Pesquisar este blog

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

3a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas

Terceira edição da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo em 2008. Juntamente com a Mostra foi realizado o IV Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua com articuladores de 18 estados.

3a. Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

1000 dias! ou 1001 noites?!

1000 dias! ou 1001 noites?!


Márcio Silveira dos Santos[1]


Dia 16 de Setembro de 2011, marcou a data simbólica de "1000 dias" da Copa Mundial de futebol a ser realizada no Brasil no ano de 2014. O país sede da Copa viveu um dia de euforia, semelhante ao dia da decisão da escolha deste. Muita pompa em todas as cidades sedes de alguma partida. Milhões de reais jorram desde o dia da escolha pela FIFA e hoje é mais um marco político econômico, pois mais algumas torneiras de dinheiro foram abertas sobre a alcunha de ampliação do orçamento para Copa. Ou seja, muito barulho por nada! Sabemos que muitas outras torneiras e jazidas ainda jorrarão nestes mil dias.
Há uma falácia pública por parte dos governos dizendo-se comprometidos com o progresso das cidades, do social, do humano! Todos os dias é o mesmo vetor de interesses do poder hegemônico crescente através de empreiteiras nacionais e estrangeiras. À medida que aumentam os canteiros de obras "de mobilidade social", mais chegam empresas com a dita "mão de obra especializada", ou seja, chamam o país de incompetente/atrasado e trazem milhares de funcionários com salários altíssimos. Pagos por quem? Com que recursos? Com o seu, com o meu, com o dinheiro de todos nós brasileiros, à custa dos altíssimos impostos que pagamos em tudo! Só em Porto Alegre serão investidos mais de R$ 500 milhões de reais, deixando um legado de desenvolvimento, segundo o Prefeito José Fortunati[2].
Em Porto Alegre/RS durante o dia houve muita festa com shows, cavalgada, buzinaço, bandeiras e exposição maciça nas mídias sobre os tais mil dias. Entrevistas com o Prefeito e demais secretários de saúde, mobilidade urbana, saneamento e turismo, mostrando a cidade em obras e o avanço que isso poderá trazer ao povo gaúcho. Já as imagens pelo país destacavam Pelé e a Presidenta Dilma Rousseff, dentro do Mineirão em obras. Ambos conjuntamente suspendiam para os fotógrafos uma camiseta amarela da seleção com a estampa de "1000 dias" nas costas. Muita comemoração e pouca ação. O ritmo das obras é muito lento, essa é a tônica da maioria dos jornalistas mais críticos.
Os governos alegam que o prazo de término das obras em dezembro de 2013 será respeitado, para que se ganhe o selo da Copa. Mas até esta data muitas obras ainda serão erguidas, algumas nem licitações houveram. Muito por fazer, como a ampliação do aeroporto que é fundamental e somente terá seu inicio no segundo semestre de 2012, e as desapropriações de famílias recém iniciaram em algumas localidades, eis uma relação muito delicada.
No dia anterior aos festejos caiu o Ministro do Turismo, por que será? E justamente num momento em que o turismo vai a mil (ou seria milhões?!) onde segundo dizem os noticiários, por exemplo, já se encontram lotadas as Pousadas do Pantanal durante a copa, com reservas de turistas de outros países! Será que o problema é porque... talvez... não há político de ficha limpa no alto escalão dos governos? Sem culpa no cartório? Como diria um amigo meu lá do nordeste: Isso tudo é uma maracutáia sem fim, descarada e exposta ao povo e o povo tem que reagir imediatamente!
O novo ministro (que como o seu antecessor é afilhado político da família Sarney!) já assumiu dizendo uma pérola: Precisamos colocar essa nova massa de brasileiros nos "ganhos" do turismo nacional! Ou seja, "ganhos=lucros", "cifras", "massa de manobra", sua frase lascou pertinho do vocabulário do capitalismo selvagem!!!! Sim "capitalismo" meu caro leitor mais atento e prolixo nas palavras. Você pode até pensar que a palavra certa talvez fosse "capitalismo tardio" ou já é "pós-neo-capitalismo", etc. Não importa a nomenclatura, o que importa é que o Seu Zé da Folha, artista de rua de ficha tão limpa que daria inveja a muitos políticos, tá percebendo o que acontece no seu entorno e não está satisfeito!
Seu Zé pergunta: - E a cultura? Como está e será com a Cultura? (silêncio...) É preciso balançar a cabeça num movimento de negativo enquanto se ganha tempo para lembrar algo bom, e o que vem a mente é apenas metáfora. Eis o nevoeiro, mais denso que aquele em São Paulo que gerou um acidente gigantesco de carros. Estamos às cegas, não vemos nada no front! Pra pegar um exemplo mais nacional e que diz respeito ao Seu Zé da Folha também, a Fundação nacional de Arte/MINC ficou com a responsabilidade da implantação das Praças dos Esportes e da Cultura (PECs) do PAC 2 - Programa de Aceleração do Crescimento 2.

O programa prevê a implantação de 800 Praças dos Esportes e da Cultura (PECs) em municípios de todas as regiões brasileiras, até o final de 2014. Estes locais serão espaços destinados a promover a cidadania em áreas de alta vulnerabilidade social, por meio da realização de programas e ações culturais, práticas desportivas e de lazer, oficinas de formação e qualificação profissional, serviços de assistência social, de prevenção à violência e de inclusão digital. Entre as ações que serão desenvolvidas nas Praças, o Ministério da Cultura irá implantar Telecentros, Bibliotecas, Oficinas Culturais, Cineteatros e Auditórios para a realização de espetáculos artísticos. O programa contempla três modelos arquitetônicos para as praças, com base na dimensão dos terrenos, que poderão ser de 700m², 3.000m² e 7.000m². Servirão apenas como referência para as prefeituras, podendo ou não ser adotados. O principal compromisso que as administrações locais terão com o programa é a implantação das políticas públicas propostas[3].

No entanto, numa consulta que fiz sobre as ideias do Programa não constatei nenhum parte que contemplasse as artes cênicas na rua, muito menos espaços amplos com estrutura para lonas de circo de médios e grandes portes. Na imagem que endossava o programa via-se um grupo de capoeiristas jogando num espaço gramado que na escala proporcional não permitiria que o grupo tivesse realmente espaço suficiente para sua roda. Ou seja, mais um engodo. Não houve diálogo com os artistas de rua e se houve foi pífio. O ator/palhaço Richard Riguetti, do Grupo Off-Sina/RJ, constatou um equívoco sem tamanho com o fator histórico da arte circense na sua cidade, disse ele por email:

Oi Márcio, é isso mesmo. A maioria das praças onde serão implantadas as Praças do PAC (PECs) são terrenos onde os circenses montavam as suas lonas. Aqui no Rio de Janeiro estamos tendo problemas com o Pátio Benjamim de Oliveira (conhecida Praça 11 ou Terreirão do Samba). A reforma já começou e nenhum circense foi consultado. Encaminhei o caso a Frente Parlamentar de Democratização da Cultura da Câmara dos Vereadores. Através dessa mobilização recebemos a planta baixa do novo projeto e pasmos constatamos a presença de 5 árvores no meio do terreno, ou seja, ninguém monta mais circo lá.

