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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Reflexões de um Escambista Apaixonado

Por Jair Soares de Sousa - Educador popular, brincante do Bando Gambiarra e do Pintou Melodia na Poesia.

Comecei a trilhar os caminhos e melodias do movimento escambo livre de rua, em meados de 2005, através da articulação nacional de movimentos e práticas de educação popular e saúde - ANEPS. Na ocasião estávamos montando um espetáculo teatral chamado manifestações da gente no qual a facilitação cênica era conduzida por essa figura fantástica e singular chamada Junio Santos, que era um dos fundadores do movimento escambo livre de rua. Lembro-me que meu primeiro escambo foi na cidadezinha de Janduís–RN. No começo fiquei meio perdido na movimentação, muita gente chegando, diversos grupos culturais etc., nesse escambo apresentamos uma parte do espetáculo manifestações, pois o mesmo estava em fase de conclusão. Comecei a me envolver nos cortejos de rua, nessa ocasião conheci o pessoal do movimento PAU E LATA DE NATAL, figuras antigas dentro do movimento escambo como o saudoso e já falecido mestre de capoeira DADÁ, do grupo ginga faceira, BIRA do ciranduís, BERG, RAY LIMA, entre outros escambistas.

O meu primeiro escambo foi uma experiência inexplicável, fiquei em estado de explosão, euforia, prazer, enfim não sei explicar corretamente mais isso permaneceu em mim, esse movimento tem uma energia muito forte sobre as pessoas que o vivenciam. Quem escamba, jamais esquece, fica marcado para o resto da vida.

No segundo escambo foi vivenciado na praia da redonda comunidade do município de ICAPUÍ–CE, na ocasião havíamos envolvido mais grupos de Fortaleza, daí começa a se organizar o movimento escambo na cidade de Fortaleza começamos a dialogar e divulgar o escambo.

Depois de ICAPUÍ, fizemos Carnaúba dos Dantas, UMARIZAL, retornamos a JANDUÍS e agora fizemos na cidade de SÃO MIGUEL DO GOSTOSO.

Quando comecei a fazer parte do escambo ainda estava concluindo o ensino médio, atualmente estou fazendo graduação em pedagogia e percebo que a dimensão de aprendizado que temos no movimento escambo jamais vai ser vivenciada em nenhuma universidade ou faculdade. As expressões de luta e resistência que o escambo trás em sua bagagem são fortalecedoras e ao mesmo tempo formadoras do nosso processo de conscientização critica da realidade na qual estamos expostos.

Debater sobre filosofia, sociologia e política fazendo arte, torna o processo de aprendizado mais prazeroso. No escambo refletimos tudo isso a partir da produção artística e cultural que fazemos no nosso cotidiano, nas nossas capitais, interiores, e até em outros países.

As linguagens da arte trazem para o centro da roda a importância de discutir "os modos de acalentar, sentir a dor, o parto, o gozo, a traição, o choro, o crescimento dos filhos, a seca, a invernada, a partida para o longe de outras terras, o acarinhado de quem se aguneia por um agrado, o modo de despejar na natureza seus sentimentos de homem ou de mulher, a fome" (Linhares; 2003), esse singular que é o modo próprio de ser do povo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

