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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Arte pública e direitos culturais

 

Adailtom Alves Teixeira

Arte é obra pública feita por particular, pressupõe a entrega do melhor de nós mesmos para consumo da coletividade. Só podemos fazer isso com nossos melhores sentimentos, mesmo que seja para falarmos dos piores sentimentos humanos e suas contradições.

Amir Haddad – Amir Haddad de todos os teatros

 

O texto que se segue decorre do roteiro de uma fala em um seminário dentro da programação do Festival Matias de Teatro de Rua, que ocorreu no dia 21 de setembro de 2024 no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco/AC. O Festival é uma realização da Cia Visse & Versa de Ação Cênica com uma programação que se deu entre 18 e 24 de setembro de 2024, além de Rio Branco, se estendeu pelas cidades de Senador Guiomar, Bujari e Plácido de Castro. Apresentado o contexto passemos aos pontos apresentados em minha fala naquele encontro.

O primeiro ponto defendido é que foi Amir Haddad, ator, diretor e professor de teatro com mais de 60 anos de carreira, quem recuperou a ideia de arte pública para o teatro, especialmente na modalidade praticada na rua. Afinal, tal conceito era amplamente conhecido apenas no campo das artes visuais. Amir tem vasta experiências com vários teatros e são mais de quatro décadas dedicadas à prática do teatro de rua, com seu coletivo Tá na Rua. Tal “recuperação” da arte pública puxada por Haddad logo se difundiu por todo o Brasil por meio dos articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) – criada em 2007 e único coletivo teatral ativo nacionalmente, embora esteja fragilizado no pós pandemia.

Em recente livro Haddad define o que considera arte pública:

Uma arte que se faz e se produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a esperança (Haddad, 2022, p. 146-7).

 

Mais do que a esperança, eu diria que é preciso cada vez mais fazer (re)nascer a revolta, na medida em que vivemos tempos difíceis, no qual o capitalismo já mostrou todos os seus limites, e arte de maneira geral, precisa disputar subjetividades, especialmente dos mais pobres. O teatro de rua, por ser uma arte que não distingue seu público, cumpre papel significativo. Amir não deixa dúvida acerca do nosso papel, pois como afirma mais a frente, “[...] arte pública é a arte que não está submetida ao mercado, que é consumida por todos igualmente, em qualquer lugar; não precisa lugar certo, não precisa de uma plateia certa, e não depende da bilheteria” (Haddad, 2022, p. 159). Logo, é vista como direito e se é direito, deve ser atendida por políticas públicas.

Porém, é importante que se diga que, embora muito difundido entre os fazedores de teatro de rua e alguns espaços importantes de cultura, a batalha pelo conceito de arte pública não está ganha, ainda está em disputa, basta vermos a definição do verbete dado pela Enciclopédia Itaú Cultural, no qual se destaca uma concepção mais voltada às artes visuais:

Em sentido literal, seriam as obras que pertencem aos museus e acervos, ou os monumentos nas ruas e praças, que são de acesso livre. Nessa direção, é possível acompanhar a vocação pública da arte desde a Antigüidade, lembrando de obras integradas à cena cotidiana - por exemplo, O Pensador, de Auguste Rodin (1840-1917), instalado em frente do Panteão em Paris, 1906 - e de outras mais diretamente envolvidas com o debate político. O projeto de Vladimir Tatlin (1885-1953) para um monumento à Terceira Internacional (1920) e o Memorial de Constantin Brancusi (1876-1957), 1937-1938, dedicado aos civis romenos que enfrentaram o Exército alemão em 1916, são exemplos disso. O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e David Alfaro Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da arte pública em função de seu compromisso político e de seu apelo visual[1].

 

A disputa do conceito é importante, na medida em que no capitalismo tudo tende a virar mercadoria e ser apropriado por uma determinada classe, a burguesia, até mesmo as políticas públicas – na medida em que se trata de fundos públicos – tende a contemplar aquilo que é determinado pelo mercado. Desse modo, inserir o teatro de rua como arte pública significa também a disputa pelos recursos para os artistas. Nesse sentido, desde seu início a RBTR tem lutado por políticas públicas de cultura que de fato cheguem às bases da sociedade, ao mesmo tempo que em vários de seus documentos tem se colocado contra leis de renúncia fiscal, que são, quase sempre, apropriadas por pequenos grupos da sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que Amir Haddad e os demais teatreiros de rua estão na disputa do conceito e dos fundos públicas para que sua arte sobreviva.