Tornando a situação mais não-dialógica ainda, o Governo Federal está promovendo a partir desta semana até meados de novembro, nove seminários em nove capitais do país, com o objetivo de discutir com gestores públicos a mobilização social das comunidades onde as praças serão implantadas. Uma capacitação para os envolvidos nas áreas de construção das praças, de assistência social e de cultura e lazer. Ou seja, o diálogo é somente com funcionários públicos, não com a sociedade civil como um todo. Urge que os movimentos e redes sociais se articulem de outra forma para uma mudança de visão destes funcionários com a forma de estrutura destas praças do PAC2, ainda é possível participar e na medida do possível contextualizar as suas realidades.
No país a vigilância sobre o artista de rua é crescente. Proibições diante de solicitações de atividade nas praças, parques e ruas se tornaram situações kafkanianas. Em São Paulo os artistas de rua conseguiram reverter um pouco à situação, só não sabemos até quando. Já no Rio de Janeiro a incomunicabilidade tem facilitado a permanência do choque de ordem.
Se "a rua é o advento da modernidade[4]", inventada para uma forma de policiamento de Napoleão III, onde poderia visualizar melhor o núcleo urbano através de grandes avenidas e largas calçadas, e desta transformação a vida privada passa a co-existir com a vida pública, hoje com o cerceamento dos artistas de rua podemos supor que o privado dominou a via pública. Concretizando um caminho de choque de ordem em prol da boa imagem "clean" e bons costumes durante a Copa. O mais incrível é que essas des-medidas dos governos colidem com o Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998.

Parágrafo IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Parágrafo X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.[5]

A transformação das cidades em prol da Copa das confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e depois às Olimpíadas (2016) não pode relegar as necessidades da sociedade que nela habita. Há que se ter um bom conhecimento das várias dimensões para um bom planejamento urbano. Por isso deve haver consulta pública e/ou diálogos constantes com os movimentos sociais de base.

O êxito de qualquer ação prática sobre um determinado objeto concreto depende do conhecimento que se tem deste objeto. No caso do planejamento urbano entendido com uma forma de ação sobre a cidade, observa-se muitas vezes a ineficácia do planejamento motivada pelo conhecimento limitado que se tem sobre a cidade, objeto complexo, multidisciplinar e ainda carente de um corpo teórico próprio. Os objetivos do planejamento urbano dependem em grande parte do conhecimento de todas as dimensões do urbano[6]. (Lima, 2007: 14)

Nosso ícone do teatro de rua brasileiro, Amir Haddad, tem há muito levantado a bandeira do respeito e a dignidade merecida do artista de rua e suas práticas. Amir em riste tece um soberbo pensamento de que se artes públicas (como estátuas, marcos, templos, prédios históricos, etc) possuem privilégios econômicos e estrutura para sua existência e manutenção, assim o artista de rua que tem sua arte como sendo também arte pública deva merecer a mesma atenção, os mesmos benefícios, o mesmo respaldo, respeito e liberdade de expressão. E para que isso de fato se concretize é necessária uma nova ideia de luta: Políticas Públicas para Arte Pública!

Acho que a gente deveria trabalhar por um conceito de artes públicas, dar este nome a nossa atividade. É bom porque pode conseguir políticas interessantes e a gente não (precisaria) vir sempre a reboque do pensamento da cultura oficial. Nós somos de outro setor, outro departamento e estamos andando para outra direção completamente diferente da que avança aquela. Se a gente consegue fazer passar uma idéia desta, avança muito. (...)
 Se isto der certo, eu já posso falar de arte pública, em cobrar do prefeito, lançar esta idéia. Falar que o Brasil tinha que sair na frente - nós temos que sair na frente mesmo. Não temos que ir à reboque de nada. Que nós podemos propor políticas públicas para as artes públicas. Isto é muito bom. O Brasil vai fazer a Copa do Mundo. O Brasil vai fazer as olimpíadas. É hora de se pensar nas artes públicas! Porque, senão, o que é que nós vamos oferecer para as pessoas? Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Luan Santana, Ivete Sangalo... o tempo todo! (...)
Eu acho que políticas públicas para as Artes Públicas é uma coisa que ninguém pediu! E nos organizarmos em movimento pelas artes públicas num país que já é muito privilegiado por políticas públicas para as Artes Privadas![7]


O próprio Amir, junto ao Grupo Tá na Rua, já está organizando o I Seminário de Artes Públicas, a ser realizado no dia 31 de Outubro de 2011 às 16h, nos Arcos da Lapa/RJ e seguirá as atividades na sede do grupo. Haverá a presença de artistas de rua de várias regiões do país e de alguns parlamentares que vem encaminhando projetos de políticas culturais para as artes públicas na cidade do Rio de Janeiro. Parte do convite tem mais pensamentos de Amir:

Este projeto de lei traz em si o reconhecimento que existe  um sentimento público de produção artística, que é anterior ao conceito de arte privada conforme nós a conhecemos, e que novamente se manifesta. 
A este movimento podemos chamar de "Arte Pública", um conceito ainda muito novo e ao mesmo tempo muito antigo. Uma arte que se faz e se produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a esperança. Um direito de todo e qualquer cidadão.

A contagem é regressiva para os dias nebulosos para a cultura popular e de rua. Se não houver ações mais enérgicas teremos dias de muita revolta durante a Copa. Pois como disse o Vereador João Bosco Vaz, Secretário da Secretaria Extraordinária da Copa 2014 (Secopa) no final do programa jornalístico da RBS, afiliada da Rede Globo no RS: "Copa do Mundo é business, é negócio!". Então é esse o legado de desenvolvimento Senhor Prefeito e Senhora Presidenta?
Numa possível guinada urgente na situação da cultura e outras áreas no Brasil neste momento, o ator/diretor Adailton Alves, Grupo Buraco D'Oráculo/SP, refletiu por email sobre o contraste das lutas dos países latino americanos e a situação no Brasil:
 
Com a proximidade da copa, tudo só tende a piorar para os debaixo e nós somos os debaixo. Mas para além dos artistas existem muitos outros embaixo. É preciso juntar forças. Vamos aprender com o Chile. Em todos os lugares a coisa tá pegando fogo e só no Brasil parece que não acontece. Não é que não acontece. Explicando melhor, pois há resistências em todos os lugares, em várias áreas: moradias, atingidos por barragens etc. Mas temos dificuldades em juntar todos os lascados. Não sei se são as distâncias desse Brasil continental ou a despolitização que leva a defender "primeiro o meu". Só é possível ter uma certeza: a coisa vai piorar. E logo, logo começa a quebradeira nos países de primeiro mundo e alguém tem que pagar a conta.

As lutas continuam, seja dos artistas de rua da Colômbia que foram coibidos pelas agulhas negras de realizar seus trabalhos, ou dos artistas do Amapá que acampam na frente da Assembléia Legislativa na capital Macapá. Mas ainda sim é preciso uma união coletiva dos movimentos e uma reação como acontece no Chile. Por outro lado boa parte da população só pensa no futebol, em ter uma delegação representante de algum país em suas terras. Outra parte está de olhos arregalados e bolsos abertíssimos, estalando os dedos prontos para contabilizar os reais, dólares, euros, pesos, etc, que virão junto com os milhares de turistas estrangeiros. Para estes o negócio é alugar o Brasil!
Mas há reações, tramita na Câmara dos deputados a analise do Projeto de Lei 1096/11 do Deputado Vicente Cândido (PT/SP) que equipara, para fins legais, a arte de rua a todas as outras modalidades artísticas e proíbe autoridades federais, estaduais e municipais de estabelecer qualquer tipo de cerceamento da atividade dos artistas que trabalham em cruzamentos ou semáforos.

