. 281), pois o futuro do
movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus adeptos o
defendem como a única causa justa e muito superior a quaisquer outros esquemas
de caráter semelhante (p. 260). A grandeza de toda organização política que
corporifique uma ideia está no fanatismo
religioso e na intolerância com
que hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão com a razão. Por isso
mesmo os nazistas não temem a inimizade do adversário; pelo contrário,
consideram-na como condição essencial de sua própria existência. Antes desejam
o ódio dos inimigos, porque na
manifestação deste ódio só há mentira
e calúnia (p. 261). Ainda sobre este interesse
em despertar o sentimento de ódio nos inimigos, AH é muito claro: a função do
discurso e da ação nazistas, pelo conteúdo e pela forma, é provocar a réplica
do adversário, quanto mais emocional [leia-se irracional], melhor. A
combatividade brutal dos homens da segurança (p. 356) é uma necessária força
auxiliar.
Assim como a imprensa
judaico-marxista deve ser destruída desde já, a arte bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações:
representações teatrais, exposições de arte etc. (p. 194), pois elas são uma
destruição sistemática dos fundamentos da cultura, são a preparação intelectual
para o bolchevismo político. Seus
apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros (p. 196).
Uma vez no poder, o nazismo
efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas
as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo
cultural ou arte degenerada. Esta
guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas e as obras que fizeram a
paisagem da República de Weimar, nacionais e estrangeiras, com destaque para as
de origem soviética, mas sem prejuízo de franceses, ingleses e estadunidenses.
Artistas foram presos, conduzidos a campos de concentração e assassinados ou,
quando tiveram sorte ou a devida sagacidade, partiram para o exílio. Obras de
arte foram confiscadas de museus e destruídas
e livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O
regime nazista produziu uma série de listas
negras, tanto com os nomes dos seus inimigos, quanto com os títulos de
obras banidas, a serem destruídas. Só da biblioteca do Instituto de Pesquisa
Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que alimentaram a primeira fogueira
realizada em Berlim pelos estudantes nazistas. Naquele espetáculo macabro, Goebbels
disse, solenemente, entre outras barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a
coragem de encarar o brilho cruel, de superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa
desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do
passado.”
Para se ter ideia de quem eram os
inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida pelos nazistas, enumeremos
alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud, Albert Einstein, Bertolt
Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz Kafka, Lasar Segall,
Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente Marx, Engels, Lenin,
Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch,
Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion Feuchtwanger, Romain Rolland,
Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich...
Para encerrar esta primeira
parte, registrem-se alguns destinos dos protagonistas da infame operação
nazista, começando por lembrar que as tropas aliadas que ocuparam e dividiram
Berlim queimaram mais de 30 mil volumes de livros nazistas que haviam escapado
dos bombardeios que destruíram a cidade.
Hitler, Goebbels (Ministro da
Propaganda), Himmler (o Führer da SS-Gestapo, aprisionado pelas tropas inglesas),
Goering (Comandante Supremo das Forças Armadas, condenado pelo tribunal de
Nuremberg)
e Gürtner (Ministro da Justiça do III Reich) se suicidaram.
Heidrich, o carrasco de Praga e
vice de Himmler, foi executado pela resistência da Tchecoslováquia. Este
episódio constitui o prólogo do filme Os
carrascos também morrem, com roteiro de Brecht e direção de Fritz Lang.
Eichmann, o supervisor do
Holocausto, fugiu para a Argentina, mas foi localizado e capturado pelo Mossad,
o serviço secreto de Israel. Foi condenado e executado em Jerusalém em 1962.
Hannah Arendt fez a cobertura jornalística do julgamento e a série de
reportagens foi publicada em 1963 no livro Eichmann
in Jerusalem: a report on the banality of evil. Existe farta produção
cinematográfica sobre este caso.
Alguns dos integrantes do
Ministério da Justiça que participaram da barbárie nazista foram condenados a
prisão perpétua, entre os quais Herbert Klemm, Rudolf Oeschy, Franz
Schlegelberger e Oswald Hothaug. Este último, personificação da intriga e da
crueldade secretas do nazismo, foi caracterizado como sádico e perverso. O
filme Julgamento em Nuremberg
(Stanley Kramer, 1961) tem por base o processo a que estas figuras foram
submetidas.
II
O fantasma do marxismo cultural,
já com este nome, teve uma segunda encarnação nos Estados Unidos do início dos
anos de 1990, coincidindo com a publicação de estudos críticos e denúncias
sobre as ações americanas de contrainsurgência – ou combate a comunistas –
principalmente na América Central,
e em especial na Colômbia. Mas sua pré história é análoga à alemã e também
remonta ao período que se seguiu à Revolução de Outubro de 1917. Como já
tratamos deste episódio em outro lugar,
aqui nos limitaremos a referir a lei que deu início à perseguição de militantes
de esquerda, o Espionage Act, aprovado
em 1917, assim que os Estados Unidos decidiram participar da rapina da Primeira
Guerra Mundial (e enviar tropas para combater a revolução soviética). Esta lei
marca o início daquilo que ficou conhecido como o primeiro red scare.
Em 1918, por exemplo, foi aprovada uma nova lei, o Smith Act, que autorizava todo tipo de violências contra as
organizações dos trabalhadores e, sob as ordens do Procurador Geral da
República, um certo Palmer, foram realizadas batidas (que ficaram conhecidas
como Palmer Raids), prisões,
deportações etc.. A literatura a respeito deste primeiro red scare dá o ano de 1921 como o do seu encerramento oficial, mas
um fato histórico muito posterior – a execução de Sacco e Vanzetti no dia 23 de
agosto de 1927 – é o verdadeiro ponto final desta campanha.