UM ESCAMBO DE MUITA PAZ

Por Ray Lima – Cenopoeta Um Escambo de paz O Escambo de São Miguel do Gostoso foi isso. Um encontro de paz e relação amorosa entre os artistas e a cidade. Amor à primeira vista. Para se ter uma ideia estávamos tomando café numa padaria, depois de uma viagem cansativa de nove longas horas de Fortaleza para São Miguel, quando fomos abordados por uma garçonete nos perguntando se éramos do Escambo. Respondemos que sim. Ela então nos informou, apontando para uma senhora que também lanchava na padaria, que não precisávamos pagar nada porque aquela senhora bancava nossas despesas. Em seguida, D. Ieda, como se chama, pediu licença, sentou conosco e quis saber mais sobre o movimento. Após uma boa conversa confirmou a informação da garçonete, indo mais além: resolveu nos adotar arcando com o café da manhã para o grupo Pintou Melodia na Poesia, durante todo o evento. Uma demonstração de solidariedade e compromisso com a vida cultural da cidade. Coisa que a própria prefeitura não demonstrou. É claro que chegando à escola onde nos alojamos propusemos um revezamento entre os grupos presentes para compartilhar o saboroso café. Assim o Escambo se deu no mais puro convívio com a comunidade e sua população, sem incidentes, sem problemas. Da força e do saber coletivo de repente se improvisa Já diziam os grandes mestres que improvisa quem sabe, quem tem acúmulo e criatividade suficientes para agir sobre a orientação de um plano mínimo sem se perder nem vacilar. Ninguém consegue improvisar em cima do nada. Pois bem. O Movimento Escambo Popular Livre de Rua tem revelado essa capacidade. Em seus 20 anos de luta, resistência e poder criativo tem proporcionado aos escambistas e às pessoas dos lugares aonde vamos momentos de extrema riqueza artística e produção do comum que mobiliza e encanta. Quem não conhece o processo do Escambo pode imaginar um caos ou algo muito organizado, exaustivamente planejado e ensaiado para se chegar a tantos resultados com qualidade. A força da participação e da gestão coletivas faz desse movimento uma potência real com poder de realização impensável nas condições e conjunturas em que tem atuado. A experiência de produção e gestão dos jovens Não há dúvida de que a coordenação local do encontro tendo a frente Filippo Rodrigo e Patrícia Caetano, apoiados pelos componentes do Bando La Trupe, deu o mote da tranqüilidade, do ambiente de paz e democracia. Acho que eles inovaram ao não cobrar das comissões de organização do encontro e do próprio coletivo o cumprimento de suas tarefas. Os contratos, os acordos eram firmados e cada grupo que tratasse de dar conta, não havendo maiores cobranças nem pressão sobre quem quer que seja. A conseqüência é que desta forma acabava ficando mais claro quem estava blefando. Neste caso todos se beneficiando ou pagando altos preços de acordo com a postura e a atitude de cada comissão e ou do todo presente. Isso poderia ter levado ao caos como poderia gerar um processo de conscientização que, em parte trouxe reflexões importantes, puxando a responsabilização pela realização do evento para o coletivo e não apenas deixando-a pesar sobre os ombros, como de resto em alguns casos também ocorreu, do grupo que sediou o encontro. Contanto, foi um Escambo de bons espetáculos, de boas conversas, discussões e debates profundos; de escambares animados e participativos; de banho de mar, birita para alguns e luta serena e pesada (ainda) para outros. Talvez seja esse último um dos pontos que permanecem como desafio a ser superado pelos escambistas: a sobrecarga nos grupos anfitriões. Acreditamos que as coisas mudarão à medida que o Escambo for se tornando mais ESCAMBO, quando se enraizar em cada um de nós como prática e cultura coletiva. Presença do Amir O fato de o Amir estar participando dos encontros do Movimento Escambo, além de acrescentar-lhe importância, traz-lhe também uma contribuição do ponto de vista estético, filosófico, político muito grande. O Amir Haddad tem a madureza, o acúmulo teórico e prático de quem fez opção pela rua quando poderia estar desfilando pelas coxias e palcos do teatrão. O Boal, seu velho amigo e grande mestre dos oprimidos, se foi, mas ele segue firme conosco a refletir e a nos cutucar com a língua pontuda de suas utopias. O Amir não é propriamente um intelectual da rua ou do teatro popular. Ele é um exímio pensador do nosso teatro, do Brasil, da contemporaneidade. Suas ideias e reflexões estão impregnadas de humanidade, de gosto pela vida, pela alegria de ser gente a partir do olhar artístico, estético. Noutras palavras nos engrandece, alimenta e nos honra. É verdade que, como ele mesmo diz, aprende com o movimento, mas sempre traz muitos ensinamentos. E obviamente