Segundo o projeto, o termo cultura abrange as manifestações artísticas em geral, realizadas em espaço fechado ou aberto, privado ou público, em veículo aberto ou nas ruas e praças públicas, com ingresso pago, gratuito ou com remuneração espontânea ao artista a título de doação após ou durante a encenação. Integram a categoria as artes cênicas, circenses, marciais e plásticas, as apresentações musicais, a dança, as lutas de exibição, a poesia e as manifestações de artistas de rua, que não poderão ser censuradas pelas autoridades públicas. O projeto assegura ainda aos artistas o direito de reunião pacífica, a liberdade de associação para fins lícitos e a constituição de cooperativas, independentemente de autorização e vedada a interferência estatal no seu funcionamento.[8]

Enfim, devemos ampliar o debate e propor suportes as leis e ações em prol de profícuas políticas públicas para as artes públicas! Não podemos nos contentar com uma ou outra concessão, alguns editais "apagar incêndio" e diálogos pueris durante esses "1000 dias". Corremos o risco de serem histórias de "1001 noites"[9] para não percebermos o que está por trás destas intenções mais superficiais dos representantes dos órgãos públicos e privados, que desejam somente o tal "business"!
Então vamos esperar o conto do vigário?
A luta é permanente.


[1] É ator, diretor, dramaturgo e professor. Mestre em Artes Cênicas PPGAC/UFRGS. Integrante do Grupo Teatral Manjericão. Articulador da RBTR - Rede Brasileira de Teatro de Rua.
[2]http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=145422&COPA+DE+2014+DEIXARA+LEGADO+DE+DESENVOLVIMENTO
[4] Teatro de rua e sua importância na metrópole. Andreazza, João Carlos. P.47. In Teatro de rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio. Turle, Licko. Trindade, Jussara. E-papers: RJ. 2010.
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm
[6] Espaço e Cidade - Conceitos e leituras. Org. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. Editora: 7 letras: RJ. 2ª Ed 2007.
[7] Falas de Amir Haddad, diretor do Grupo Tá Na Rua/RJ, no Seminário Nacional de Dramaturgia para o Teatro de Rua, promovido pelo Núcleo Pavanelli, em 18 de junho de 2011 no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, com transmissão pela internet. Trecho transcrito por Licko Turle.
[9] Com o perdão da analogia, pois as histórias do livro "As Mil e uma noites" são ótimas. http://pt.wikipedia.org/wiki/As_Mil_e_uma_Noites

Dramaturgia e teatro de rua

A PLURALIDADE DA DRAMATURGIA PARA O TEATRO DE RUA

Márcio Silveira dos Santos[1]


A Dramaturgia pra mim sempre foi uma solução!
Calixto de Inhamuns

No mês de Junho de 2011 ocorreu em São Paulo o 1º Seminário Nacional de Dramaturgia para o Teatro de Rua, uma realização do Núcleo Pavanelli – teatro de rua e circo – Centro de Pesquisa para o teatro de rua Rubens Brito. Foram dias intensos na UNESP – Barra Funda. O Seminário tinha como objetivo norteador colocar em discussão a pluralidade das formas dramatúrgicas utilizadas nas praças e ruas do Brasil.
Tratando-se de caráter nacional foram convidados artistas-fazedores desta dramaturgia, como Amir Haddad (Grupo Tá na Rua/RJ), Júnio Santos (Grupo Cervantes do Brasil e Movimento Escambo/CE e RN), César Vieira (TUOV/SP), Márcio Silveira (Grupo Teatral Manjericão/RS), Juliano Espinhos (Grupo Vivarte/AC), Hélio Fróes (Grupo Nu Escuro/GO), Luciene Borges e Leonardo Lessa (Galpão Cine-Horto/MG), Alexandre Krug (Cia São Jorge de Variedades/SP), Marcos e Simone Pavanelli, e os integrantes do Núcleo de Dramaturgia do CPTR Rubens Brito: Áurea Karpor, Luiz Checchia e Thomas Holesgrove. Diante deste quadro de convidados tivemos notadamente a participação de representantes de todas as regiões do Brasil.
O evento de quase um mês teve início no dia 03/06 com o Professor Alexandre Mate (IA/UNESP) debruçando-se sobre o tema "O Teatro de Rua e Suas implicações sociais e políticas", já no dia 08/06, os Professores Mário Bolognesi e Fernando Neves discorrendo sobre o tema "Dramaturgia do Circo – as entradas de palhaço e o circo-teatro". No dia 11/06 houve um grande encontro com mais de vinte grupos discutindo sobre "Processo Colaborativo". Destes encontros não participei, mas faço o registro para demonstrar o quanto os realizadores pensaram numa maior abrangência possível do tema em questão. Mais detalhes podem ser obtidos no site: www.nucleopavanelli.com.br
Nos dias 16, 17, e 18 de Junho tivemos então a parte dos dramaturgos convidados, num debate amplo e aberto ao público, tudo sempre conduzido pelo multi-dramaturgo Calixto de Inhamuns. Explico o multi. Dentre todos os presentes Calixto era o que mais escreveu para uma diversidade muito grande de modalidades que possuem a escrita de diálogos em sua essência, como: teatro empresa, radionovela, teatro de rua, séries e novelas televisivas, cinema, intervenções, eventos culturais, etc, mas nos últimos anos tem se dedicado com sucesso na exaustiva dramaturgia colaborativa com grupos de São Paulo além de coordenar o site www.encontrosdedramaturgia.com.br onde disponibiliza textos de inúmeros dramaturgos. Logo nos primeiros instantes nosso mediador procura deixar mais a vontade o elenco de dramaturgos, pediu que o clima do encontro fosse ao estilo conversa de boteco. A partir de então não paramos mais a conversa que se estendia nos momentos de comer, beber e principalmente na Kombi do Núcleo Pavanelli, dali muitas idéias e propostas surgiram e ainda ecoarão.
Muitas questões surgiram como provocações. O que é dramaturgia hoje? Qual a relação da dramaturgia com o público? Existe e qual seria a dramaturgia para teatro de rua? Ou seria dramaturgia para as artes cênicas na rua? Ou para intervenções no espaço público enquanto arte pública. Optar por uma dramaturgia colaborativa ou de gabinete? Publicar ou não publicar? Classificar ou não classificar, eis a questão inicial que depois se tornou a menor das questões. Temos uma extensa pluralidade de dramaturgias em função justamente da grande diversidade de caminhos de uma escrita voltada para as inquietações cênicas de hoje.