Embora houvesse episódios de
atentados diversos à liberdade de expressão, o primeiro red scare não deu maior importância à esfera cultural mas, no
âmbito da propaganda, em seu auge contou até mesmo com a colaboração de
imigrantes russos (inimigos da Revolução de Outubro) que, com o patrocínio do
Estado e de Henry Ford, traduziram a fraude literária Os protocolos dos sábios de Sião para melhor produzir a mesma fusão
alemã entre a Revolução de Outubro e uma “conspiração judaica” mundial, que
persiste até hoje nos Estados Unidos como referência da extrema direita.
A segunda edição da ofensiva da
burguesia americana contra os trabalhadores
(o segundo red scare) foi
desencadeada na segunda metade dos anos de 1930 e atravessou a década de 1960.
A palavra que lhe corresponde é macartismo,
embora o senador de triste memória, cujo sobrenome virou substantivo, só tenha
aparecido para roubar a cena nos anos de 1950. Agora a prioridade passa a ser a
luta contra a “infiltração comunista” na administração pública, no sistema
educacional e na indústria cultural.
Um dos seus primeiros capítulos
envolveu a criação, em 1938, de uma Comissão Parlamentar para a investigação de
atividades comunistas no Estado e na esfera pública. Trata-se da tristemente
famosa HUAC – House Un-American Activities Committee – inicialmente presidida
por Martin Dies,
um deputado democrata do Texas. O primeiro alvo da sanha de Dies foi o programa
desenvolvido pelo governo Roosevelt (também democrata, é bom não esquecer) para
abrir frentes de trabalho na esfera da cultura, no âmbito dos demais programas
do New Deal. Uma das instituições criadas para este fim se chamou Federal
Theatre
e, na primeira oportunidade, Dies convocou para depor a coordenadora deste
Departamento, suspeita de filiação comunista. Para que se tenha uma ideia do
nível cultural dos integrantes da Comissão, basta referir duas das perguntas a
que a constrangida Hallie Flanagan teve que responder: “Christopher Marlowe
[contemporâneo de Shakespeare] é comunista? Eurípides [o poeta trágico] faz
propaganda da luta de classes?”.
Esta primeira investida do Estado
americano contra a “infiltração comunista” no serviço público foi muito bem
sucedida: a HUAC produziu um relatório que levou ao corte das verbas federais
para as artes e devolveu os artistas de todos os setores ao desemprego,
sobretudo os do teatro.
A crônica dos feitos da HUAC
inclui a denúncia (e depois processo) em 1940 de artistas como Humphrey Bogart,
James Cagney, Katharine Hepburn, Melvyn Douglas e Frederic March. Estes foram
inocentados, mas algum tempo depois Lionel Stander foi condenado (por
comunismo) e por isto demitido da Republic Pictures. Já se pode ver que a
“guerra anticomunista” estadunidense se trava preferencialmente na indústria
cultural.
Houve um período de hibernação da
HUAC durante a Segunda Guerra Mundial, pois os Estados Unidos se aliaram à
União Soviética e efetivamente muitos comunistas americanos participaram sem
restrições do combate à ameaça que Hitler representava para o mundo. Para não
entrar em detalhes que nos levariam muito longe, basta registrar que inúmeros
artistas alemães produziram filmes de propaganda antinazista em Hollywood. Um
exemplo é o já referido Os carrascos
também morrem (1943), de Bertolt Brecht e Fritz Lang.
Encerrada a guerra, o
anticomunismo americano reemerge já no ano de 1945. É deste ano a fundação do
AMERICA FIRST PARTY (esta denominação foi transformada em slogan na campanha de Trump). Abertamente neofascista, este partido
retomou a campanha de denúncias de judeus, comunistas e simpatizantes da União
Soviética em Hollywood. Em 1947 é declarada a Guerra Fria e imediatamente temos
a fundação da Motion Picture Alliance for
the Preservation of American Ideals (por Walt Disney, entre outros). Do
primeiro panfleto alertando para 0 perigo da propaganda comunista subliminar,
destacamos alguns dos seus mandamentos:
1) não caluniar o sistema da livre iniciativa; 2) não caluniar empresários; 3)
não caluniar a riqueza; 4) não caluniar a busca do lucro; 5) não divinizar os pobres;
6) não glorificar o coletivo. (Temos boas razões para acreditar que este
hexálogo continua em vigor pelo menos no cinema, na televisão e nos jornais
americanos). Data deste início da Guerra Fria a transformação em tabu de
palavras como marxismo, socialismo e comunismo nos Estados Unidos. Pelo menos
duas gerações se formaram sem ouvir menção a estas palavras e a universidade
americana até hoje, em sua esmagadora maioria, não dispõe de professores
críticos do capitalismo em seus cursos de economia.