não é daqueles que chega com tudo na maleta para despejar, não é de fazer conferência, pré-fabricar teses e empurrá-las a qualquer custo. Aliás, não anda com nada. Sequer carrega uma mochila, uma pasta, um caderno. Não usa data show nem exibe imagens prontas. Confia na memória e em sua potente tecnologia do pensar de improviso, de processar os olhares sobre o mundo, transformando-os e traduzindo-os simultaneamente para algo visível a olho nu, inteligíveis, ao alcance de qualquer mortal. Um homem sem apetrechos, leve. Um filósofo sem frescura nem pantim. Lembrando o João Cabral de Melo Neto, em "catar feijão," o Amir é cuidadoso e preciso no que fala. Vai colhendo-lendo com maestria imagens e fatos do cotidiano, do que se passa ao seu redor como se debulhasse uma espiga de milho e processasse os grãos que vai selecionando rapidamente para nos ofertar, transformando aquilo que há pouco era um cereal cru, duro e quase sem gosto, um manjar-munguzá do saber gostoso, nutritivo, rico e novo. Porém, faz isso sem o medo de revelar como se dão os mecanismos de produção de conhecimento - sem apontar receitas ou fórmulas fáceis, mas ajudando-nos a aprender a gostar de pensar e repensar nosso fazer artístico - e de como fazer uso dos conhecimentos que produzimos para construir estratégias de existência digna, emancipadoras, de intervenção na história e nos contextos de injustiça e desigualdade social do Brasil e do mundo. No entanto, tenho observado desde Umarizal que alguns grupos não atentaram para o privilégio de contar esse mestre das artes de rua e da cultura popular em nossos encontros e de efetivamente tê-lo como escambista. Uma presença pedagógica, marcante e inovadora sempre porque produz suas reflexões a partir do que está vivendo. Da produção à apropriação dos modos de produção Do poder de capital não há o que esperar. Do poder político, preso às amarras dos financiamentos de campanhas eleitorais e à indústria das propinas; e, por outro lado, pressionado pela massa desesperada e oprimida pelos dois muito menos. Resta-nos apostar no poder popular advindo do âmago desses desesperados ainda não tragados pela onda do desespero. "resta agora abdicar[1] desse poder que fere e mata e nos arrasta para uma arena desigual onde o boi é o bandido e a plateia o oprimido no varal" Entre estes estamos nós artistas que podemos desempenhar um papel fundamental para a transformação desse quadro desbotado que parece nunca descobrir e assumir outras cores. Chegou a hora, cito o poema que diz muito sobre o Escambo e o desafio de ser artista popular no Brasil: " É PRECISO QUE SEJAMOS FILÓSOFOS É preciso aprender a semear com a máquina do tempo[2] É vital, mais que vital inventar Vida e verdade, sonhos e realidade Razão com alegria bailando Sobre o espelho das águas perenes." Ainda esperamos coitados as chuvas do céu Quando devemos fazer chover no chão de caos e ilusão Umedecer as pedras, fazê-las verter poesia Transformar em vida a energia do sol em desperdício Que hoje nos flagela e definha A fome indústria cega e daninha há de ser O instrumento maior de transformação Tinta e pincel A reflexão, o painel sobre a eterna falta Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda A inteligência carcomida pela força da moeda Será o túmulo dos canibais de consciências É imprescindível e inevitável que sejamos filósofos Filósofos de nós mesmos Criadores e semeadores da nossa própria filosofia Recriadores confessos do nosso rosto Decoradores do espaço reservado à nossa causa Defensores incessantes do grito de liberdade Do motivo do nosso choro, da grife do nosso riso Precisamos estar sempre dispostos a corrigir nossos costumes Mergulhar no abissal dos nossos valores culturais Para que venhamos festejar nossa vanguarda Celebrar a estética do brilho estelar da nossa alma A estiagem haverá de ser o nosso eterno objeto de estudo A resistência nosso princípio nossa viagem" Para tanto, temos que solucionar alguns probleminhas aparentemente bestas, mas que refletem o quanto precisamos avançar para sermos autogestores, autônomos, livres, emancipados. O poeta Reginaldo, numa pequena roda de diálogo, daquelas espontâneas, falava sobre a questão da alimentação e do transporte que são nós críticos ou estrangulamentos carecedores de saídas mais sustentáveis, precisando ser discutidos e levados à prática pelos grupos. O poeta defende que esses dois itens devam ser uma responsabilidade de cada grupo como era, em parte, no início do movimento. Cada um produz suas condições para chegar e estar em cada encontro. Parece castigo para quem não dispõe de políticas culturais e sociais consistentes nos municípios ou radicalismo por parte do poeta, mas entendemos que proposições como