Dramaturgia e teoria

Não foi prioridade discutir a Poética de Aristóteles, nem o Classicismo ou a dramaturgia Pós-Brechtiana de Heiner Müller ou o Pós-dramático de Hans-Thies Lehmann na escrita dramática atual, pois o que interessava principalmente era a socialização de processos de cada dramaturgo com seus pares. Suas dificuldades, soluções, caminhos, contextos, ideologias, políticas, formas, conteúdos e funções do que buscavam e conseguiam realizar. Embora tudo fosse permeado pelos conceitos ligados a dramaturgia clássica, pela história da dramaturgia universal e seus realizadores e teóricos. Algumas vezes é preciso haver parâmetros, caso contrário ficasse num mar de ideias e achismos que não molha deserto algum. E foi a partir do termo "o novo já nasce velho" proferido por Amir que surgiram as primeiras polêmicas necessárias à acalorada discussão.
Ainda é possível perceber o grau de apego na dramaturgia clássica que por longos séculos preconizou a aplicação das unidades de ação, tempo e lugar. Como romper com essa "doutrina unitária" [2]para se chegar à novidade? Temos clareza desta novidade? Creio que não há hoje uma forma de abordagem dramatúrgica fundamentada, que não esteja próxima aos padrões da dramaturgia clássica ou mesmo ao drama burguês[3], que em seu nome já designa um aspecto social. Não que precise haver tal fundamentação, mas era parte de nossa inquietação enquanto dramaturgos reunidos refletir sobre possíveis novas dramaturgias e sua forma de emancipação da anterior.
Outrora na criação dramatúrgica era levada ao pé da letra a aplicação dos elementos de unidade e junto, também, o desenvolvimento da encenação com inicio, meio e fim. Tudo para conseguir na cena

... esquemas de intensidades que crescem até um clímax para depois baixar, formas ascendentes de intensificação gradativa de todos os elementos (velocidade, andamento, ritmo de luz, cor) e outras, descendentes, nas quais elas gradativamente se atenuam; ou ainda outras circulares, nas quais o final retorna a configuração inicial.[4]

            Por mais que a dramaturgia atual possua em sua estrutura estes processos de desenvolvimento do enredo, com os nós dramáticos que tecem a trama de conflitos dos personagens, que no seu desenvolvimento, com um fio condutor, oscilam intensidades até o ápice da encenação, na busca do desfecho catártico. Ainda sim ela rompe com a unidade de tempo e essa "digressão" vai ser fundamental para entendermos nossa época, nossa dramaturgia para o teatro de rua.
            Desde o teatro épico, desenvolvido por Brecht, que a dramaturgia moderna tem um contraponto ao teatro dramático de Aristóteles. Pois os saltos temporais são parte do teatro épico, que procede de modo descontinuo, de acordo com o homem do seu tempo. "Enquanto Brecht privilegia o salto tanto no nível lógico quanto no temporal, em Aristóteles a unidade de tempo é crucialmente importante para assegurar a unidade de ação com uma totalidade coerente."[5]. No entanto mesmo com saltos temporais a obra de Brecht prima por uma escrita de acordo com seu tempo, pois versa sobre as necessidades humanas e seus relacionamentos. A vida do ser humano é a matéria prima da dramaturgia e falar do homem de hoje é manter viva e necessária a dramaturgia como veiculo de reflexão a cerca do seu tempo[6].
            Mas se pensarmos do ponto de vista do entendimento do público sobre a obra de arte constituída de uma dramaturgia cuja unidade de tempo seja "sem pé nem cabeça", onde não há coerência com início, meio e fim, o homem do nosso tempo compreenderá?
Não tenho a resposta, mas suponho que se a dramaturgia para o teatro de rua, por ter muita proximidade com o teatro épico, tiver em seu bojo estrutural: o homem como objeto de pesquisa[7], a comunicação de conhecimento, reflexão sobre as transformações no mundo, que o ser social determina o pensamento de uma época e que promove no espectador uma energia que exige decisões diante dos fatos, ela encontrará no povo movediço das ruas quem a assimile.

Dramaturgia e publicação

Certa altura do seminário houve a celeuma sobre publicar ou não uma obra dramatúrgica. Alguns foram contra, acreditam que texto teatral não deva ser considerado literatura e que não seria vendável. No entanto a grande maioria acredita não só na importância de socializar a produção criativa de um dramaturgo como também a publicação, ou outra forma de suporte, se tornará um registro histórico, a memória e o panorama de uma época.
Hoje sabemos muito sobre certos períodos da história do teatro e da humanidade não só através das outras artes, como a pintura e escultura, mas sobre tudo através dos textos teatrais. É possível esmiuçar toda uma sociedade ou um nicho social através de um texto grego, por exemplo, em Orestes, de Eurípedes, o autor expõe aspectos "da saga dos Átridas e propõe uma revisão dos heróis e uma reflexão sobre a condição humana, uma iluminação dos desvãos mais obscuros da interioridade dos homens e uma indagação sobre os atos dos deuses.[8]"
Portanto é importantíssimo que haja publicações. Até dez anos atrás havia uma redução considerável de publicações de novos autores por parte das grandes editoras, no entanto a internet veio como um meio forte de divulgação das obras. Propiciou através de blogs, sites, etc, a criação de núcleos, oficinas, concursos, editais e publicações tanto no formato de e-book como de livros reais, onde os autores pagam a publicação por cotas através de um sistema cooperativado. Feiras, encontros e seminários como este são fundamentais para a divulgação e troca de experiências.

Dramaturgia colaborativa

Entre boa parte dos seminaristas estava claro que até os anos 80 do século XX tínhamos a dramaturgia de gabinete como a mais praticada. Embora houvesse dramaturgos trabalhando colaborativamente, seja através de uma criação mais coletiva (anos 70) ou do dramaturgista (o dramaturg, anos 90) foi somente nos anos 2000 (século XXI) que o termo dramaturgia colaborativa ganhou destaque nos trabalhos de grupos e coletivos teatrais.

Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo. Dessa, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como "braço-escritor" do diretor, aliando a criação dos intérpretes, os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser enunciado na peça.[9]

Talvez os dramaturgos de maior destaque em dramaturgia colaborativa tenham sido Luis Alberto de Abreu e seu trabalho com o Teatro da Vertigem/SP e Carlos Antônio Leite Brandão com o Grupo Galpão/MG. Para citar um deles, Brandão foi o responsável pela dramaturgia de "Romeu e Julieta" montado pelo Galpão em 1992 com direção de Gabriel Villela. Diante da difícil tarefa o dramaturgo procurou tratar

... as palavras e as frases não somente como fatos lingüísticos, mas também como entidades lógicas, psicológicas e estéticas, para alcançar objetivos emocionais e de comunicação. Suas inovações lingüísticas, como as de Shakespeare e as de Rosa, são estrategicamente adaptadas às necessidades poéticas do momento, sem prejudicar a compreensão da platéia.[10]