Um segundo ponto apresentado no seminário, em diálogo com o primeiro, foi o de teatro de rua e do direito à cidade, ressalvando as especificidades da região amazônica. Tal observação, isto é, ter um olhar diferenciado para essa parte do Brasil é importante por que o substantivo “rua” colocado ao lado da palavra teatro, portanto, adjetivado, pode levar a interpretações errôneas de que teatro de rua seja praticado apenas em centros urbanos. Porém, é importante frisar, o teatro de rua deve ser visto de modo amplo, como um teatro que chega a todos os lugares e, mais importante, sem perder os seus pressupostos poéticos e estéticos. Assim, embora tenham também grandes cidades na Amazônia, por aqui, as ruas são rios e só o teatro de rua pode chegar nos mais inusitados lugares. Talvez por isso mesmo, o teatro de rua carregue a condição de “marginal”, de uma arte à margem, mas é justamente por isso, na sua condição marginal, que reside a sua liberdade. Liberdade para dialogar com todos/as/es; liberdade para tratar de qualquer temática; liberdade criativa, na condição de obra em processo, nunca pronta e acabada. Nesse aspecto, os pressupostos fundantes dessa modalidade são acessibilidade (geográfica, temática, estética etc.) e porosidade (sempre incorporando as intervenções do público e dos espaços), daí nunca serem obras definitivas, “acabadas”. O teatro de rua, onde quer que ele chegue, onde quer que ele se coloque, ressignifica o lugar – que torna-se espaço de fruição – e transforma o transeunte em espectador. Por todos esses aspectos, e outros não abordados, o teatro de rua não consegue ser totalmente apropriado pelo capitalismo – ainda que não possa impedir que se apropriem de seus expedientes, mas como ouvi certa vez de um artista popular: “deixem que eles copiem, a gente cria mais” –, trata-se de uma arte artesanal em seu sentido mais profundo.

Mas apesar de, enquanto potência, poder chegar em todos os lugares, as cidades são um ponto importante para os praticantes de teatro de rua, não só porque a maioria da população brasileira resida nas cidades, mas porque o teatro que vai às ruas, está disputando também um modelo de cidade para cidadãos e cidadãs. O direito à cidade é o ponto zero dessa nossa disputa e na medida em que o teatro de rua desorganiza a ordem do capital, pode auxiliar na recuperação do tecido social desgastado, pode se tornar aquilo que Amir Haddad chama de “a utopia representada”. Ainda que não se chegue ao utópico propriamente, a busca é incessante, para lembrar um grande escritor uruguaio, nos faz caminhar.

Desse modo, ocupar as ruas com o teatro, no sentido que estamos dando, torna (ou cria-se) espaços de lazer e mobilização social, ainda que temporários. O neoliberalismo praticamente implodiu o sentimento de coletividade, o EU foi exacerbado a enésima potência, nesse sentido, o teatro de rua pode auxiliar na reconstituição/reconstrução dos afetos. Pois como nos ensinou Nego Bispo: “A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada” (Santos, 2023, p. 23).

Por isso mesmo, um outro autor, Henri Lefebvre, insiste que a cidade é um diagnóstico de nosso tempo. Portanto, uma ideia chave para a transformação radical da sociedade: “[...] a cidade é um pedaço do conjunto social; revela porque as contêm e incorpora na matéria sensível, as instituições, as ideologias” (Lefebvre, 2008, p. 66). O autor está fazendo uma crítica ao ideário da modernidade, isto é, às concepções de ordem e progresso, que implica, evidentemente, a concepção de desenvolvimento a qualquer custo e do qual até mesmo a esquerda tem dificuldades de se livrar. E quanto às cidades amazônicas? Ora a crítica é ainda mais pertinente, pois a “integração” dessa parte do Brasil ao restante do país deu-se por meio de projetos coordenados sobretudo por duas ditaduras, Vargas e a civil-militar – embebidos de positivismo e seu lema de ordem e progresso até a medula. E aonde tem nos levado tal ideal de progresso e desenvolvimento encampados por tais projetos? A uma destruição permanente das florestas, a implantação de uma monocultura e a continuidade do genocídio dos povos originários.

Aqui faz-se necessário uma pequena reflexão, pois pode parecer que estou apresentando o teatro de rua como elemento salvacionista e não é disso que se trata. O teatro – ou qualquer arte – não muda realidades, mas pode mudar pessoas e elas, se engajadas e organizadas, poderão mudar a realidade à sua volta. O teatro de rua, por não está calcando na troca mercantil, realiza a troca de experiência no sentido benjaminiano. Walter Benjamin (20120 trata de dois tipos de trocas, erfahrung (experiência) X erlebnis (vivência). No primeiro somos atravessados, afetados e isso pode nos modificar; já o segundo o que temos é uma mera vivência, sem profundidade. Ora, o nosso tempo vive o império da vivência, do particular, da ligeireza, do não aprofundamento. Ao mesmo tempo uma radicalização de todo o ideário da modernidade, mas para onde caminhamos? Nas palavras de Zygmunt Bauman (2005, p.13), a globalização se tornou uma “linha de produção de refugo humano ou de pessoas refugadas”. A história da modernidade nos trouxe até aqui. É tarefa dos artistas e das artes por eles praticadas, incluso o teatro de rua, uma disputa na mudança de rumos, isto é, um rompimento com o projeto da modernidade. Afinal, estamos no quadrante histórico no qual a espécie humana terá o grande desafio de qual mundo construirá para as futuras gerações ou se haverá um “mundo” para a nossa espécie. Disputar as subjetividades e ocupar as ruas, os rios, as comunidades em geral com uma arte que seja de diversão e mobilização, no sentido de uma mudança radical.

 

Referências

ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas v. 1)

HADDAD, Amir. Amir Haddad de todos os teatros. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.


[1] ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia.