essas podem servir para refletirmos sobre a construção de autonomia e não dependência dos grupos em relação não só aos encontros do Escambo, mas ao seu fazer artístico onde vivem. Por que não pensarmos numa economia do Movimento Escambo? Como nos sustentamos hoje e o que precisamos para garantir nossa longevidade com decência? Não sei como seria, não sou economista. Mas se pensarmos que a pessoa, a família mais pobre do mundo consegue inventar maneiras para viver, sustentar-se vivo, por que nós artistas populares não aprofundamos o tema e investigamos sobre a invenção de nossa própria economia, fora da lógica de mercado, a partir da experiência do existir de vinte anos? Quais nossas reais potências? Que tecnologias e estratégias de sustentabilidade estão produzindo nossos grupos em seus lugares? Qual o potencial de troca que possuímos? Como desenvolver uma economia, uma produção cultural inspirada nas próprias tecnologias acumuladas pelo Escambo? Na cultura popular há vários exemplos de modos de existir, resistir. Onde estão e como mapear tais experiências? Quantas famílias antigamente passavam o ano produzindo para se manter e guardar algum trocado para ir às festas da padroeira da cidade. Era uma verdadeira produção: plantar, regar e colher para no dia da festa está de roupa nova, sapato novo e alguns trocados para brincar e espraiar sua alegria de interagir com o outro e compor com brilho a humanidade da festa. A lógica era: se preciso ir à festa, gosto e necessito de brincar tenho que criar as condições, trabalhar com afinco para garantir minha presença participante na festa. Como beber nessas fontes? Nós artistas temos o poder da expressão que vale por muitos mercados. A expressão, como diz Amir Haddad, "é uma conquista e não uma dádiva divina. A expressão é uma necessidade absoluta do ser humano e por isso não pode estar submetida a dogmas ou ideologias." Não seria aí que residiria nosso poder de fogo, nossa potência para tornarmos o mundo e a vida na terra mais leves, sustentáveis e prazerosos. Se somos capazes de recriar o mundo por meio da arte o seremos para inventar uma economia que seja mais favorável às nossas práticas vitais. Portanto, se o escambo é troca e todo mundo quer trocar, mãos à obra que outros escambos estão para acontecer. Entretanto, não basta querer ir aos encontros, é vital que nos façamos significativamente presentes pelo papel que desempenhamos em nossos grupos e pela ação que praticamos para o fortalecimento desse coletivo revolucionário e em pleno voo. Fortalecendo a ideia de ocupação dos espaços públicos, principalmente as ruas. Muito embora sem cercear outras possibilidades, não temos como abdicar das ruas como espaço primordial de nossas práticas culturais. Ocupar as ruas é, como diz Amir Haddad, dar-lhe mais humanidade, mais alegria, paz. É torná-la mais pública, menos privatizada e mais democrática. Não podemos aceitar que privatizem as praças, os logradouros públicos. Eles existem para serem lugares de gente feliz, de convívio social. Deixando o ser artista mais forte Aqui nos utilizamos das palavras do Ricardo, de Fortaleza, para ilustrar o que o Escambo representa para nós, seja para está chegando pela primeira vez, seja para quem tem anos de estrada: "OI GENTE LINDA. Pois é . . . mais um ESCAMBO em nossas vidas. Muita Arte em toda parte. Deixa EU contar uma coisa pra VCs. Esse ESCAMBO com toda sua dificuldade pra mim foi de muita superação. E é esse o sentido de ESCAMBAR de TROCAR, vc entende realmente o sentido do Movimento. Vc se encontra nele, vc contribui com o que pode. Esse de Gostoso (São Miguel do Gostoso-RN) mexeu muito com as pessoas que estavam indo pela primeira vez. E mexeu mais ainda naquelas que já estão no movimento há mais tempo. Uma coisa é certa cada ESCAMBO com suas diferenças, suas semelhanças e suas Historias. Volto mais fortalecido, pois o ESCAMBO nos faz isso. Fortalece mais e mais os grupos que dele participam. E a ideia é sempre continuar ESCAMBANDO pelo meio do mundo, levar esse movimento além do horizonte. Um Grande abraço pra todos e todas que tornaram possível esse XXV ESCAMBO. Ricardo Furão - escambista, pastor da chama real e loirim Paramos por aqui. Ando ainda entre o furor da alegria escambista e a anestesia da tristeza pela perda de um irmão querido. "Hoje eu ouvi um bem-te-vi[3] Cantar cantar Também ouvi o juriti Dizer que a vida é feito um canto Quem canta encanta Então é feliz É tão bom cantar Cantar cantar cantar Tomara que essa gente Seja assim feliz Pois sou feliz cantando" [1] Lima, Ray. Lâminas. Expressão Gráfica. Fortaleza 2009. [2] Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. I Queima Bucha 2 ed. Mossoró-RN 2005 [3] Musica de Jadiel Guerra