Os relatos dos seminaristas versavam nesta tônica, do árduo trabalho no processo colaborativo. Muitos também partiram de um texto já existente, seja dramaturgia, romance, conto, poesia, cordel, canções ou histórias da oralidade sobre futebol, religião e cultura popular. Destaco alguns vetores de maior interesse, mas não são únicos destes dramaturgos, pois sempre precisamos beber em muitas fontes, a exemplo dos cômicos dell'arte.
No caso do Amir, ele gosta do trabalho a partir da vida dos "santos" de muitas religiões e do carnaval. O César Vieira da temática do futebol e das resistências populares. O Junio parte do cordel e do cancioneiro regional. Juliano das histórias e cânticos da floresta. O Alexandre com textos clássicos hibridizados com histórias populares através de um brain storm, mais processual na pesquisa do espaço. Hélio disse que bebem em muitas interferências seja de textos prontos a personagens típicos das cidades. Leonardo e Luciene disseram que o Projeto do Oficinão e Cadernos de dramaturgia do Cine Horto têm a experimentação e a diversidade como pontos marcantes, indo de Shakespeare a Tom Zé. Simone partiu de um tema de interesse do grupo e através de um roteiro foram improvisando e aprofundando a pesquisa.
Processo semelhante ao Manjericão que por quinze meses, num dos processos criativos mais longos do grupo, pude trabalhar colaborativamente com os atores a partir de um roteiro pré-definido. Como um esqueleto a ser preenchido com músculos, carne, sangue e tudo mais, até ganhar corpo e partir para os ensaios abertos na rua. Sempre atentos a porosidade necessária no texto/encenação para a participação do público.
Alguns pontos citados, em comum: o ator precisa ter uma noção de dramaturgia para colaborar melhor; muitos atores apresentam dificuldade até para ler um diálogo; há sempre certo rompimento com o que se está fazendo; a explosão do teatro na rua exige uma dramaturgia mais explosiva calcada nos diálogos curtos; do ponto de vista do registro escrito, as rubricas ficam extensas para traduzir certas ações sem fala; há uma dramaturgia do espectador; é necessário dialogar com a sociedade; dificuldades em definir qual o melhor final; entre outras.

Dramaturgia e arte pública

            Um dos seminaristas mais inquietos e prolixos era sem dúvida Amir Haddad, com toda razão. São mais de 30 anos dedicados ao Teatro de rua e desde que começou enfrenta mil adversidades para realizar os seus anseios no espaço aberto. O reconhecimento não basta, Amir quer de volta a dignidade surrupiada há séculos do teatro de rua. Com o punho em riste não cansa de repetir: Teatro de rua é Arte Pública, queremos Políticas Públicas para a Arte Pública! Assunto que não foge ao tema central do Seminário, pelo contrário, a dramaturgia é parte condicional do discurso levado às ruas pelos espetáculos.
            É impossível transpor uma síntese do que Amir comunicou, pois só a transcrição de uma fala resultou em oito laudas!! Amir fala com fundamento de vida, de vivência, de experiência própria na carne em tudo que diz. Se deixasse só o homem falar, a cada turno teríamos um livro com base na sua oralidade. Seria um ótimo projeto de registro das memórias da vida deste homem de teatro de rua. No inicio relata que foi muito complicado sair para a rua. Pois seu trabalho com o modo de produção é outro. Trabalha com o modo de produção do afeto, o que é bem diferente da produção econômica. Então como fez isso?

O Tá Na Rua, meu grupo, já tem 30 anos. É bastante tempo. O que eu aprendi neste tempo, é (sobre) o caráter público da nossa atividade. O que eu fui aprendendo cada vez mais, quanto mais eu me afastava da forma oficial de teatro que me era oferecida. Quanto mais eu buscava uma maneira minha, pessoal, de dar uma resposta a esta questão do teatro, mais eu ia percebendo o caráter público do que a gente faz.[11]

Começou a trabalhar com grupo, depois surge à saída para a rua. Pois num trabalho coletivo se produz afeto e quando se passa a ter noção de como se dá essa produção tudo muda nas relações do coletivo. Assim passa-se a ter a firmeza necessária para ir à luta, para ir à rua.

Isto é uma coisa que tem ocupado todas as minhas reflexões nestes últimos tempos da minha vida. Que o teatro... o que eu faço... é arte pública! Na verdade é uma arte, porque todas as artes são públicas. A possibilidade de se expressar livremente é inerente a qualquer ser humano, ao cidadão. E é uma necessidade do ser humano. E quando nós queremos trabalhar com as nossas forças mais criativas - porque faz parte da nossa natureza - nós estamos querendo oferecer alguma coisa a alguém.

Há uma necessidade latente de revolta, de um levante contra a barbárie mercadológica que se mantêm no poder e sua política tão negligente com a sobrevivência do artista de rua, do artista popular que faz de fato a cultura popular resistir.

Eu não posso esquartejar o meu afeto, para vender ele - de uma maneira ou de outra - para alguém que quiser comprar. O que é pior ainda. Para quem tiver dinheiro para comprar. Para você, eu não vendo, porque não paga. Para você, eu vendo porque você paga. Então, eu pego a minha alma, faço uma graça prá ele, porque ele, paga e esse, não. É a minha alma. É tudo de melhor que tem dentro de mim. É o melhor que todos os seres humanos têm dentro de si. Como é que eu posso pegar isto, que é a melhor qualidade humana, que é a criação e a fertilidade, e transformar isto num produto que eu ponho à venda? É possível! A sociedade burguesa faz isto. Nós vivemos neste mundo mercantilizado. Isto é vendido em todos os lugares. É tão forte que nós não temos nem mesmo um conceito de arte pública. Eu falo isto porque aqui é um encontro de teatro de rua, trabalhamos com esta doação.

Diante da constante pressão, via choque de ordem, principalmente no Rio de Janeiro, os governos já ensaiam a varredura de humanos das vias públicas para a vinda dos grandes eventos como a Copa e as Olimpíadas. Um atrativo turístico que gera bilhões aos governos e empresariados. E na visão destes, os artistas de rua estão entre os que prejudicam a manutenção da ordem e dos bons costumes na sociedade.

Tudo caminha para a privatização, tudo caminha para um certo tipo de controle. Tudo caminha para um certo tipo de apoio. Tudo caminha para um certo tipo de edital. As políticas públicas todas são feitas para as Artes Privadas. E nós não temos políticas públicas para as Artes Públicas! Nós não temos sequer um conceito de Arte Pública pensado ou desenvolvido. Pensar em políticas públicas de ocupação dos espaços públicos, de abertura e limpeza das praças, ver gente nas ruas. Pensar políticas públicas para as Artes Públicas, significa pensar o mundo de uma outra maneira, no momento em que se pensa o mundo com a idéia de limpar ao máximo a cidade, não deixar ninguém ir para as praças e atrapalhar... e botar polícia. A praça é da polícia.

Amir parte do principio de que o teatro de rua ou as artes da rua são artes públicas, e merecem o mesmo tratamento que as artes públicas que muitas vezes são na verdade artes privadas, como os monumentos, prédios tombados pelo patrimônio histórico, que recebem verba pública para manutenção, melhoramentos, transferências de locais, exposições, etc.

Mas, se a gente tem um conceito de Arte Pública, uma idéia de como estimular as políticas públicas para as Artes Públicas, provavelmente seremos obrigados a pensar a cidade como ela é! No movimento de teatro de rua já se faz muito isto. As cidades começam agora a se dar conta que elas precisam se humanizar. No momento a coisa que é essencial na minha cabeça agora é essa: políticas públicas para as Artes públicas! Como é que a gente pode fazer isto? Como é que a gente reivindica isto?

O caminho é a organização dos movimentos para que tenhamos de fato políticas públicas para as artes públicas.

Que nós podemos propor políticas públicas para as artes públicas. Isto é muito bom. O Brasil vai fazer a Copa do Mundo. O Brasil vai fazer as olimpíadas. É hora de se pensar nas artes públicas! Porque, senão, o que é que nós vamos oferecer para as pessoas? (...) Acho que a gente tem que começar a pensar nisto, talvez juntar mais gente e discutir. Colocar o conceito de arte pública. E nos organizarmos em movimento pelas artes públicas num país que já é muito privilegiado por políticas públicas para as Artes Privadas! Obrigado.