Nesta nova conjuntura, a HUAC
volta à ativa, agora ávida do sangue dos aliados da véspera. Seu momento de
maior visibilidade foi o capítulo conhecido como “Os dez de Hollywood”, uma
lista de roteiristas convocados para depor perante a comissão e, principalmente,
responder à pergunta “o senhor é ou foi filiado ao Partido Comunista?” Dentre
os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil é Dalton Trumbo, que
recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga experiência de
denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de trabalhar na
indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo recurso aos
“testas de ferro” – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes para os
roteiros que continuaram a ser escritos). Produziu-se neste contexto uma lista negra com cerca de três centenas
de “suspeitos”. Para ficar nos mais conhecidos entre nós, limitemo-nos aos
seguintes: Howard Koch (roteirista de Casablanca,
de 1942), Bertolt Brecht, Hans Eisler, Jules Dassin (diretor de Nunca aos domingos, filmado já no
exílio, em 1960), Edward G. Robinson, Orson Welles, Joseph Losey (diretor de Galileu, de 1975, baseado na peça de
Brecht e filmado na Inglaterra, país que Losey adotou), Charlie Chaplin, Elia
Kazan, Lillian Hellmann, Stella Adler, Leonard Bernstein, Dashiel Hammet,
Dorothy Parker, Marc Blitztein, Lena Horne, Langston Hughes, Arthur Miller e
Harry Belafonte. Ainda merecem destaque, por seus feitos posteriores ao mar de
lama anticomunista, Ring Lardner Jr., que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme de 1970 dirigido por
Robert Altman, e Martin Ritt, diretor de Testa
de ferro por acaso (1976), cujo roteiro foi escrito por Walter Bernstein,
igualmente vítima da caça aos
“comunistas” em Hollywood e participante da tática dos “testas de ferro”.
Como ficou dito, este período de
caça às bruxas, que se encerrou oficialmente em 1975, acabou tendo nome próprio
– macartismo – em parte porque o senador aprofundou os métodos da difamação,
dos constrangedores interrogatórios televisionados, das inferências hostis e
das falsas acusações.
Este episódio do red scare merece ser
encerrado com duas de suas derrotas. A primeira é moral. Em 1953 o ator acima
referido, Lionel Stander, fez à HUAC o seguinte pronunciamento, ainda hoje válido:
Tenho notícia de um grupo de fanáticos que
está tentando destruir a Constituição dos Estados Unidos ao impedir que
artistas e outros tenham o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade
sem o devido processo legal [...] Posso citar nomes e exemplos, pois sou uma
das suas primeiras vítimas. É um grupo de ex-fascistas, militantes do partido
AMERICA FIRST e antissemitas. É gente que odeia todo mundo, inclusive negros,
minorias e muito provavelmente a si mesma. Essa gente está envolvida numa conspiração
à margem dos processos legais para minar os conceitos fundamentais sobre os
quais se baseia a nossa democracia.
A segunda derrota é real e já dá
notícia da mudança dos ventos: em 1961, o cantor Pete Seeger foi condenado,
recorreu e venceu a causa em 1962. O recuo do segundo red scare teve causas políticas e sociais muito relevantes, a
começar pela luta por direitos civis iniciada na década de 1950 e vitoriosa em
1964 (com a lei que assegurou o direito ao voto e o fim da segregação dos
afroamericanos). Este processo de lutas verdadeiramente épicas, que vai de Rosa
Parks, Mahalia Jackson, Nina Simone e Martin Luther King aos Panteras Negras,
aliado ao movimento estudantil, à luta contra a guerra do Vietnam e ao
feminismo pode ser sintetizado na expressão New
Left. Mas a contraofensiva dos herdeiros do red scare já se verifica na eleição de Ronald Reagan à presidência,
na aurora da campanha publicitária do “neoliberalismo”. A hegemonia então
reconquistada foi abalada com a crise instaurada em 2008, e ainda hoje em
curso, mas persiste aos trancos e barrancos. O red scare da década de 1990 é uma versão muito pálida dos dois
primeiros, mas não menos ameaçador, pois já conseguiu até eleger o atual
presidente daquele país.
Esta última encarnação (esperando
que seja mesmo a última) do red scare
se caracteriza pelo mesmo baixo nível do nazismo, do palmerismo e do
macartismo. Segundo Richard D. Wolff,
os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate ao marxismo cultural (agora
assim designado) são Steve Bannon e o canadense Jordan Peterson. Por seu papel
estratégico nas nossas eleições presidenciais de 2018, o primeiro dispensa
apresentações; Jordan Peterson é uma boa síntese do intelectual conservador:
dispõe-se, por exemplo, a debater marxismo sem ter lido uma única obra de Marx,
como ficou mundialmente evidenciado em recente debate com Slavoj Zizek
(disponível no You Tube). Para Richard Wolff, em Jordan Peterson é evidente a
constrangedora combinação de ignorância e pretensão, pois todas as suas proposições
a respeito de Marx e do marxismo são simplesmente falsas.
Quanto à expressão “marxismo
cultural”, como já ficou dito, seu uso data do início da década de 1990. Seus
primeiros usuários são cristãos fundamentalistas, ultraconservadores,
supremacistas – enfim, a extrema direita estadunidense. Uma das mais eloquentes
manifestações da tendência é o movimento
Dark Enlightenment (que não se
perca pelo nome)– antítese assumida do iluminismo,
que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e
teocrática, declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro
lugar, ao marxismo cultural. Os
objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o feminismo, a ação
afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o multiculturalismo, os
direitos LGBTQ e o ambientalismo.