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Jussara Trindade escreve sobre o Matraca

SÍSIFO IN WORK

Alunos de Interpretação Teatral I - Curso de Licenciatura em Teatro da UFMA

A performance Sísifo in work foi realizada no primeiro dia do II Encontro Matraca de Teatro de Rua, em São Luís do Maranhão. No final da manhã, por volta das 11h sob o sol escaldante da Rua Grande, movimentado centro comercial da cidade, muita gente suada e apressada lutava por uma passagem nas calçadas estreitas; talvez estivessem em busca de presentes, já que nos aproximávamos do Dia da Criança, 12 de outubro. Eu procurava ansiosa por algum sinal de "atividade teatral", pois não via nada além de gente e mais gente, até onde a minha vista alcançava. E a rua parecia não ter fim!

Então, avistei um grupo de atores que vinha pelo meio da rua, diretamente em minha direção. Muitos transeuntes acompanhavam o lento cortejo. À frente, alguns atores caracterizados como trabalhadores de diferentes profissões conduziam com muito cuidado um enorme pneu de trator; dentro dele, uma atriz equilibrava-se com dificuldade, enrolando o corpo na mesma forma circular. Logo atrás, jovens atores e atrizes dispostos em três fileiras paralelas vinham recitando em uníssono o poema Sísifo, de Heiner Müller. Estavam, também, caracterizados: operário, professora, médico, escriturário, vendedor, simples cidadão ou cidadã. Alguns vinham descalços, ou com partes do corpo à mostra. Nada, ali, evocava sensualidade. Era uma exibição de simples corpos-máquina. Revezavam entre si as posições assumidas na coreografia de movimentos repetitivos que sugeria o lento movimentar de uma engrenagem, talvez um mecanismo a empurrar penosamente a grande pedra-roda que o belo texto de Muller descreve com tanta poesia:

"Fazer rolar a pedra, sempre a mesma,

para cima do monte, sempre o mesmo" (...)