Fecho aqui minha breve reflexão, socialização, contribuição, por enquanto, a este Seminário que já faz parte do calendário nacional. Vida longa! Viva as artes públicas de rua!




[1] Dramaturgo, Ator, Professor e Diretor de teatro. Integrante do Grupo Teatral Manjericão, de Porto Alegre/RS. Mestre em Artes Cênicas pala UFRGS. Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua e sócio colaborador da ABRACE – GT Artes Cênicas na Rua.
[2] Roubine, J.J. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003. p. 41.
[3] Szondi, Peter. Teoria do drama burguês. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 27.
[4]Esslin, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editor. 1978. P. 54.
[5]Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.324.
[6] Bentley, Eric. O Dramaturgo como pensador – um estudo da dramaturgia nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p.41-42.
[7]Brecht, Bertold. In. Pallottini, Renata. São Paulo: Brasiliense, 1983.  p. 69.
[8]Bender, Ivo. Ação e transgressão: três ensaios sobre tragédias de Sófocles, Eurípedes e Racine. Porto Alegre: IA/UFRGS, 1991. p. 65.
[9]Nicolete, Adélia. Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento. In. Subtexto – Revista de teatro do Galpão Cine Horto, nº7, Minas Gerais: CPMT, 2010. p. 33-34.
[10]Alves, Junia. Noe, Marcia. Expressões mineiras no teatro: o Romeu e Julieta do Grupo Galpão. In. O Palco e a rua : a trajetória do teatro do Grupo Galpão. Minas Gerais: PUC Minas, 2006. p.91-92.
[11]A partir daqui são falas de Amir Haddad, diretor do Grupo Tá Na Rua/RJ, no Seminário Nacional de Dramaturgia para o Teatro de Rua, promovido pelo Núcleo Pavanelli, em 18 de junho de 2011 no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, com transmissão pela internet. Trecho transcrito por Licko Turle.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Texto de Jussara Trindade sobre o espetáculo Ser TÃO Ser

SER TÃO SER: UMA MELODIA, MUITAS HISTÓRIAS
Por Jussara Trindade[1]
Calçadão de Canoas, pleno calor de janeiro. O Buraco d'Oráculo, trupe paulistana, se prepara para a apresentação de Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, espetáculo que integra a programação da III Mostra de Teatro de Rua da RBTR-RS. Pessoas passam, arrastando sombras pelo calçamento quadriculado, vultos de um sol já cansado do dia quente de trabalho. Alguns diminuem o passo e outros até param momentaneamente perante um estranho aglomerado de objetos aparentemente abandonados sob um poste de luz: um banquinho plástico, dobrável, uma caixa aberta, um frasco de álcool e uma caixa maior, de madeira, que chama a atenção porque do lado de dentro da tampa, aberta como um velho guarda-roupa, fita-nos a figura conhecida de um Roberto Carlos ainda jovem e cabeludo.
Apoiada sobre essa caixa, uma bandeja de madeira com várias canequinhas de café, de ágata branca, e um tecido rendado displicente, jogado ao lado. No fundo da caixa há ainda outra fotografia do Rei usando um brinco de pena de ave, capa de um famoso long-play que nos lembra o galã que ele foi um dia, habitando as portas de guarda-roupas, penteadeiras e a imaginação apaixonada de tantas mulheres por este Brasil afora... é quase um altar. Assentados sobre o assoalho da caixa, vários pequenos objetos, testemunhos de uma vida comum; tecidos embolados, papéis... ao lado, no chão, repousa um velho bule de café.
Minha lente de observadora flagra o encontro do grupo de atores, que parecem estar combinando algo sobre a apresentação. Eles percebem a minha intrusão. Disfarço, continuo a registrar o entorno, as pessoas, as portas já fechadas de algumas lojas. De repente, os atores se afastam, abrindo a roda e batendo palmas. É o início do espetáculo.  
Lu Coelho, atriz da primeira formação do grupo, vem em minha direção com o seu figurino regional: saia rodada, colete de cores delicadas sobre a camisa clara, lenço florido na cabeça e o detalhe sutil de um pano-de-prato no ombro. O andar, já meio arrastado, revela que agora Lu é uma velha senhora. Sem dar muita conversa, ela se abaixa e, com a certeza da tarefa que lhe cabe, começa a mexer nos objetos que eu acabara de filmar. Estou bem próxima e me dou conta de que ela começa a fazer café, enquanto a minha câmera passeia ao redor. Procuro os outros atores, mas eles dispersaram pelo espaço e cada um seguiu um caminho particular.
Então, antes o ouvido do que o olho, deparo-me com outro ator: é Adailton, que vestido com uma roupa de algodão cru, chinelos e chapéu de vaqueiro nordestino, e violão em punho, começa a andar carregando uma estranha mochila retangular nas costas. Ao passar por um grupo de pessoas, cumprimenta-as tocando levemente o chapéu sobre a testa em sinal de boa educação, coisa que o personagem aprendeu provavelmente em terras distantes. Vai caminhando, devagar, enquanto dedilha as cordas do instrumento. Os outros atores também iniciam seus próprios percursos, individualmente, em meio dos transeuntes, carregando mochilas semelhantes à dele.  
Volto-me para as notas musicais que o violão, agora já transmutado em viola pela magia do teatro, despeja no ar. O ator parece emiti-las sem preocupação, sem compromisso com qualquer forma definida, mas aos poucos elas começam a se agregar, esboçando um desenho no espaço: um som se junta a outro, depois se liberta, retorna, vai ao encontro de outro, tornando concreto o desejo de encontrar companheiros para dançarem, juntos, uma estranha coreografia. Assim, vai nascendo uma melodia.
Agora o imigrante nordestino está caminhando à minha frente e eu o sigo como uma criança encantada pela flauta de Hamelin. Nesse momento o calçadão está ficando vazio, e a sombra dos prédios ocupa, agora, todo o lugar onde antes o sol havia reinado absoluto. A tarde cai, junto com as notas musicais daquela viola. O ator passa por pessoas que ainda caminham, talvez saindo do trabalho. Agora é bem claro que, nesse perambular uma melodia tímida se fez surgir... sonoridade nordestina que me esforço para ouvir, enquanto um amigo puxa conversa desviando momentaneamente a minha atenção.
Adailton estanca; olha à volta como se procurasse alguma coisa e retorna lentamente, como se desistisse dessa busca. Faço um giro de 180º e reencontro a velha senhora ainda fazendo café a vários metros de distância. Todos os outros atores estão distantes de mim; resolvo então voltar para o violeiro, que repete a mesma frase melódica enquanto se distancia novamente, recomeçando o trajeto do início. Nesse momento percebo que o figurino que ele usa – calças folgadas e uma túnica, ambos de algodão cru - completa a imagem pintada na mochila às suas costas: terra. Terra marrom, rachada, muito rachada. E céu. Marrom e azul-celeste. E a areia alva do tecido.
Adailton, o violeiro, carrega no corpo a terra natal em cores e formas. É a presença indelével de outro lugar, estampada na trama da roupa e da memória. Vagueia, parecendo meio perdido, meio pedindo ajuda com o olhar, acompanhando quem passa. Mas quem passa não olha para ele; sua presença é sumariamente ignorada pelos passantes. 
O imigrante se aproxima de um casal sentado num banco, cumprimenta-o respeitosamente com o chapéu e inicia uma fala. Os dois, apesar de um pouco surpresos, dão atenção à conversa desse peregrino que veio interromper, talvez, uma conversa íntima:
"... a gente escreve a própria história. Quando a história da gente se junta com a do outro, é mais bonito. É uma outra história. Ói, se vocês quiser, pode me seguir. Porque pra onde eu vou tem mais história, viu? Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe".
            E vai embora, deixando o casal sorrindo e se entreolhando. Caminha lentamente de volta ao início da jornada. Vai, parando a cada passo, atento ao trajeto à sua frente, sob uma pirâmide de raios de luz que se infiltraram momentaneamente pelas brechas entre os prédios.

