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segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Teses sobre teatro de rua

  

Adailtom Alves Teixeira

A minha prática e pesquisa, ainda que breve, pouco mais de duas décadas e meia, permitiu acumular algum conhecimento acerca da modalidade teatral de rua, de forma a buscar algumas sínteses – a eterna busca humana – ainda que não sejam fechadas, afinal outras experiências podem levar a outras interpretações. Portanto, há, evidentemente, algo de seletivo e subjetivo nas teses ora apresentadas.

1.       

Rua, um substantivo adjetivado pelo teatro. A rua como a conhecemos é um advento da modernidade, remetendo, portanto, ao seu aspecto urbano. No entanto, ainda que seja mais praticado nos centros urbanos, o chamado teatro de rua brasileiro se desloca pelas diversas geografias, tão distintas como é o Brasil: comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas, aldeias, entre outros espaços, não se restringindo a um fenômeno urbano. Assim, o substantivo adjetivado empobrece a experiência prática dessa modalidade teatral, que é muito mais ampla do que pode comportar um adjetivo.

2.       

O teatro de rua é democrático e democratizante. Por estar em um espaço que, em tese, é de todos e de todas, por não impedir o acesso a nenhuma pessoa, é uma manifestação democrática e, por isso mesmo, democratizante, isto é, possibilita que o público tome contato com uma linguagem artística que nem sempre é disponível a todos/as. Democrático por ir ao espaço público aberto, democratizante por não restringir pessoas, seja por idade, faixa etária ou pecuniária. 

3.       

Ir às ruas é colocar-se em risco; é sempre um agón. Agón (gr.) é disputa, debate, mas também reunião, assembleia e o próprio lugar desse encontro. Assim, o teatro que se coloca na rua está em disputa. Disputa entre artistas e público, que podem interferir na obra; disputa para fazer do espaço ocupado um lugar de fruição; e uma assembleia, colocada pela temática apresentada. Perder ou ganhar é sempre o risco que corremos ao ocuparmos os espaços públicos abertos, mas, como afirma o manifesto do Movimento Escambo “Somos – pelo risco que corremos somos – teatro”.

4.       

Acessibilidade e porosidade, marcas do teatro de rua. Não basta estar nas ruas, é preciso ser acessível por outras vias, daí o uso constante de alegorias, cores fortes e demais signos das culturas populares tradicionais. Acessibilidade em sentido amplo. Assim como não se pode ignorar o lugar e as pessoas que ali estão, daí a importância da porosidade, ser como uma esponja que absorve as interferências e volta à sua forma original. Acessibilidade e porosidade resumem-se a uma verdadeira troca de experiências com os lugares e os públicos.

5.       

O passante torna-se espectador. Os espaços públicos abertos, muito raramente são pensados para a fruição, é por isso que a maioria do público não é convocado, mas acidental, isto é, depara-se com a obra à sua frente. Assim, de passante, de transeunte, ele torna-se um fruidor da linguagem teatral.

6.       

O todo é o espetáculo – antes, durante e depois. O espetáculo não é só o espetáculo propriamente dito, mas o antes já é espetáculo. Já há agón, diálogo e debate com o espaço e com as pessoas, que auxiliarão na construção do espaço propício para que ocorra o segundo momento, o espetáculo. Por isso, saber chegar e como chegar aos lugares é muito importante para quem faz teatro de rua, afinal, muitas vezes o lugar pode estar sendo ocupado. Então, ao chegar à praça já é teatro. Assim como o pós, afinal o diálogo continua com o espaço e com as pessoas. Aí forma-se todo um imaginário para quem acompanha do início ao fim, é como a montagem e desmontagem de um circo: tem o espaço, algo é montado e transforma aquele lugar; depois desmonta e, em tese, deveria voltar a ser o que era, mas não para quem presenciou esse processo, pois aquele lugar tem algo mais que seguirá vivo na memória de cada espectador, é um espaço transformado pela subjetividade.

7.       

Três figuras mitológicas sempre presentes: bêbado, cachorro e criança. Todo coletivo ou artista individual tem alguma história com um destes três componentes. O que é importante observar é que, para eles, a relação com a obra ocorre de forma diferenciada, pois há algo que os une em alguma medida: a quebra das regras sociais. A criança porque ainda não internalizou as regras totalmente, o animal por ser irracional e o bêbado por quebrar os limites sociais pela bebida. Por isso mesmo, as três figuras ousam mais que os demais cidadãos e cidadãs.

8.       

Da primeira matriz, a popular. Tenho defendido que no teatro de rua brasileiro é possível identificar três matrizes, isto é, características comuns que fazem com que identifiquemos elementos mais fortes da cultura popular, de um teatro político e de uma arte circense. Claro que essa divisão é didática, o que significa que coletivos e artistas, muitas vezes, misturem esses elementos. Ainda assim, podemos identificá-los.

Em sendo a primeira matriz a popular, a identificamos seja na recriação ou no forte traço presente das manifestações das culturas populares, sobretudo daquilo que Mário de Andrade chamou de danças dramáticas brasileiras, estando patentes aí, como exemplo, o bumba-meu-boi, o cavalo marinho, dentre outras. Assim, é recorrente no teatro de rua brasileiro a recriação, o uso como treinamento, fragmentos das manifestações, entre outros. A própria presença de estandartes na maioria dos coletivos, o uso do cortejo e da roda como espaço cênico, não deixam de ser elos com as culturas populares.

9.       

Da segunda matriz, a política. Esta matriz tem uma longa história, não tanto como a tradição popular, mas remontando, ao menos ao naturalismo, escola que levou o/a trabalhador/a à cena. Logo, trata-se de um teatro classista em que o político é explicitado sem tergiversações. No Brasil há uma história que remonta ao final do século XIX e início do XX com os anarquistas, passando pelos modernistas, ganhando fôlego no Teatro de Arena e se radicalizando no Movimento de Cultura Popular em Pernambuco e nos Centro Populares de Cultura, com experiência em diversas cidades brasileiras, mas que, no entanto, foi interrompida pela ditadura civil-militar, impedindo, inclusive sua radicalização estética. Esta matriz tem cunho agitpropista e épico-dialético.

10.   

Da terceira matriz, a circense. A terceira matriz é mais recente, apesar de vir de uma experiência popular antiquíssima, mas que ficou restrita ao mundo do circo, por assim dizer. Aprender a arte circense no Brasil, até algumas décadas atrás, só era possível para quem nascia no circo ou fugia com ele. É no final da década de 1970 que temos a experiência da primeira escola circense, que possibilitará o acesso a este conhecimento. Dessa experiência nasce a terceira matriz do teatro de rua brasileiro, calcada no virtuosismo (acrobacia, malabares, equilibrismo etc.) e no riso dos/as palhaços/as.

Nota: Há uma modalidade, por assim dizer, que não se constituiu em uma matriz e ainda é muito restrita à academia e ao eixo sul-sudeste, um teatro de cunho mais performativo (e outras tantas nominações que daí advenham). O que faz com que não o coloquemos como uma matriz é o fato de ainda não ter se espraiado pelo Brasil e, principalmente, ter muitos de seus expedientes de cunho popular, embora seus praticantes muitas vezes não o reconheçam. Essa forma teatral também tem história, pois é herdeira das vanguardas europeias e da contracultura, que, como se sabe, beberam em muitas fontes, sobretudo populares, não esqueçamos.

11.   

O riso como tônica. Não é possível saber se pela própria característica do povo brasileiro ou por outras condicionantes, o riso está presente na esmagadora maioria das manifestações teatrais de rua do Brasil, seja na forma farsesca, em tom de deboche, ironia, pelo grotesco etc. Como afirmou Henri Bergson, o riso se destina a inteligência, talvez isso explique essa busca de comunicação com o espectador. Afinal, pelo riso se chega mais suavemente e sem necessariamente criar identificação (característica do drama) com as personagens. Enfim, o riso integra, acolhe o espectador, mas este mantém o seu olhar distanciado.