Impossível ficar indiferente àquela imagem poderosa e magnética, que atraía para si a atenção de todos. A visível dificuldade de equilibrar o pneu e a atriz dentro dele, a longa e difícil caminhada debaixo do sol inclemente, o calor, o suor, a sede e o cansaço, tudo embalado pelo texto adágio, repetido de novo e de novo desde o início, num círculo de eterno retorno ad infinitum, a performance conseguia provocar, no espectador, as sensações físicas contidas nas palavras do texto:

"o peso da pedra aumentando,

a força do trabalho diminuindo com a subida..."

E tornava terrivelmente verdadeiro o presumível desfecho da empreitada:

"Esperança e decepção. Arredondamento da pedra.

Desgaste recíproco de homem, pedra, monte. Até o clímax sonhado."

Alguém perguntou, do meu lado: "É greve?" E alguém respondeu: "Parece que é só teatro..." Uma senhora indignada exclamou alto, da calçada: "É isso mesmo! A gente trabalha, trabalha, e a força vai só diminuindo, até a gente envelhecer". Muitos comentavam, observavam, acompanhavam, tão compenetrados quanto os atores. O público demonstrava grande respeito pela performance, talvez por identificação com o tema ou mesmo pela total concentração e seriedade dos atores. Percebia-se uma alteração no ato de caminhar dos transeuntes, transformados momentaneamente em espectadores-atuadores. Vários entravam em sintonia rítmica com o deslocamento do grupo, e passavam a andar lentamente a seu lado. O público aceitava a interferência, admitindo uma ressignificação temporária daquele lugar e modificando, propositalmente, o seu frenético movimento cotidiano.

Apenas alguém não teve a mínima sensibilidade para com o esforço sobre-humano de Sísifo: como um sintoma da grave doença urbana que tenta, de todas as maneiras, subtrair o espaço público do cidadão, foi justamente o motorista de um carro-forte, desses que levam "valores" pela cidade, quem mais se impacientou com a lentidão do cortejo e ficou ameaçadoramente atrás da última fileira, acionando a sirene bem perto dos atores e exigindo que a performance lhe "abrisse passagem". Ironicamente, o caminhão exibia o letreiro "CEFOR – segurança e informação" na couraça blindada. O diretor Luiz Pazzini, que vinha com um megafone ao lado do grupo, trajando macacão e capacete de operário, ainda resistiu por algum tempo; mas a situação foi ficando insustentável e, finalmente, ele conduziu a performance para seu desfecho final, com os atores e atrizes recitando em uníssono o poema pela última vez, em círculo. Embora um tanto "doutrinário", foi um final belo e emocionante.

São Luís, 08 de outubro de 2009

ESPETÁCULO CIRCULUZ BRINCANTE – Raquel Franco e Tapete Criações Cênicas

Era um espaço calçado, num canto da Praça Deodoro, em São Luís. Ao lado havia um Ponto de Táxi onde alguns homens conversavam, aguardando clientes sob as árvores. Ali, foi montada uma estrutura metálica muito alta de onde pendia um tecido vermelho, até então amarrado numa das "pernas" laterais. Em seguida, já como a palhaça Keke Kerubina, Raquel Franco andava de um lado para o outro conversando com o público, em sua maioria crianças sentadas em semicírculo, onde a generosa sombra das árvores amenizava um pouco o sol escaldante. Era bom ver aquela figura cheia de doçura andando de lá para cá com seu enorme vestido sobre uma malha de listras horizontais e imensos sapatos coloridos que lhe davam o caminhar desajeitado dos palhaços. Andar esquisito, com os joelhos subindo mais do que o normal a cada passo, como se andassem num terreno pegajoso ou alagado. Com esse andar já meio caindo, os palhaços estão sempre brincando com o equilíbrio – ou a falta dele. E assim vão, caminhando torto e desengonçado pela vida afora. Fazendo os seus sempre estranhos afazeres, em eterno desequilíbrio. Esse é um dos segredos do palhaço: ficamos esperando ele tropeçar para rirmos dele... e ele sabe que a gente sabe, e fica esperando o momento exato de uma distração nossa para só então tropeçar e fazer a gente rir! Todos sabemos que o palhaço vai errar, tropeçar, cambalear; mas ele sempre consegue pegar a gente de surpresa. Ele é o dono do jogo, mesmo que seja o jogo de errar tudo. A sua arte reside em brincar com a instabilidade, com o movimento perpétuo, com o desequilíbrio que leva à necessidade de se inventar um novo equilíbrio; em desafiar o mundo "normal" em que as coisas estão – ou deveriam estar - firmemente assentadas em seus devidos lugares.

Então Keke pendura uma rede – invenção da mais pura genialidade indígena-nordestina-brasileira - na grande estrutura, deita, deixa todo mundo com inveja daquele conforto. De repente, pega uma almofada e... voilá! A almofada vai para baixo do vestido e vira uma barriga enorme. Keke, a palhaça, está grávida! E vai parir ali mesmo, na praça, diante de todos! Segurando a barriga com uma mão e gesticulando com a outra, caminhando já quase em posição de parto, Keke vai puxando assunto com os espectadores, perguntando pelo pai da criança e dando muitos motivos para a meninada "zoar" de algum amigo, entrando com gosto na brincadeira tão séria de descobrir "quem é o pai da criança". Parodiando o ritual sagrado do parto, com o auxílio confuso do "pai" encontrado entre os presentes – um garoto do público - Keke dá à luz ali mesmo, na rede. Aparecem dois bebês "que já nascem artistas" e se deixam rodopiar pelo ar nas mais doidas estripulias, levados pelo cordão que "mamãe" manipula com maestria. São dois carretéis: um maior, que é o mais velho, e um menor, o caçula. Enquanto rodopiam pelo ar, Keke conversa com seus "rebentos", incentivando os pimpolhos em suas aventuras. A cada giro, uma expressão de afeto e orgulho. Nada de medo, só aceitação e encorajamento. Naqueles poucos minutos, a atriz consegue despertar no público a ternura que somente as crianças pequenas são capazes de ver nos objetos inanimados. Dotados agora de vida, os carretéis transformam-se em criancinhas esforçadas, em pleno aprendizado do ofício circense. A palhaça apresenta não apenas um número de destreza com esses "materiais de cena", como se esperaria desse tipo de apresentação. Há ali, também, uma dramaturgia, uma cena teatral, onde três membros da mesma família interagem criando expectativa na platéia, arriscam um movimento mais complexo, erram e tentam novamente, estimulam-se mutuamente, exibindo sua performance. Não é apenas Keke, mas toda a "Família Keke" em cena. A artista se multiplica, a magia do circo se espalha nos rostos sorridentes; crianças e adultos, somos agora todos crianças e desejamos Keke como nossa mãe – protetora, confiante, brincalhona, capaz de rir de nossos pequenos erros e de estimular-nos a tentar de novo, e de novo, de outro jeito.

Depois do Gran finale, em que um movimento mais arriscado do pequenino equilibrista arranca calorosos aplausos da assistência, Keke solicita a uma espectadora que seja sua colaboradora, no número seguinte. Agora, ela organiza o espaço de ação e inspeciona os equipamentos, porque irá realizar a perigosa façanha de subir pelo tecido. Novamente, a artista surpreende pela originalidade que confere à apresentação, fazendo dessa conhecida técnica circense uma performance teatral. Pede à moça que leia, diante de um microfone de pedestal, um roteiro que deverá ser cumprido rigorosamente, orientando a tarefa "de grande perigo e impacto". E assim vai, seguindo cada instrução, não sem antes confundir as pernas ou a posição dos braços; repete lentamente e em voz alta as palavras de sua partner simulando atenção, mas erra sempre em algum detalhe, levando os pequenos espectadores aos berros, na tentativa de alertarem a atrapalhada ginasta. A subida é penosa; e Keke a valoriza ainda mais com a lentidão e os "erros" que a fazem repetir tudo novamente; seu "pânico" aumenta a cada metro galgado. No final, a queda perfeita em giro, com o tecido desenrolando de seu corpo e... tcham tcham! Eis Keke de volta ao chão, sã e salva! Ela passa o chapéu (aliás, o carretel) e ninguém escapa: espectadores, taxistas, transeuntes e casais de namorados que assistiam, do outro lado da praça, à apresentação. Poucas vezes, num espetáculo de rua, o "chapéu" me pareceu tão simbólico; que pagamento estaria à altura de tanta ternura em cena?