De volta pro meu aconchego...
Os outros atores-viajantes começam a regressar para o lugar inicial de encontro no espaço do calçadão. Adailton também se dirige para lá e ao chegar perto daquela senhora "do café", para e tira a mochila das costas. Esta se transforma num banco onde o ator senta, atraindo o público com placidez de velho sertanejo. Lu convida os que passam com um gesto camarada de mão. Outro peregrino – o ator Johnny John - chega, repetindo palavras que eu já ouvira antes: "Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe". Logo os outros atores, Edson Paulo e Selma, vêm se unir à trupe. Assim, todos chegam à "cozinha" daquela senhora hospitaleira, tiram suas mochilas das costas fazendo uma roda que anseia pelo café, cujo aroma se espalha pelo ar. Cada mochila é uma caixa de madeira, um guarda-roupa, um baú de madeira, no qual carregam as histórias de suas vidas: raízes, sonhos, objetos, amores.
Surge agora uma canção alegre, que recebe um acompanhamento rítmico: uma das mochilas-caixas virou instrumento musical que Johnny John percute com as mãos, sentado sobre ele à moda de um carrón argentino.  Selma também acompanha o ritmo, batucando na lateral de sua caixa com uma baqueta.
Uma cadência harmônica simples aparece, oferecendo a introdução para Adailton "puxar" o canto de Calix Bento (domínio público):
"Ó Deus salve o oratório (bis)
onde Deus fez a morada, oiá meu Deus... onde Deus fez a morada, oiá!
Onde mora o Cálix Bento (bis)
            E a hóstia consagrada, oiá meu Deus... e a hóstia consagrada, oiá!
            De Jessé nasceu a vara (bis)
            Da vara nasceu a flor, oiá meu Deus... da vara nasceu a flor, oiá!
            E da flor nasceu Maria (bis)
            De Maria, o Salvador, oiá meu Deus... de Maria o Salvador, oiá!"
Todos se integram à cantoria, timidamente no início e a seguir, com entusiasmo. É um canto religioso-profano do repertório tradicional da Festa do Divino, testemunha do fervor católico que impregna toda a música "de raiz" do interior do país e particularmente de Minas Gerais, terra de Pena Branca e Xavantinho, dupla sertaneja que o popularizou nos anos de 1970.

O contraponto cênico-musical de Ser tão ser
Do ponto de vista da musicalidade da cena, pode-se dizer que o Buraco d'Oráculo utilizou, no prólogo apresentado acima, um procedimento musical em que a solidão do nordestino é evocada pela execução quase aleatória de sons de uma escala modal – vestígios de um mundo antigo, ancestral, coletivo – que aparecem como que deslocados do mundo atual – contemporâneo, acelerado e individualista –, materializando sonoramente a precariedade do homem em meio ao ambiente urbano contemporâneo. É ao mesmo tempo um lamento, um chamado e um testemunho desse sentimento de nostalgia do mundo que foi deixado para trás e do espanto de ver-se arremessado repentinamente noutro lugar, na qual o imigrante não se sente à vontade, pois as convenções aí reinantes ainda lhe são estranhas.
A sua música é também um porto seguro, e o homem se agarra a ela como o ator segura o instrumento junto de seu corpo, de seu peito, na única intimidade possível naquele universo de exposição pública e anônima que a cidade traz consigo, deixando à mostra a falta de acolhimento e a fragilidade do ser. É também, um signo dessa busca de afeto, a viola que o ator abraça e acaricia com carinho, devolvendo ao objeto o aconchego de um lar distante, talvez perdido para sempre. Um pouco mais tarde, quando esses seres solitários se encontrarem, é para repartir aquela intimidade perdida; na lembrança de uma cozinha compartilhada por familiares, amigos e vizinhos, a memória como único lugar possível de usufruir do sentimento de pertencimento a uma comunidade, a um coletivo social onde cada um é "Seu" Fulano ou "Dona" Sicrana, e não apenas "um homem" ou "uma mulher" nas ruas da cidade.
Mas, esse mundo regido pela dimensão sensorial – o cheiro do café, o calor dos corpos próximos e do fogo aceso, o olhar do outro pertinho, o gesto de dividir o assento para ouvir "mais uma história" – é um mundo entre parênteses, um mundo situado noutro tempo e noutro lugar. Então, a música que o anima é assim vivenciada, em ritmo e voz. Há um canto que agora pode ser vivido coletivamente porque todos o conhecem, é parte desse mundo de todos, e cujo significado é também compartilhado por todos:
"Ó Deus salve o oratório; ó Deus salve o oratório; onde Deus fez a morada, oiá meu Deus; onde Deus fez a morada, oiá..."
O Divino Espírito Santo é invocado, em alto e bom som, entrelaçando o homem ao sagrado. Não se trata apenas de entoar uma canção típica dessa festa popular, mas, sobretudo de comungar o significado daquela experiência de perda das raízes. É a vivência do próprio Mistério sagrado que une o humano e o divino, uma súplica a Deus para que desça em seu raio de luz e faça daquele lugar a Sua morada. É no milagre da esperança, operado pela canção, que os homens e as mulheres desgarradas de seu universo conhecido encontram energia para enfrentar as dificuldades que os esperam no novo mundo inóspito; e é também a força que os atores vão buscar para apresentar suas histórias – e não somente as histórias de seus personagens – ao público. Por isso, as notas soltas de antes aglutinam-se numa mesma canção: melodia, ritmo e harmonia se unificam como num hino de batalha. Por isso talvez, o batuque que a acompanha é executado numa intensidade quase excessiva, que contradiz a delicadeza da viola e das palavras entoadas, sugerindo que a ação sobre o mundo deverá substituir, de agora em diante, o estado nostálgico anterior.
Quando se fecham os parênteses – como numa preparação antes da luta, a inspiração profunda antes do salto no abismo – e a imagem da cozinha aconchegante é desfeita, o mundo volta a ser aquele da realidade urbana do início; entretanto, agora todos estão mais preparados para os percalços que virão. Não são mais pobres diabos solitários, pois construíram ali uma fortaleza interior. E o espetáculo pode, então, continuar.