Para esta horda de reacionários,
incluídos os integrantes do movimento Tea
Party, a instituição precursora do marxismo cultural foi a Escola de
Frankfurt pelas seguintes razões: imigrou para os Estados Unidos em sua fuga ao
nazismo, é constituída por judeus, combinou as teorias dos judeus Marx e Freud
e, sobretudo, promoveu a arte moderna
(combatida pelos nazistas, como já vimos), contaminando o espírito da
contracultura dos anos de 1960. Em suma, a Escola de Frankfurt seria uma
instituição de fachada do comunismo.
Trump e asseclas acreditam
firmemente que a cultura estadunidense é dominada pelo marxismo cultural, o que
é energicamente desmentido por gente como Noam Chomsky,
Paul Buhle, Michael Denning, Richard Wolff e inúmeros outros. Para os
reacionários assumidos daquele país, “politicamente correto” é marxismo
cultural, ou marxismo transposto da economia para a cultura; suas origens estão
no bolchevismo cultural e, portanto, esta pauta é conspiração contra os sagrados valores americanos (ver mandamentos
da Associação hollywoodiana de Walt Disney e bando, acima).
Em 1999, o professor Martin Jay
(conhecido no Brasil por seu livro sobre a história da Escola de Frankfurt, A imaginação dialética) caiu numa
armadilha montada por William Linch, um militante da causa reacionária: de boa
fé, gravou um depoimento para um programa televisivo sobre a Escola de
Frankfurt. Devidamente adulterado, este depoimento foi utilizado para
“demonstrar” as teses a respeito do marxismo cultural. Esta experiência
chocante é por ele relatada em detalhes no ensaio Dialetics of Counter-Enlightenment: The Frankfurt School as Scapegoat of the Lunatic Fringe.
Dentre os capítulos mais eloquentes da campanha obscurantista, e lembrando que
Marcuse foi mesmo o pensador favorito das publicações da New Left, destaquem-se do relato de Martin Jay as seguintes
referências: Patrick Buchanan publicou em 2001 o livro The Death of the West, no qual, reciclando as teses do bolchevismo
cultural, afirma que a Escola de Frankfurt propaga o marxismo cultural; em
1992, Michael Minnicino publicou no jornal Fidelio
o artigo New Dark Age: Frankfurt School
and Political Correctness; e, por último, o próprio “documentário”
televisivo do qual Martin Jay participou. Detalhe: William Linch dirigia na
ocasião o Center for Cultural
Conservatism.
Para Martin Jay, a tese
fundamental destes reacionários é a de que todos os males da cultura –
feminismo, ação afirmativa, liberação sexual, direitos LGBTQ, decadência da
educação tradicional e ambientalismo – são responsabilidade da insidiosa
influência da Escola de Frankfurt. Lukács e Gramsci também são responsáveis,
mas têm peso menor porque não imigraram para os Estados Unidos. Os adeptos do
marxismo cultural são acusados de ensinar sexo e homossexualismo às crianças,
promover a destruição da família, controlar os meios de comunicação e promover
o engodo de massas, esvaziar as igrejas e promover o consumo de bebidas. Enfim:
marxismo cultural seria a própria subversão da cultura ocidental. Como se pode
ver, a maior parte destas acusações – observa Martin Jay – provém de um pântano
de demagogos de extrema direita, totalmente desinformados e muito deficientes
no quesito lógica. Sua especialidade
é disseminar disparates, absurdos e despropósitos. É evidente a semelhança
entre o que dizem e o que dizia seu protoguru Adolf Hitler. A Escola de
Frankfurt foi promovida a bode expiatório de uma compreensão completamente
arruinada do mundo, de uma visão patética e desorientada. Acrescentemos:
pautada por uma insaciável sede de vingança dos típicos desiludidos do american dream que se voltaram
exatamente contra aqueles que sempre o denunciaram.
A expressão “marxismo cultural”
desfruta da duvidosa honra de ter entrado na cena oficial brasileira através do
programa da campanha de Bolsonaro à presidência da república em 2018
(disponível na internet), desde já contando com os bons serviços de Steve
Bannon, como sabem todos os que acompanharam aquela momentosa operação
política. Por esta determinação, nem ao menos merece ser tratada como item
separado. Em outras palavras: não passa de extensão à neocolônia (por opção) da
pauta metropolitana, graças ainda aos bons serviços da alfândega ideológica
instalada no Estado da Virginia, responsável pela péssima tradução dos dogmas
americanos. Isto também explica a profundidade de pires das suas manifestações
por estas plagas.
Na página 5 do programa dos novos
lacaios da neocolônia, o candidato ao cargo titular e à libré mais vistosa
promete livrar o país de “ideologias perversas” e na página 8 nos deparamos com
a seguinte informação: “Nos últimos trinta anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo se uniu [sic]
às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família
brasileira.” Na página 10, tropeçamos na
promessa: “Após 30 anos em que a esquerda corrompeu a democracia e estagnou a
economia, faremos uma aliança da ordem com o progresso: um governo Liberal
Democrata.” Dentre as providências, lemos à página 48 que “Além de mudar o
método da gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o
conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire.”
É bem verdade que esta operação
(em andamento) de guerra ideológica declarada ainda contou com os bons serviços
da Santa Madre Igreja, que desde os anos de 1990 desfraldou para todo o mundo a
bandeira do combate à ideologia de gênero,
num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e
análogo ao combate travado contra a “ideologia comunista” por nossa penúltima
ditadura (1964-85). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o
cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou
uma importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais recentemente
denominada Sagrada Congregação para a
Doutrina da Fé. Saiu da forja da reação católica a tese de que “ideologia
de gênero” é um conjunto de ideias falsas, marxistas,
que objetivam aniquilar a “família natural”, para tanto fomentando a
libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos não fossem
seus mais contumazes praticantes]...