Recentemente, mais e mais pesquisadores têm-se dedicado ao estudo da complexa arte do palhaço. Para além das técnicas circenses - inúmeras e imprescindíveis - esta figura milenar transcende com sua magia quaisquer distâncias espaciais e temporais, percorrendo sob incontáveis formas todas as culturas do globo, das mais antigas às contemporâneas. O que explicaria o fascínio que o palhaço exerce sobre nós? Na busca de uma possível resposta, recorro a Carl Gustav Jung, psicanalista e discípulo dissidente de Freud que estudou profundamente as imagens criadas pela psique humana, registradas nas produções artísticas e religiosas de diferentes culturas, em também diferentes lugares e épocas. Com base nessas investigações, Jung formulou a sua teoria do Inconsciente Coletivo, a partir da qual buscou alcançar a lógica interna de fenômenos humanos e sociais até então considerados incompreensíveis: os sonhos, os mitos, a religião, a guerra. Jung e seus seguidores também pesquisaram ciências simbólicas como a Alquimia, o I Ching e as antigas cartas do Tarot. Este último é particularmente interessante para nós, pois permite-nos compreender a figura do palhaço como uma personificação do Arcano (ou carta) Zero - o Louco. No baralho moderno ele sobrevive como o Coringa, carta sem propósito específico, mas que paradoxalmente serve a todas as funções, tal como o número que o rege. Assim como o Louco e o palhaço, o Coringa liga dois mundos: o cotidiano e o da imaginação. Ou, ainda, estabelece uma passagem entre o oceano caótico do Inconsciente Coletivo e a terra firme da consciência. Por isso, sua marca é a ambivalência entre sabedoria e desatino. É o Louco interior quem nos empurra para a vida, pois a sua energia varre tudo o que estiver à frente, como um vento forte carrega as folhas secas pelo ar. Ele gosta do risco e não da segurança; ama a liberdade, deseja viver a vida com espontaneidade; o mundo é a sua casa. O Louco é andarilho porque sabe que o conhecimento está no mundo. Mas, ainda que eternamente errante, confere-se ao Louco um papel especial na ordem social, porque seu impulso é o que move a humanidade.

Na Idade Média, era tarefa do Bobo da corte – uma outra das inúmeras faces do Louco - lembrar ao rei a sua insanidade, a finitude da carne, o pecado da arrogância e do orgulho. E o palhaço de hoje cumpre ainda as mesmas funções, tanto nas "cortes palacianas" atuais, como nas ruas do mundo. Como Saltimbanco, Arlequim, Carlitos, Palhaço da Folia de Reis ou Cazumbá, o arquétipo do Louco continua movendo-se fora do espaço e do tempo, com o espírito habitado pela profecia e pela poesia, inspirando em segredo os artistas de todos os tempos. Acho que vem daí o fascínio do palhaço; talvez precisemos dele, mais do que ele de nós! Como as sábias palavras de Márcio Libar, encontradas numa abertura ao acaso, do seu livro A nobre arte do palhaço: "meu palhaço me cura todos os dias..." Por isso, rogo a todos os Cuti-Cuti, Picolinos, Carequinhas, Grandes e Pequenos Cafés, Marias, Margaritas, Palitas, Kekés Kerubinas e tantos outros palhaços e palhaças, que continuem suas andanças pelo mundo curando as feridas do nosso triste cotidiano, com suas graças demasiadamente humanas e sua Graça imensamente divina.

São Luís, 10 de outubro de 2009