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

XV Festival Amazônia Encena na Rua

                                                                                                                           Adailtom Alves Teixeira




O XV Festival Amazônia Encena na Rua, um dos maiores festivais de teatro de rua do Brasil, ocorrerá nos dias 07, 08 e 09 de junho de 2024. No entanto, apesar de sua importância, enfrentou novamente desafios significativos para assegurar os recursos necessários para sua realização. Este festival é um significativo evento cultural que celebra a arte pública de rua e reúne diversos grupos teatrais, oferecendo ao público uma experiência única e envolvente.



Este ano, o festival será realizado na Arena do Complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), retomando o local de edições anteriores, espaço que simboliza a rica história e o marco zero de Rondônia. O local, patrimônio histórico, é um símbolo também da região amazônica.



O XV Festival Amazônia Encena na Rua é uma celebração da resistência e da criatividade artística, mesmo enfrentando desafios financeiros para continuar trazendo cultura e entretenimento de qualidade para o público, mantém-se como um dos mais longevos do país nessa modalidade. Por isso, já que o poder público ainda não se deu conta de tal importância, a participação da comunidade e o apoio ao festival são fundamentais para a continuidade deste evento que já se consolidou como um dos mais importantes do calendário cultural brasileiro.


A programação totalmente gratuita reúne espetáculos teatrais e de dança bem diversificados e para todos os públicos e idades. Confira abaixo.



Programação:

Data: 07/06/2024 - a partir das 19h

Espetáculo: Leno Queria Nascer Flor

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)



Espetáculo: Índigenas da Amazônia

Grupo: Cia Yaporanga (RO)



Data: 08/06/2024 - a partir das 18h

Espetáculo: Cabaré Ruante

Grupo: Teatro Ruante (RO)


Espetáculo: Encontro de Gigantes

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)



Data: 09/06/2024 - a partir das 18h

Espetáculo: Que Palhaçada é Essa?

Grupo: O Imaginário (RO)



Espetáculo: Fagulha

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)


terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Fórum de Cultura da Cidade de São Caetano do Sul pede cancelamento de edital

 São Caetano do Sul, 30 de janeiro de 2024.


 

Carta ao Excelentíssimo Secretário de Cultura e à Excelentíssima Secretária de Educação de São Caetano do Sul 



"A arte ajuda a criar um ensino ativo"

                                        Ana Mae Barbosa




O Fórum de Cultura da Cidade de São Caetano do Sul, agregador de trabalhadoras e trabalhadores da cultura, artistas e arte educadoras(es) da cidade, fundado em 22 de janeiro, de 2024, vem por meio desta, manifestar sua indignação perante o EDITAL Nº 30/2023-SECULT/SEEDUC - DE CHAMAMENTO PÚBLICO PARA CREDENCIAMENTO DE PROFISSIONAIS PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS JUNTO À SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SÃO CAETANO DO SUL NO PROGRAMA SÃO CAETANO INTEGRAL. (Lei n.º 6.170 de 14 de dezembro de 2023).


O referido edital, apresentado pela Secretaria de Educação em parceria da Secretaria de Cultura, cria um programa que a exime de chamar os professores de arte aprovados no último concurso de 2023 e que já estão no aguardo de suas vagas. Ao contrário, ao se contratar temporariamente oficineiros para substituírem os professores de Arte, a Secretaria de Educação cria um posto de trabalho precarizado, sem nenhuma seguridade trabalhista, com um salário abaixo do piso salarial e  abrindo a possibilidade de contratação de um profissional com “até” 3 anos de experiência, sem a necessidade de formação em Licenciatura na área. 

Segue abaixo os detalhes pelos quais consideramos esse Programa um desrespeito ao profissional de Arte e/ ou estudantes, bem como uma ação de precarização do ensino público.

Segundo o edital, os profissionais receberão por uma carga horária de 25 horas semanais nas seguintes funções:

  • Coordenadores: dois salários-mínimos nacional vigente R$2.824,00 (dois mil, oitocentos e vinte e quatro reais) mensais.

  • Arte-educadores: um salário-mínimo nacional vigente R$1.412,00 (mil e quatrocentos e doze reais) mensais. 

Essa oferta salarial é pelo menos 3 vezes menor quando comparado com o professor de arte devidamente concursado na rede. Nesse contexto, esse profissional não participará das reuniões de HTPC (Horário de Trabalho Coletivo) e diminui a possibilidade de realizar trabalho pedagógico vinculado ao currículo da cidade, pois não haverá tempo remunerado de estudo e diálogo no espaço escolar. Além disso, não terão férias, nem 13° salário, nem mesmo gratificações.
No dia 22.01.2024, o Secretário de Cultura, Erike Busoni, publicou em suas redes sociais um discurso defendendo que o EDITAL Nº 30/2023, da SECULT e SEEDUC possui o intuito de contribuir com empregos para estudantes de cursos técnicos em  linguagens artísticas, como os da Instituição Fundação das Artes. Como se realizasse uma benfeitoria, no caso, o primeiro emprego de um(a) jovem artista, submete esta(e) trabalhadora em período de formação à hora aula no valor de 7 reais. A afirmação do Secretário gerou na categoria da cidade três reflexões: 1) Um curso técnico de teatro, artes visuais, música ou dança possui disciplinas direcionadas aos estudos de metodologias, didáticas, possíveis pedagogias e ou estudos voltados à relação professora(o) aluna(o), conhecimento cognitivo a partir da faixa etária e questões sócio-educativas - estudos esses que fariam tratar a educação de uma crianças com total responsabilidade? 2) Este curso, voltado à profissionalização técnica de atrizes/atores e/ou musicistas, prepara um jovem artista para a Arte Educação e capacita-o para atender sozinho por volta de 25 a 30 crianças em uma sala de aula? Seria o curso técnico um ensino direcionado à carreira profissional de atriz/ator, artista visual, dançarina/o ou de arte-educador? Pelo fato de não solicitar licenciatura para trabalhar com crianças em processo de aprendizagem, o referido edital descaracteriza a profissionalização de professora(e)s de artes e também de arte educadoras(es) e pesquisadora(e)s da área Arte Educação. Estes últimos profissionais citados também costumam exercer funções em oficinas de cunho não formal, complementar à escola, como é o caso de programas modelos e/ou parecidos com o novo edital Credenciamento de Profissionais junto à Secretaria de Educação e Cultura de São Caetano do Sul, como o Programa Tempo de Escola, em São Bernardo do Campo (realizado entre os anos de 2015 e 2016) e PIÁ e PIAPI, em São Paulo, que seguem vigentes, cada vez mais qualificados e em busca de aperfeiçoamentos, em diálogo com os artistas-educadores e orientadores.

Em 2023 foi aberto o concurso público com pouquíssimas vagas para as Artes, o que parecia incoerente diante de tantas necessidades e das novas vagas que se abriram, uma vez que todas as escolas da cidade iriam se tornar escola de tempo integral no ano de 2024. No entanto, com o lançamento deste edital fica explícito o movimento que aponta para uma redução de verba destinada à educação injustificável, tendo em vista o repasse de recursos públicos oriundos do governo federal para a implantação das escolas em tempo integral nos municípios que firmaram esse convênio, como é o caso de São Caetano do Sul. Em síntese, é possível identificar que os recursos chegaram à prefeitura, mas a aplicação não foi realizada plenamente, tendo em vista o não chamamento das professoras e dos professores aprovados em concurso e o lançamento do referido edital que lança profissionais em um cenário de evidente precarização. Além disso, aponta para um entendimento do componente Arte como uma disciplina acessória, de valor menor, que pode ter profissionais mal remunerados, em condições trabalhistas precárias e sem nenhuma participação do tão falado “plano de carreira”.

Esta tentativa de economia de dinheiro às custas da precarização dos direitos trabalhistas da professora(or) de Arte nos leva a entender o programa com “ilegal”, pois fere os direitos trabalhistas, concebe as disciplinas de arte como acessórias e de menor importância e ainda admite um profissional para ministrar aulas na escola sem a necessidade de ter um curso de licenciatura como formação. 

Sabemos inclusive que este edital não é uma ação isolada na cidade no que diz respeito aos desmontes na área da arte educação realizados pela Secretaria de Educação. Infelizmente, desde o ano passado foi reduzida drasticamente a carga horária das linguagens artísticas na matriz curricular das escolas de tempo integral. Esse ano mais uma nova redução ocorreu. Essas ações já estavam apontando para o desfecho atual.

São muitos retrocessos para a Arte educação da cidade, que colaboram para uma queda na qualidade de ensino, pois quando oferecemos atividades com profissionais em condições precárias de contratação e de vínculo institucional, não temos educadoras(es) amparados e estruturados para realizar amplamente suas propostas pedagógicas.

Diante dos absurdos que  relatamos acima, pedimos pela revogação deste edital, e que sua problematização seja devidamente dialogada, em reunião a combinar, com a categoria artística, arte educadores, sociedade civil, mães, pais e comunidade escolar. Pedimos também a revogação das alterações na matriz curricular das escolas de tempo integral do ano passado e retrasado, para que a arte tenha seu lugar garantido no desenvolvimento de nossos estudantes.

Por fim, também requeremos que os programas e políticas públicas voltadas aos artistas da cidade sejam realizados de forma a de fato fomentar e valorizar a arte e a cultura no  município e que isso seja feito a partir de remunerações justas e relações de trabalho não precarizadas.




Sem mais,

 

Assinam esta carta:


 Fórum de Cultura da Cidade de São Caetano do Sul

Coletivo Tear - Coletivo de arte educadores do município de São Caetano do Sul

Rede Brasileira de Teatro de Rua e seus 140 grupos de teatro, sediados em todo território nacional.

                                                      OPAE - Organização Paulista de Arte Educação

Integrantes e Participantes da OPAE:

Ana Carmen Nogueira

Mirian Celeste Martins

Roberta Jorge Luz

Rosa Iavelberg

José Minerini Neto

Lucimar Bello Pereira Frange

Edson Elidio Adão

Luciana Andréa Nunes de Magalhães

Maria Edite Horta

Isac dos Santos Pereira

César Augusto dos Santos Carvalho - Guto Carvalho

Bruna Fernanda Gomes Carvalho

Ana Marcia Akaui Moreira

 Pio de Sousa Santana

Márcia Campos dos Santos

Lelê Ancona (Alessandra Ancona de Faria)

Rubens de Souza

Mirian Steinberg

Tarcila Lima da Costa

Fernanda Eiras Rubio

Eliane Aparecida Andreoli

Maria Christina de Souza Lima Rizzi

Rodrigo Andrian de Aguiar

Mirca Izabel Bonano

Elisângela de Freitas Mathias

Laura Helena Jamelli de Almeida

Maria Cristina Blanco

Eliana Angélica Peres D'Alessandro

Liciane Ketty da Silva Braz

Rita de Cássia Demarchi

Maria de Lourdes Sousa Fabro

Lilian do Amaral Nunes

Ariene Alves Dupin

Silvana Rodrigues Montemor Mollo

Renata Fantinati Corrêa

Eliana de Fátima Fernandes

Lilian Freitas Vilela

Débora Rosa da Silva

Kathya Maria Ayres de Godoy

Maria Filippa da Costa Jorge

Michelle dos Santos Lomba

 Rodrigo Gonçalves de Abreu

Drieli Caroline Gaona

Simone Leal dos Santos Abreu

Luís Gustavo Luz

Vanessa de Oliveira Silva

Sonia Leni Chamon 

Inaê Coutinho de Carvalho

Eliane Patrícia Grandini Serrano


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A 16º Edição da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas trará espetáculos de todo o país para a capital paulista no mês de março de 2024

 

O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo – MTR, organizador da mostra, planeja receber uma programação bastante diversificada e atuar de maneira descentralizadas em diversas regiões da capital.

 

Circo Teatro Rosa dos Ventos - Foto Antônio Sobreira

As inscrições para grupos itinerantes ou não que atuam em todo o estado de São Paulo estão abertas até as 23h59 do dia 31/01/2024 e podem ser realizadas acessando o link: https://biolink.info/mtr-sp. Serão selecionados 17 espetáculos que tragam as mais diversas linguagens criadas para acontecer em espaços públicos, abertos como ruas, praças e parques.

A Lino Rojas é um símbolo de resistência que consegue representar a essência da prática de atuação de muitos grupos de Teatro de Rua e do próprio MTR, as apresentações acontecem tanto em espaços públicos centrais e simbólicos da capital, quanto em espaços que pertencem aos territórios de atuação de companhias das mais diversas regiões da cidade, isso contribui para a construção de um circuito itinerante próprio, descentralizado fortalecendo os coletivos e chegando a uma parcela da população que tem pouca ou nenhum contato com a arte. O Teatro de rua tem esse poder de chegar nos mais diversos locais com ou sem estrutura e se apresentar com a mesma força poética, questionadora, viva e verdadeira que são marcas dessa linguagem.

 

Cia da Cabra Orelana - Foto divulgação

Conseguimos ter uma dimensão da potência e da importância da Mostra Lino Rojas olhando para as edições anteriores que conseguem apresentar um diagnóstico bastante plural das produções e coletivos que atuam no Brasil, as programações contaram com grupos iniciantes ao lado de outros já consagrados e reconhecidos na linguagem. A produção da Mostra, feita sempre por diversas mãos por trabalhadoras e trabalhadores da cultura se diferencia pela configuração da programação que garante o intercâmbio e espaço de trocas formais e informais entre as companhias participantes. São raros os festivais da atualidade que se propõe nesse formato que favoreça além do encontro da arte com o público, o encontro entre artistas. Os fazedores de teatro de rua carregam histórias de relação com suas comunidades, suas atuações nas mais diversas regiões, com as mais diversas linguagens que essa arte possibilita. O intercâmbio entre essas pessoas alimenta, promove troca, constrói caminhos, aproxima as distâncias e floresce a arte de Rua.

Amir Haddad, Cesar Vieira, Movimento Escambo, Movimento de Teatro Popular de Pernambuco, Clóvis Garcia e Nega Zilda, Grupo Vento Forte, Ilo Krugli e o próprio MTR, essas foram algumas das homenagens prestadas em outras edições da Lino, o que aponta uma identidade e respeito a ancestralidade, pessoas e coletivos que fazem parte da história das artes de rua em nosso país, e para essa edição que marca a retomada desse evento tão importante para a arte e cultura do estado de são Paulo, a escolha foi por celebrarmos as mulheres do teatro de rua, enaltecendo e pontuando a importância de grandes nomes que fizeram e fazem parte dessa arte e que mesmo nos dias atuais em que se discute e luta tanto pelas causas feministas ainda são invisibilizadas e muitas vezes esquecidas nos grandes eventos.

Essa edição da Mostra é realizada pelo MTR/SP - Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, e assim como em outras edições conta com o apoio da SMC - Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo sendo viabilizada pela CPT - Cooperativa Paulista de Teatro. Contamos também com o apoio da mandata coletiva Quilombo Periférico, que compreende a importância da mostra para cidade de São Paulo, e apoia a luta de artistas para a criação de politicas publicas para a arte de rua

Maiores informações, inscrição e demais atividades da Mostra e do MTR segue lá:

https://www.instagram.com/teatroderua_sp/

Amora Balaio Criativo - Foto Luiza Kons


Sobre a Mostra

A Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas acontece na cidade de São Paulo desde 2006, indo em 2024 para sua décima sexta edição. Uma realização do MTR/SP - Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, e em todas as edições contou com o co-patrocínio da SMC - Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo sendo viabilizada institucionalmente e juridicamente pela CPT - Cooperativa Paulista de Teatro, cuja boa parte dos articuladores do MTR são associados. Por um bom tempo a mostra tinha rubrica orçamentária garantida no orçamento da cidade de São Paulo, pois a gestão pública compreendia a importância e competência do MTR/SP e da Mostra Lino Rojas em estreitar relações do poder público com a cidade e seus moradores.

Como registro histórico, a mostra produziu diversas edições da revista ‘Arte e resistência”, além de ser citada em várias edições da revista Rebento da Unesp, se tornando relevante para o registro acadêmico e histórico dos coletivos de teatro de rua municipais, estaduais e nacionais, servindo de inspiração para a criação de outras mostras de teatro de rua em outros estados brasileiros.

Com as mudanças de gestões, formas de parcerias e diminuição de subsídios, a Mostra Lino Rojas resistiu, mesmo se adaptando a diversos formatos e estruturas de trabalho, muitas vezes precarizadas. Este processo se agravou na pandemia de COVID que aconteceu entre os anos 2019-2021, onde o movimento permaneceu com a mostra em formato online como forma de resistência e permanência a sua regularidade anual. Após a pandemia, este será nosso primeiro encontro presencial, que reforçará as relações entre os grupos e os diversos públicos das regiões municipais, fortalecendo os processos de criação, manutenção, preservação e circulação de espetáculos e processos formativos de companhias que foram extremamente afetadas pela pandemia.

Este projeto também é importante pelo retorno da parceria entre o MTR/SP junto com a SMC, neste atual contexto histórico de criações de leis emergenciais, que fortalecem os circuitos culturais da cidade de São Paulo. Acreditamos que realizar uma mostra que ocupa as praças das 5 regiões da cidade de São Paulo, com 17 espetáculos e ações formativas públicas e gratuitas potencializará o diálogo existente entre SMC e regiões descentralizadas da cidade. Dentro de um contexto de reclusão social imposta pela pandemia, o teatro de rua é de extrema importância para a retomada do convívio social coletivo como uma ótima ferramenta de política pública, utilizando a cultura como uma forte aliança da sociedade com a cidade e seus cotidianos. Cabe ressaltar, que o Teatro na Rua, para Rua e com a Rua produzido por grupos artísticos multifacetados, visa ocupar o espaço público das 5 regiões da cidade, a fim de dar visibilidade para as produções existentes, bem como, democratizar o acesso às artes cênicas.

 

Circo Teatro Rosa dos Ventos - Foto Antônio Sobreira

             Mostra Lino Rojas - 1ª Edição /2006: Realizado na galeria Olido, Centro Cultural Arte em Construção e na Praça do Patriarca, local onde aconteceu apresentações de grupos selecionados por edital, no período de segunda a sexta, atingindo um público estimado de onze mil pessoas. Projeto realizado em parceria com a SMC - Secretaria Municipal de Cultura, Cooperativa Paulista de Teatro, SPTrans, CET e Funarte.

             Mostra Lino Rojas - 2ª Edição / 2007-  Homenagem a Amir Haddad:  Realizado no Centro Cultural Arte em Construção e na Praça do Patriarca, local onde aconteceram 20 apresentações de grupos selecionados por edital.  Projeto realizado em parceria com Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Ministério da Cultura,  FUNARTE, Cooperativa Paulista de Teatro, Instituto Pombas Urbanas, Commune Coletivo Teatral e Instituto Tá na Rua.

             Mostra Lino Rojas - 3ª Edição /2008 - Homenagem a César Vieira e TUOV:  Realizado na Praça do Patriarca, onde ocorreu 20 apresentações de grupos selecionados por edital, sob curadoria de Alexandre Mate e Romualdo Bacco. Contou com o Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio do Ministério da Cultura; da Secretaria de Estado da Cultura, da Cooperativa Paulista de Teatro, Coordenadoria da Juventude da Secretaria e Participação e Parceira do Município de São Paulo; Aprendizes da Capela; e Sindicato dos Comerciários;

             Mostra Lino Rojas - 4ª Edição /2009 - Homenagem ao Movimento Escambo Popular Livre de Rua: Realizado no Vale do Anhangabaú. Realizada com patrocínio do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; e apoios institucionais da Cooperativa Paulista de Teatro, Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceira do Município de São Paulo, Sindicato dos Comerciários

             Mostra Lino Rojas - 5º Edição /2010- Homenagem ao Movimento de Teatro Popular de Pernambuco/ MTPE: Realizado no Teatro Studio 84, nas esquinas da Rua Teodoro Baima com a Rua da Consolação em frente ao Teatro de Arena. Realizada com patrocínio do Movimento de Teatro deRua de São Paulo, Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Funarte e apoios institucionais da Cooperativa Paulista de Teatro, Sindicato dos Comerciários, e Restaurante Vegetariano Apfel.

             Mostra Lino Rojas - 6ª edição/2011 - Homenagem ao Grupo Vento Forte e a Ilo Krugli: Realizado na Praça do Patriarca e no SESC Pinheiros, com patrocínio do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo; Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; Funarte e apoios institucionais da Cooperativa Paulista de Teatro; Sindicato dos Comerciários e Restaurante Vegetariano Apfel.

             Mostra Lino Rojas - 7ª edição/2012 - Fomento as Artes Públicas - Homenagem a Clóvis Garcia e Nega Zilda: Realizado na Praça do patriarca e Cidade Tiradentes com o patrocínio do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e apoios institucionais da Cooperativa Paulista de Teatro, Sindicato dos Comerciários.

             Mostra Lino Rojas - 8ª edição/2013 - Homenagem ao 10 anos de existência do Movimento de Teatro de Rua em São Paulo (MTR): Foi realizado o I Encontro Estadual de Teatro de Rua no CDC Vento Leste, Centro Cultural Arte em Construção e Praça do Patriarca. Com o Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e apoios institucionais da Cooperativa Paulista de Teatro.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Arte: apontamentos iniciais para descortinar criações e armadilhas

 


Adailtom Alves Teixeira[1]

 

A arte é uma das possibilidades de conhecermos melhor a nós mesmos como humanidade, bem como a realidade a nossa volta. Por meio de uma obra, que nos desperta sentimentos, se pode relacionar, comparar tais sentimentos a outros e de outras pessoas. Porém, para um maior efeito, isso ocorre quando a arte está conectada com seu tempo histórico, com o mundo à sua volta ou quando capta aspectos fundantes de nossa humanidade. “O conhecimento jamais esgota a realidade, mas a ciência e a arte, mesmo não sendo oniscientes e onipresentes, têm desvendado aspectos importantes do ser” (Konder, 2005, p. 60).

Não é por acaso que a arte é fundamental na constituição de identidades, seja dos sujeitos, seja dos territórios. Ainda que para este último apenas a produção artística não baste, posto que a identidade de um lugar se compõe de diversos elementos culturais, dos quais a arte é apenas um dos componentes. Sujeitos e lugares, por sua vez, estão conectados, como afirma Ana Mae Barbosa: “Relembrando Fanon, eu diria que a Arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro em seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo” (2002, p. 18).

Pode-se afirmar que, quando olhamos esse campo de conhecimento de modo amplo, nenhum grupo social vive sem arte, posto que o ser humano tem necessidade de beleza – ainda que o belo seja apenas uma das categorias estéticas das artes – e de expressão. À primeira vista tal afirmação pode escorregar para certo idealismo, porém tal expressão a que chamo de necessidade de beleza, é a possibilidade de dar contornos, formas sentidos às coisas em diálogo com seu tempo; toda obra é material. “O artista, embora pense com suas mãos, crie com seu corpo, surge em uma época, isto é, em uma história e em um mundo, cuja palavra, primeiro poética, mítica, sempre estabeleceu antes os contornos e os limites” (Haar, 2000, p. 94).

Por isso, responder o que é arte se torna algo difícil, já que não é unívoca. Melhor que dá uma resposta única é tentarmos continuar a burilar tal universo. Uma palavra, ao ser manipulada pelo poeta, pode assumir outros sentidos; uma pedra desbastada pode ganhar formas diversas, um objeto retirado de seu contexto original e posto em outro, pode ganhar um novo status, o de obra de arte.

As pessoas em sociedade, não só criam os objetos de arte, como também criam as condições para que esses objetos sejam vistos como tal. O nosso ancestral que pintava nas cavernas, é certo que não fazia arte naquele momento, tal produção tinha uma função mágico-religiosa, mas com o tempo passamos a vê as pinturas das cavernas como obras de artes: arte rupestre.

A arte se reinventa, visando expressar questões humanas, questionando a si, a sociedade e a seu tempo. O artista cria, o fruidor, o público, recria ao dar sua interpretação. Os especialistas elevam ao status de arte, aquilo que não foi pensado inicialmente como arte, como, por exemplo, uma pia batismal do século XVII. Nesse sentido, como distinguir obras de artes de outros objetos?

O papel da arte também não é o mesmo em todas as épocas e lugares, ela muda sempre; os gostos mudam e mudam as formas de nos relacionarmos com a arte. Mas quem determina que algo, que certos objetos são ou não uma obra de arte, ou aquilo que antes não era passe a ser visto como um objeto artístico?

Como afirma o filósofo Arthur Danto: “O que afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é [...]. É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte” (2015, p. 37). Ora, então sem o teórico não existe arte? Bem, para Danto, quando o artista retira um elemento da realidade, modifica-o ou lhe dá novos significados, necessita de certa teoria para que de algum modo tais objetos se plasmem como obras de arte. O que demonstra quão complexo é o mundo artístico. Desse modo, poderíamos pensar em Mestre Vitalino (1909-1963), para além de seu imenso talento, seus “brinquedos” vendidos na feira de Caruaru teriam se tornado uma arte desejada, caso não fosse o fato de ganhar novos espaços? Como a exposição em que participou em João Pessoa a convite do artista plástico Augusto Rodrigues em 1947? Depois, o artista expôs no Masp em 1949, de onde alçou voos internacionais, ao compor uma exposição brasileira na Suíça em 1955.

Tal complexidade é também abordada por Jorge Coli, sobretudo no que tange aos ditos espaços consagrados e que consagram; tais lugares teriam, em tese, a capacidade “Para decidir o que é ou não arte”. Dentro de tais elementos, ao juntar teoria e espaços de legitimação cultural, o autor afirma que nossa cultura possui instrumentos específicos para isso. “Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, em que reconhecemos competência e autoridade. Esse discurso é o que profere o crítico, o historiador da arte, o perito, o conservador do museu. São eles que conferem o estatuto de arte a um objeto. Nossa cultura também prevê locais específicos onde a arte pode manifestar-se, quer dizer, locais que também dão estatuto de arte a um objeto” (Coli, s.d., p. 13). Mas, pode-se perguntar: quem são as pessoas, gestores, instituições que representam tais espaços? Qual o contexto que determinada obra é valorada? Porque umas são valorizadas em detrimento de outras?

Rosangela Patriota (2008), ao revisitar seu histórico de pesquisas acerca do teatro, afirma que a “memória histórica”, isto é, a produção e reflexão de historiadores, cria certo ordenamento das experiências artísticas, daí a importância do diálogo crítico com a história do teatro. Como exemplo a autora afirma que “[...] noções como moderno, político, universal, clássico, engajado, entre outras” (2008, p. 36), vão estruturando valores e hierarquias de artistas e obras. Apesar de, para a autora se ter avançado nas pesquisas acerca do teatro Brasil a fora, além da impactante contribuição de suas produções, sobretudo na década de 1970 – foco da autora –, as reflexões “[...] foram profundamente impregnadas pelos temas e ideias das cenas paulista e carioca” (Patriota, 2008, p. 38). 

Assim, podemos concluir que, se por um lado, muitos dos objetos que apreciamos como obra de arte, sem as teorias, sem os críticos, sem os espaços consagrados ao mundo das artes, provavelmente jamais seriam vistos como arte. Por outro lado, é importante sabermos que quando estamos diante de uma obra ou artista dito “consagrado”, tanto um como o outro, são mais do que o objeto e a pessoa, acabam por englobar tudo o que foi produzido/escrito sobre a obra e sobre o artista. Por isso mesmo, não significa dizer que aquelas obras que estão fora desse rol necessariamente são destituídas de valores e importância; significa, tão somente, que algumas galgaram um lugar que outras não chegaram, graças a um aparato que depende de outras redes e “especialistas”.

Para finalizar com Danto: “Qualquer que seja o predicado artisticamente relevante em virtude do qual elas ganham seu acesso, o resto do mundo da arte se torna proporcionalmente rico ao ter o predicado oposto disponível e aplicável a seus membros” (2015, p. 41). Cabe ainda mencionar que, determinadas expressões artísticas, têm sido persistentemente desprestigiadas, ignoradas, postas de lado, que quando há reflexões sobre elas, são no sentido de desvalorizá-las, por isso, faz-se necessário aguçar o olhar, ouvidos, demais sentidos e a razão, analisando com cuidado tais hierarquias criadas; é preciso uma análise a contrapelo, como nos ensina Walter Benjamin (2012).

Tal reflexão, como já dito, não é unívoca e é apenas um passo inicial em um processo muito mais amplo, mas pode-se concluir que a “consagração” de uma obra artística, implica muitos/as sujeitos/as para além de seu/sua próprio/a criador/a. Inserido/a no seu tempo histórico, com o qual, consciente ou inconscientemente o/a artista lidará, ele/ela necessita também de toda uma rede que implica, além dos/as fruidores/as, outros/as sujeitos/as, como os formadores para recepção da obra, críticos/as que a debaterão, espaços específicos ou outros que rompam com os já consagrados em que suas produções ganharão o status de obra de arte.

Evidente que, para além disso, temos necessidade da arte para nos completarmos como seres humanos; e cada tempo histórico produz seus artistas; além disso, vivemos em um mundo dividido e todas essas reflexões – bem como o próprio entendimento da produção artística – precisa ser considerado em nosso tempo, pois ela, a arte, tem também uma função a cumprir. “A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. A função da arte, numa sociedade em que a luta de classes se aguça, difere, em muitos aspectos, da função original da arte. No entanto, a despeito das situações sociais diferentes, há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente. E é essa coisa que nos possibilita [...] comovermo-nos com as pinturas pré-históricas das cavernas e com antiquíssimas canções” (Fischer, 1973, p. 16)

 

Referências

BARBOSA, Ana Mae. As mutações do conceito e da prática. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002, p. 13-25.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v. 1. 8ª ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo; Brasiliense, 2012.

COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (Coleção Primeiros Passos volume 7)

DANTO, Arthur. O mundo da arte. Trad.: Rodrigo Duarte. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 26-41.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São Paulo: Boitempo, 2005.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e o historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rasangela (Orgs.). A história invade a cena. São Paulo: Hucitec, 2008.



[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).