Para enfrentar esta pouco
surpreendente aliança entre extrema direita católica, extrema direita
evangélica e extrema direita propriamente dita (ou neofascismo) em guerra
declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo esclarecimento e
pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar as nossas armas.
III
No 18 Brumário, Marx faz uma observação muito pertinente para a
situação em que nos encontramos: “As
revoluções proletárias [...] se autocriticam constantemente, interrompem
continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçarem de
novo; escarnecem com impiedoso rigor as meias medidas, fraquezas e misérias dos
seus primeiros esforços; parecem derrubar seu adversário só para que este
arranque da terra novas forças e diante delas se erga novamente, ainda mais
gigantesco; recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios
objetivos, até se criar uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”.
Períodos como o que estamos
atravessando, de ascensão do fascismo, nos colocam diante da necessidade de
recomeçar tudo de novo. Aqui nos limitaremos ao trabalho da memória na frente
cultural com o próprio marxismo como elemento central para nos dar régua e
compasso.
Lembremo-nos, por exemplo, de que
a tradição socialista e comunista é rica em confrontos, divergências e
polêmicas infindáveis. Deles é que o marxismo tira a sua força e capacidade de
avançar. Para uma pequena amostra desta ampla matéria, basta remeter a
clássicos como o Manifesto comunista e
Do socialismo utópico ao científico,
este último da lavra de Engels. Nestas duas obras nos defrontamos com o
socialismo reacionário dos aristocratas que sonham com a volta ao feudalismo, o
socialismo conservador da burguesia, além do socialismo e do comunismo
crítico-utópicos. Socialismo científico vem a ser uma denominação entre outras
do marxismo, que suprassume todos os conceitos anteriores.
O próprio marxismo acabaria
produzindo outra multiplicação de denominações. Por exemplo: marxismo legal, surgido
na Rússia do século XIX, os marxismos economicista, reformista e/ou
revisionista; marxismo empedernido (na formulação de Lenin em 1906); marxismo
ortodoxo (na concepção de Lukács), o marxismo-leninismo dos stalinistas e assim
por diante, até culminar na relativamente recente formulação de Perry Anderson
– marxismo ocidental. Isto sem falar em outra preciosa contribuição inglesa, a
de Raymond Willliams, que impulsionou a formação da ala do materialismo cultural,
atuante até hoje na Inglaterra e nos Estados Unidos. Todas estas “escolas”
constituem a nossa herança. Temos que no mínimo cultivar dialeticamente a sua
memória pois, como aprendemos com Hegel, é com ela que forjaremos as armas com
que confrontar os neoassaltantes de beira de estrada atualmente na ativa.
Sobre marxismo ocidental e
materialismo cultural, vale a pena fazer uma pausa, pois a nossa hipótese é que
os luminares do “marxismo cultural-espectral” assaltaram a obra de Perry
Anderson,
assim como a produção dos discípulos angloamericanos de Raymond Williams. Anderson
subsume ao conceito de marxismo ocidental autores como Gramsci, Lukács, Escola
de Frankfurt... Não são os mesmos mobilizados pela versão fantasmática? Outra demarcação
do marxista inglês: os integrantes do marxismo ocidental atuariam de
preferência no âmbito da cultura e do debate teórico (exceção feita a Gramsci,
um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, cuja principal contribuição ao
marxismo cultural – incluídas as reflexões sobre Maquiavel – foi produzida no
cárcere fascista e, por isto mesmo, à revelia), enquanto os marxistas tout court
(os clássicos: Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Rosa Luxemburg, Trotsky...),
além de debaterem amplamente as questões culturais, também eram ligados à
militância revolucionária, ou seja, vinculados a partidos, tanto da tradição
socialista quanto da comunista,
o que não se aplica aos integrantes da Escola de Frankfurt.
Dando continuidade a esta
primeira pausa, não é demais lembrar uma outra consideração de Engels a
propósito da luta de classes em todas as frentes, inclusive a cultural: “todas
as lutas históricas, quer se processem no domínio político, religioso,
filosófico, ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a
expressão mais ou menos clara de lutas entre as classes sociais”.
Luta de classes é a principal
marca registrada do marxismo, mas é bom não esquecer que sua mais importante
determinação é a da crítica ao capitalismo, cifrada no subtítulo do Capital: crítica da economia política.
Importa insistir nisto, porque nosso ponto de honra é a luta pelo fim do
sistema capitalista, de modo que o inimigo – que defende a continuidade do
capitalismo – tem bons motivos para temer os comunistas. Somos inimigos mesmo:
nós combatemos as relações de produção capitalistas, a verdadeira causa de
todas as misérias – econômicas, sociais, políticas e culturais – atualmente
existentes. Sendo assim, podemos e devemos dar razão a eles quando brandem o
“marxismo cultural” contra nós, mas precisamos corrigir as suas falácias, falta
de percepção e seus erros elementares, decorrentes de medo, ignorância e
incapacidade para o pensamento.
Dialeticamente, para um marxista,
o marxismo cultural (sub specie spectrum)
nada mais é que a fusão operada pelo inimigo entre marxismo ocidental e
materialismo cultural, numa operação ideológica que requenta, além de mal e
porcamente reciclar, a marmita nazista. Segue-se que, para além do recurso aos
nossos clássicos, devemos incorporar ao trabalho do pensamento na frente
cultural todos os autores e obras que Perry Anderson examinou em seu livro –
com destaque particular para a Escola de Frankfurt e Gramsci –, bem como os
procedimentos e sugestões de Raymond Williams em sua profícua trajetória de
pensador das relações entre cultura e luta de classes na Inglaterra. Estudar,
por exemplo, O eclipse da razão, de
Max Horkheimer e o capítulo “Indústria cultural, o iluminismo como mistificação
das massas” do livro Dialética do
iluminismo, também de Adorno e Horkheimer. Estes trabalhos foram elaborados
num contexto de reflexão sobre a pergunta “como foi possível o surgimento da
barbárie nazista?”. Para uma visão ampla do trabalho dos frankfurtianos, os
brasileiros ainda temos a sorte de dispor da antologia publicada pela editora
Abril na coleção Os Pensadores, Benjamin,
Adorno, Horkheimer, Habermas,
trabalho coletivo que contou com o enérgico apoio (consultoria) de dois grandes
marxistas culturais especialistas no assunto: Otília e Paulo Arantes.
Gramsci, em seus Cadernos do cárcere, tem inspiradoras
análises dos desafios postos aos intelectuais pela presença e dominação cultural
da Igreja Católica na Itália,
cuja condição de empresa privada que obteve status de Estado graças aos
fascistas, (pelo Tratado de Latrão em 1929), foi examinada no artigo “O
Vaticano”, publicado na revista Correspondência
Internacional em 1924. Ali Gramsci afirma sem meias palavras que o então
papa Pio XI apoiou o golpe de estado do fascismo e declara que, além de contar em
seus quadros com indivíduos de habilidade consumada na arte da intriga, o
Vaticano é a maior força reacionária da Itália e um inimigo internacional do
proletariado.
Encampando, além das acima
enumeradas, as sugestões de Raymond Williams, o campo prioritário de atuação
dos marxistas culturais vem a ser a esfera da cultura pautada pela luta de
classes em todos os seus desdobramentos e seu olhar deve estar direcionado preferencialmente para os artistas e
obras que, ao longo da história do capitalismo, tematizaram as lutas pela
emancipação dos trabalhadores em todas as suas modalidades, sem prejuízo do
interesse por aquelas obras que, a exemplo do que fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas,
desmascaram os comportamentos da classe dominante.
É assim que temos basicamente
dois momentos nesta produção cultural: a da luta contra a escravidão
propriamente dita – em especial a dos africanos, mas no caso de países de
continentes como o americano também a dos nativos – e a da luta contra a
escravidão salarial (esta é uma das expressões que Marx utiliza em diversas
obras, inclusive O Capital). A causa
pela qual lutamos é libertar o proletariado das relações de produção
capitalistas – nunca é demais insistir –, e desde que foi fundada a
Internacional Comunista (1919), um desdobramento que sintetiza estas pautas é a
luta contra a dominação colonial. Portanto, aos marxistas culturais interessam
todos os episódios de confronto com o colonialismo e o imperialismo, a começar
pela Revolução do Haiti (1791-1804), até as vitoriosas guerras que os
vietnamitas travaram contra Japão, França e Estados Unidos, passando por
revoluções como a cubana e pelas guerras de libertação de Angola, Moçambique,
Cabo Verde e Guiné-Bissau, entre outras. E só para adiantar um tópico: você
sabia que o sucesso mundial de 1967, Pata
pata, de Miriam Makeba, apoiada por Harry Belafonte, serviu para arrecadar
fundos para tirar lutadores contra o apartheid das prisões sul africanas? Eis
uma das milhares de histórias que interessam a um militante comunista do
autêntico marxismo cultural!
Marxismo cultural pode muito bem
servir de senha para nos voltarmos ao que realmente interessa no plano
cultural. Enumeremos alguns exemplos para começo de conversa. Como estamos no
Brasil, nossa primeira prioridade é a luta de resistência dos africanos às
condições de escravidão, cuja figura mais antiga é o quilombo.
Palmares e Zumbi são ainda hoje fonte inesgotável de inspiração. Marxistas
culturais brasileiros têm em Zumbi uma espécie de ancestral e já contam com
respeitável tradição de abordagens da sua luta, com erros e acertos. Neste item
entram evidentemente Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, autores
da obra prima Upa, neguinho!, gravada
por Elis Regina e integrante do espetáculo Arena
conta Zumbi. Mas não podemos nos esquecer de que foi Abdias Nascimento
quem abriu os olhos do jovem Augusto Boal para importância desta questão.
Ainda no capítulo da denúncia e
da luta contra a escravidão, o marxismo cultural tem muito o que aprender com
os afroamericanos. Para ficar só num exemplo, existe um spiritual, Swing low, sweet
chariot, que foi adotado pelos abolicionistas como senha para a fuga
organizada de escravos. Uma organização clandestina (a Underground Railroad, ou estrada clandestina) fazia chegar a
determinada plantação a notícia de que uma carroça passaria à noite para levar
os fugitivos designados. Durante o dia, o líder dos trabalhadores cantava
“swing low, sweet chariot” (balance de leve, querida carroça) e o coro
respondia “coming for to carry me home” (que vem para me levar para casa – casa,
aqui, significa liberdade). Todos ficavam sabendo que a carroça passaria
naquela noite e tomavam as providências para a fuga ser bem sucedida. O Brasil
teve organizações similares, como Os
tenentes do diabo (Rio de Janeiro) que publicamente aparecia como
associação carnavalesca, mas que ao mesmo tempo comprava cartas de alforria e
colaborava em fugas organizadas.