A música antes da história: imagem sonora da solidão
Uma viola que caminha produz, no espectador-ouvinte, a vivência plena do espaço físico. Espaços imaginários ou metafóricos deixam de ser subjetivos e fictícios para se tornarem extremamente vívidos e concretos na experiência de errar pelo espaço junto ao caminhante solitário. Vivemos com ele a sua solidão, a perda de um ponto de segurança, a busca de solidariedade. 
As notas musicais soltas e quase aleatórias a princípio, que aos poucos vão construindo uma melodia de estrutura modal, criam poeticamente a imagem sonora do homem solitário na cidade grande, à procura de calor humano. A melodia só se apresenta claramente delineada à medida que o personagem consegue reunir, daqui e dali, pedaços espalhados de seu mundo cultural e afetivo. Dessa forma, homem e música descrevem paralelamente no espaço – o primeiro, sobre a terra; a segunda, pelo ar – o desenho de seus respectivos processos identitários, delineando-se mutuamente num movimento que serpenteia aparentemente sem direção, mas que se dirige a uma mesma forma sensível. Analogia entre estrutura musical e ação cênica, um contraponto entre música e cena.  
Essas notas musicais, soltas, que aos poucos se configuram numa melodia, revelam um processo de construção que, da desagregação inicial, se dirige a uma estrutura mais organizada – reiterando musicalmente o tema metafísico "do caos à forma". São notas avulsas que nascem sem direção, sem intenção, soando apenas, numa vida que se preocupa apenas em ser vivida. Aos poucos encontram uma ou outra com quem parecem se combinar melhor, desejando construir as primeiras sílabas de uma fala ainda balbuciante. Um som que se encontra com outro som, afasta-se desse para retornar a um anterior, negociando e renegociando alianças sonoras. Por meio desse processo, demonstra maior afinidade com alguns do que com outros. Surge, assim, uma frase musical elementar de três notas musicais, vacilante, que se repete e repete, exercitando a sua presença no mundo, como uma criança que começa a andar sozinha.
Um pequeno discurso musical, primitivo, essencial, sem adornos. Mas é o bastante para definir um rudimento de estrutura sustentadora. Aos poucos, fortalecidas, as notas se alinham em tímidas sequências; depois, dão-se as mãos e ousam novos movimentos, agora com a certeza de poderem se afastar cada vez mais sem perderem-se novamente na imensidão do espaço. Uma a uma, notas soltas formam motivos melódicos mais definidos, desenhando uma linha sonora cada vez mais nítida. O sentido musical até então esboçado flutua agora no ar, sugerindo uma linha sonora que mergulha reiteradamente, descrevendo um movimento descendente.
A certa altura dessa improvisação cênico-musical, torna-se possível reconhecer uma escala modal, tipicamente descendente, que une no mesmo gesto sonoro o passado distante de uma Europa mediterrânea e de um Brasil caboclo onde, pela força de uma evangelização católica e canônica, preservaram-se esses modos musicais, eternizados na sonoridade de seus cantos de fé e conversão. Submersas nas correntes profundas da cultura popular nordestina, resquícios de escalas gregas que sobreviveram no canto salmodiado dos missionários jesuítas, constituindo testemunhos de uma ancestralidade marcada pela mistura de culturas, etnias, territórios, vozes.
No trecho musical analisado, não há definição de uma nota musical "tônica" que exerça atração para uma resolução final (como na música tonal, mais tardia cronologicamente, na história da música ocidental), o que torna perceptível a tendência dessa melodia em descrever reiteradamente um desenho circular de retorno ao mesmo motivo sonoro. Esta é, inclusive, a característica fundamental da música modal: não repousar definitivamente sobre um som, uma derradeira nota musical – ou até mesmo um acorde final estrondoso, como o romantismo propôs – que finaliza um raciocínio, como um ponto final termina a frase falada.
Ao contrário: o "raciocínio" da melodia modal parece estar sempre em movimento; não segue uma trajetória retilínea para desembocar previsivelmente num ponto determinado. A melodia modal descreve linhas sonoras sinuosas, espiraladas ou talvez circulares, num jogo sonoro que inverte a lógica racional e induz o ouvinte a penetrar noutra esfera sensível e a experimentar outro regime de pensamento.
No espetáculo Ser TÃO Ser, todas as vezes que o peso da sociedade capitalista, moderna e urbana, é demais para os personagens e aparece uma grande tensão dramática, essa melodia arcaica volta a soar. Misto de tristeza, solidão, errância, saudade do lar e perda do aconchego, ela também representa um retorno às origens mais remotas da alma, o "estado zero" de onde é preciso começar – ou recomeçar – tudo. Por isso, quando na cena seguinte os personagens chegam à Rodoviária de São Paulo, ela ressurge; e também depois, quando os abrigos de cada um são derrubados pela prefeitura da cidade. O canto de solidão sem palavras paira sobre os escombros dos barracos derrubados pela dureza do mundo urbano. Ao mesmo tempo tristeza, mas também oceano primordial de onde podem emergir as energias mais profundas. É daí que aqueles personagens irão retirar o sustento de seu ser.
A nostalgia do sertão presentificada em Canoas foi também a do peregrino que trouxe das areias de desertos remotos a experiência da solidão e do nomadismo em busca de outras terras. Uma forte indicação da herança cultural árabe na música nordestina é a presença de melismas que, aqui, escorregam dos dedos do tocador, aparecendo às vezes como simples apoggiaturas, às vezes como uma nota base; trata-se de um cantochão que apóia, numa mesma nota musical, quase todas as notas da melodia. Na verdade, é esse o "baixo" da viola que se repete por toda a improvisação – uma característica do próprio instrumento musical utilizado pelo ator – que o polegar dedilha quase que por automatismo, buscando a mecânica de execução mais fluente e graciosa. Presença dos povos nômades que durante séculos migraram da Arábia e do Saara para a Península Ibérica trazendo consigo seus pertences, cantos, fé e saudade, misturando o espírito nostálgico – do desejo de regresso – ao ímpeto do viajante aventureiro – impulso de seguir adiante – sentimento contraditório do qual compartilham, provavelmente, os teatristas de rua.
Depois, ao fazer a roda para o café, a errância sugerida no prólogo de Ser TÃO Ser encontra um ponto de repouso. A música que vem da viola, de condutora de um movimento contínuo pelo espaço, se transforma em ponto de referência estável, apoio sonoro e harmônico para as vozes dos atores que agora cantam, em uníssono. Aquele lugar de estabilidade que a cena "do café na cozinha" cria faz, da viola errante, o objeto integrador do grupo de atores/personagens. É ele, o instrumento musical ainda antes do café quentinho servido aos convidados, o elemento cênico que estabelece os laços de ligação entre cena e público, num mútuo acordo sonoro.
Outras músicas serão ainda entoadas pelos atores, desse momento até o final do espetáculo. Outras sonoridades, influências explícitas do mundo contemporâneo que se desdobrará em novos contrapontos, cenas, cantos. Entretanto, é aquele fragmento melódico inicial o que mais fortemente ilumina as possibilidades de uma musicalidade teatral própria ao espaço aberto da rua, tanto pela estreita conexão sonora que estabelece com o tema da migração nordestina para a Grande São Paulo, quanto pela experiência concreta do sentimento de perda das referências – espaciais e temporais – que pode oferecer ao espectador-ouvinte.
Canoas, janeiro de 2010


[1] Doutoranda em teatro pela Unirio (Universidade Federal do Rio de Janeiro), integrante do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores de Teatro de Rua, organizadora (em parceria com Licko Turle) de dois livros: Tá na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel; Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio.