Durante a XIII
Mostra Lino Rojas, organizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo
(MTR/SP) no segundo semestre de 2019, tive a oportunidade de assistir, na Casa
de cultura do Itaim Paulista, zona leste da capital paulista, ao espetáculo Vulcânicas
- Ensaio sobre nossos corpos femininos em luta, inspirado nos livros Calibã e a Bruxa, de Silvia Federicci e Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa
Pinkola Estés, em montagem da companhia também denominada Vulcânicas. Fiquei muito contente em ver o novo caminho coletivo
trilhado por um conjunto de mulheres artistas experientes e aguerridas: Cinthia
Arruda, Ju Flor e Natali Santos, oriundas do longevo e importante grupo Pombas
Urbanas. A obra teve a direção de Aysha Nascimento, artista integrante do
coletivo Negro de Teatro e da Cia. dos Inventivos e a dramaturgia de Rafaela
Carneiro, integrante do grupo também feminista Madeirite Rosa e, por sua vez, artista
madura oriunda da Brava Companhia.
Cinthia Arruda, Natali Santos e Ju Flor em Vulcânicas. Galpão do Folias. Foto: Sheila Signário. |
Considero que
a obra expresse tanto um momento de militância e pesquisa artística específico
extremamente relevante dessas atrizes-criadoras, em torno das questões
interseccionais de gênero e classe, como também seu processo histórico de luta
e resistência cultural na zona leste de São Paulo, onde está sediada a companhia.
Porém, diferentemente de percursos anteriores, desta vez o trabalho se dá a
partir do protagonismo feminino na cena e na criação artística.
Como
é sabido de todes que tenham algum nível de consciência de classe, o acesso aos
recursos públicos e privados de fomento às artes e a cultura é absolutamente
desigual, com privilégios ligados à classe, raça, gênero e distribuição da
produção cultural no território das cidades (especialmente em relação à
dicotomia centro-periferia). Nesse sentido, em que pese a qualidade artística
do trabalho das Vulcânicas, estou plenamente consciente que seu sustento e
continuidade – assim como de tantos outros coletivos periféricos – necessita de
um olhar diferenciado por parte do poder público, para que não se reproduza a
exclusão histórica que privilegia grupos mais centrais e, frequentemente, mais
ligados aos circuitos acadêmicos e da crítica teatral e ainda, cuja
predominância de poder, muitas vezes, mantém traços mais evidentes do patriarcado.
Por esse e outros motivos associados, no que tange à crítica teatral, dedico-me
principalmente ao teatro de rua, na busca de jogar luz sobre essas potentes
experiências e reverter parte do preconceito que acomete essa modalidade
teatral, mas começo também a dedicar mais atenção aos coletivos que se dedicam
às lutas anti-opressão específicas (também chamadas, talvez de forma
equivocada, de lutas identitárias) por vê-las como determinantes para o
enfrentamento das questões que ferem nosso tecido social.
Apresentação de Vulcânicas na ocupação Nove de Julho. Foto: Dayse Serena. |
Ainda que o
espetáculo de estreia do coletivo Vulcânicas
não seja propriamente teatro de rua, suas criadoras, por também serem atrizes
de rua, trazem em seu jogo de cena e em sua temática, eminentemente popular e
classista, muitos dos aspectos que me atraem no teatro de rua e que
proporcionam ampla comunicação com o público das cidades. Na obra, de estrutura
assumidamente épica, memórias documentais e ficcionais se mesclam entre imagens
de trabalhadoras periféricas, mães, filhas, esposas, feiticeiras (bruxas,
santas ou nenhuma dessas opções maniqueístas?) apresentadas de forma tocante e
hábil pelas atrizes, que também são musicistas, cantam e tocam belamente em
cena. Sua narrativa, em que pese alguns pontos e significações que podem ser
aprimorados, no sentido das costuras dramatúrgicas e de encenação, é tocante e
envolvente, como manifesto, denúncia e
acalanto em mulheres que, a despeito de toda a violência histórica, aprenderam
a cuidar e estão (estamos) aprendendo a se cuidar, como nos lembra uma bela
canção do espetáculo:
Fazer-se sã, neste lugar, apenas existir
E já não ser, para lhe agradar
Não vim pra lhe servir
Por isso e
vários outros méritos, desejo longa vida ao espetáculo Vulcânicas...[1]
e a seu coletivo homônimo, torcendo para que ele possa circular por todas as
regiões da cidade de São Paulo e em muitas outras localidades mais,
proporcionando beleza, diversão (no sentido brechtiano) e inspiração pra luta e
resistência das mulheres e para o combate ao machismo estrutural que sangra
diariamente nossa sociedade e nossas relações humanas.
Alexandre Falcão de Araújo
Professor do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade
Federal de Rondônia – UNIR
Coordenador do Grupo de Trabalho Artes Cênicas na Rua, da
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE
[1]
Parte da obra, adaptada para o audiovisual (de forma inteligente e sensível)
por conta do contexto da pandemia do COVID 19, pode ser conferida no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=d-TL-mHF6KM