Poetas europeus também participaram
desta luta. Um dos melhores exemplos é Heinrich Heine (1797-1856), amigo de
Marx, que escreveu o poema Navio negreiro,
no qual denuncia a violência do tráfico, tanto no aprisionamento quanto na
travessia do mar, e expõe a frieza dos traficantes em seus cálculos. Parte dele
foi reaproveitada pelo nosso Castro Alves em poema de mesmo nome. Machado de
Assis imortaliza o poema de Heine em passagem inesquecível do seu Memorial de Aires (1908), quando o
diplomata aposentado constata em seu diário que o dia é 13 de maio.
A luta contra a herança do
escravismo no Brasil e no mundo ainda está em andamento e precisa integrar de
modo enérgico o conjunto das referências do marxismo cultural. Assim como a
Jamaica forjou um C.L. R. James, cuja obra abarca desde Notas sobre dialética (1948) até Os jacobinos negros (1963), os Estados Unidos têm uma miríade de
militantes, poetas e escritores de leitura obrigatória. Obviamente, Angela
Davis e Bobby Seale fazem parte desta galeria, mas também Langston Hughes,
Eugene O’Neill, Malcolm X, Stokely Carmichael e Martin Luther King. Nina Simone entra como a compositora da trilha
sonora da luta por direitos civis e Billie Holiday, que em 1939 gravou Strange Fruit para denunciar
linchamentos de afroamericanos nos estados sulistas, também deve fazer parte da
sonoplastia do marxismo cultural. Dentre os brasileiros, cabe destaque a Luís
Gama, José do Patrocínio, Abdias Nascimento e todos os seus discípulos (de
Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo a Érica Malunguinho), mas isto apenas para
começo de conversa.
No âmbito da luta cultural do
proletariado contra a escravidão salarial, da qual Brecht é uma das mais
eloquentes sínteses, entram todos os escritores naturalistas, a começar por
Emile Zola e Maxim Gorky. Do primeiro vale a pena destacar Germinal (1885), que trata da organização dos trabalhadores numa
prolongada greve de mineiros que contou até com o apoio da Associação
Internacional dos Trabalhadores (fundada por Marx, entre outros, em 1864,
também conhecida como Primeira Internacional). O assunto central do romance é a
greve que evolui para uma rebelião violentamente massacrada pelas forças da
ordem. De Gorky (1868-1936) destaque-se o romance A mãe (1906) que mostra como uma mulher evolui de analfabeta e
despolitizada a militante fundamental na luta clandestina depois de acompanhar
a evolução política do próprio filho, que morre num confronto com as forças da
ordem. Brecht adaptou este romance para o teatro.
Para encerrar este primeiro
passeio, cabe fazer uma homenagem a Augusto Boal, também discípulo de Paulo
Freire, enumerando alguns nomes daqueles que podemos chamar de integrantes do arco-íris do marxismo cultural sem
precisar pensar duas vezes (desde já insistindo: é lista de memória e sem
pretensão de ser exaustiva).
Dentre os brasileiros, além dos
já citados, temos Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Patrícia
Galvão, Joracy Camargo (todos escritores-militantes), Mário de Andrade, Sérgio
Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Emílio Sales Gomes,
Antonio Candido, Florestan Fernandes, Emília Viotti, Fernando Novais, Anatol
Rosenfeld, Chico de Assis, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Ruy Guerra
(este foi importado de Moçambique, mas se abrasileirou rapidamente), Eduardo e
Lauro Escorel, Leon Hirszman, Oduvaldo Vianna Pai e Filho, Solano Trindade, João
das Neves, Clóvis Moura, Chico Buarque, Flávio Império, Michel Löwy, Roberto
Schwarz, Maria Bethânia, Ivone Lara, Clementina de Jesus, Carolina Maria de
Jesus...
Nas Américas temos Rigoberta
Menchú (Guatemala), Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Ariel Dorfman, Violeta
Parra e Patricio Guzmán (Chile), Rubén Darío (Nicarágua), Miguel Angel Astúrias,
Carlos Fuentes, Frida Kahlo e Diego Rivera (México), Atahualpa del Cioppo e
Mário Benedetti (Uruguai), Sergio Cabrera, Gabriel García Márquez, Santiago
Garcia e Enrique Buenaventura (Colômbia), Leonidas Barletta, Oswaldo Dragún,
Fernando Solanas e Eduardo Pavlovsky (Argentina), José Martí, Roberto Fernandez
Retamar (Cuba), Aimé Césaire (Martinica), César Vallejo, José María Arguedas e
José Carlos Mariátegui (Peru), Henry Sylvester Williams (Trinidad), Harriet
Taubman, Frederick Douglass, James Brown, Mother Jones, Joe Hill, John Reed,
Louise Bryant, Paul Robeson, Elisabeth Gurley-Flynn, Jack London, John dos
Passos, Joan Baez, Woody Guthrie, W.E.B. Dubois, Elmer Rice, Harry Braverman,
Frederic Jameson, Sally Fields, James Baldwin, Spike Lee (Estados Unidos)...
Note-se que ainda nem começamos a
pensar em nossos clássicos, grandes cientistas, pensadores e filósofos que, de fins
da Idade Média ao século XIX, vêm enfrentando as trevas cultivadas pela Igreja
Católica (e agora também pelas evangélicas). É o caso de Maquiavel, Giordano
Bruno, Galileu e Copérnico, René Descartes, Voltaire (que insistia sobre a
necessidade de “massacrar a infame”), Diderot, Laplace (o astrônomo que
dispensava a hipótese de Deus), David Strauss, Feuerbach, Newton, David Hume,
Kant, Charles Lyell,Charles Darwin, Thomas Huxley, Ernst Haeckel... Para o
século XX, podemos adotar Cheikh Anta Diop como símbolo da pesquisa mais
relevante: o marxismo cultural se considera herdeiro de todas as conquistas da
ciência e assume seu compromisso irrevogável com a verdade – tanto a científica
quanto a histórica – porque sabe que a mentira tem um papel reacionário. Reafirma
assim seu compromisso com a legítima defesa da humanidade.
Como
lembrou o companheiro Carlos Russo Jr., citando Gramsci, em recente matéria do
site “Espaço Literário Marcel Proust”, “o fascismo incorpora como nunca a
servidão, a mentira e o terror, flagelos que buscam fazer reinar o silêncio
entre os homens, obscurecendo-os uns aos outros e impedindo que se reencontrem
no único valor que poderia salvá-los: a longa cumplicidade cujo limite é
precisamente o poder de revolta dos homens em conflito contra o despotismo e a
opressão.”
FIM DO PRIMEIRO TEMPO
Quando os nazistas inventaram o
fantasma do bolchevismo cultural, para variar cometeram a falácia da
generalização apressada (marca registrada de toda abstração indevida que tem a
intenção de bloquear o debate). Atiraram num fantasma quando na realidade o
bolchevismo cultural – entendido como a revolução bolchevique no plano da
cultura – estava muito presente na União Soviética e também na Alemanha,
sobretudo nas figuras de Asja Lacis (leta), Meyerhold, Tretiakov (russos) e de
Piscator, Hans Eisler, Max Valentin (alemães), entre inúmeros outros. O fato
histórico é que havia dentre os bolcheviques, desde outubro de 1917, uma ala dedicada
a enfrentar os problemas culturais que os marxistas debatem desde que existem e
a Revolução colocara na ordem do dia: órfãos da guerra e da revolução, fome,
analfabetismo, questão feminina, integração do proletariado e seus filhos à
vida cultural (escolarização, todas as modalidades de arte, teatro, cinema,
literatura etc., etc., etc.).
A luta cultural da Revolução de
Outubro ainda é amplamente desconhecida entre nós e por isso vale a pena
começar do começo quando o assunto é bolchevismo cultural. Os bolcheviques que
assumiram a linha de frente nesta luta foram Lunatcharski e Krupskaia
(comissários do povo para a educação e cultura – o Narkompros). Uma semana
antes do 25 de outubro de 1917, Lunatcharski deu o primeiro passo na tarefa de
organizar artistas e intelectuais para a luta que se avizinhava. Com os mais
aguerridos, fundou a Proletkult (cultura proletária), organização que em pouco
tempo (menos de um ano) arregimentava cerca de 400 mil pessoas.
Krupskaia dedicou-se às crianças, às mulheres e ao programa de erradicação do
analfabetismo. Seus textos disponíveis no site marxists.org mostram o alcance do seu compromisso com a construção
de um futuro sem as marcas horrendas da ideologia burguesa tanto no que se
refere à autonomia das mulheres quando na educação de crianças experimentando a
igualdade de gênero (meninos e meninas em pé de igualdade e camaradagem na
organização chamada Jovens Pioneiros) desde a mais tenra idade. O exato oposto
do escotismo, adotado com entusiasmo por fascistas e nazistas (meninos e suas
violências de um lado e meninas se preparando para a submissão aos homens e
para a maternidade do outro). Merece destaque, no trabalho com crianças, a atuação
de Asja Lacis, que desenvolveu, com apoio de Meyerhold, métodos de resgate de
crianças abandonadas através do teatro e depois ajudou os camaradas alemães a
organizarem até grupos infantis de agitprop. Ainda na questão feminina temos na
linha de frente Alexandra Kollontai e Inessa Armand que publicaram textos a
respeito da necessidade de libertar as mulheres da escravidão doméstica e da
submissão aos homens empenhando-se na criação de restaurantes, lavanderias e
creches de modo a liberar o tempo das mulheres para a ação política. Inessa
Armand cuidou até do trabalho feminino na retaguarda do exército vermelho
durante a guerra civil.
Dentre os incontáveis
bolcheviques da frente cultural – dramaturgos, diretores teatrais, cineastas,
artistas plásticos – destaquemos ainda Tretiakov, o exemplo de “artista
militante” na expressão de Walter Benjamin;
Meyerhold, que dirigiu a divisão de teatro do comissariado da educação e
cultura; Eisenstein, Dziga Vertov e Pudovkin que ainda hoje dão régua e
compasso ao cinema que pretende ser relevante; Rodchenko e Stepanova, que
desenvolveram na teoria e na prática as propostas do construtivismo; e,
evidentemente, Maiakovsky, o poeta que a plenos pulmões cantou a Revolução em
prosa e verso. São dele os versos inesquecíveis: COME ANANÁS, MASTIGA PERDIZ.
TEU DIA ESTÁ PRESTES, BURGUÊS.