Pesquisar este blog

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

1000 dias! ou 1001 noites?!

1000 dias! ou 1001 noites?!


Márcio Silveira dos Santos[1]


Dia 16 de Setembro de 2011, marcou a data simbólica de "1000 dias" da Copa Mundial de futebol a ser realizada no Brasil no ano de 2014. O país sede da Copa viveu um dia de euforia, semelhante ao dia da decisão da escolha deste. Muita pompa em todas as cidades sedes de alguma partida. Milhões de reais jorram desde o dia da escolha pela FIFA e hoje é mais um marco político econômico, pois mais algumas torneiras de dinheiro foram abertas sobre a alcunha de ampliação do orçamento para Copa. Ou seja, muito barulho por nada! Sabemos que muitas outras torneiras e jazidas ainda jorrarão nestes mil dias.
Há uma falácia pública por parte dos governos dizendo-se comprometidos com o progresso das cidades, do social, do humano! Todos os dias é o mesmo vetor de interesses do poder hegemônico crescente através de empreiteiras nacionais e estrangeiras. À medida que aumentam os canteiros de obras "de mobilidade social", mais chegam empresas com a dita "mão de obra especializada", ou seja, chamam o país de incompetente/atrasado e trazem milhares de funcionários com salários altíssimos. Pagos por quem? Com que recursos? Com o seu, com o meu, com o dinheiro de todos nós brasileiros, à custa dos altíssimos impostos que pagamos em tudo! Só em Porto Alegre serão investidos mais de R$ 500 milhões de reais, deixando um legado de desenvolvimento, segundo o Prefeito José Fortunati[2].
Em Porto Alegre/RS durante o dia houve muita festa com shows, cavalgada, buzinaço, bandeiras e exposição maciça nas mídias sobre os tais mil dias. Entrevistas com o Prefeito e demais secretários de saúde, mobilidade urbana, saneamento e turismo, mostrando a cidade em obras e o avanço que isso poderá trazer ao povo gaúcho. Já as imagens pelo país destacavam Pelé e a Presidenta Dilma Rousseff, dentro do Mineirão em obras. Ambos conjuntamente suspendiam para os fotógrafos uma camiseta amarela da seleção com a estampa de "1000 dias" nas costas. Muita comemoração e pouca ação. O ritmo das obras é muito lento, essa é a tônica da maioria dos jornalistas mais críticos.
Os governos alegam que o prazo de término das obras em dezembro de 2013 será respeitado, para que se ganhe o selo da Copa. Mas até esta data muitas obras ainda serão erguidas, algumas nem licitações houveram. Muito por fazer, como a ampliação do aeroporto que é fundamental e somente terá seu inicio no segundo semestre de 2012, e as desapropriações de famílias recém iniciaram em algumas localidades, eis uma relação muito delicada.
No dia anterior aos festejos caiu o Ministro do Turismo, por que será? E justamente num momento em que o turismo vai a mil (ou seria milhões?!) onde segundo dizem os noticiários, por exemplo, já se encontram lotadas as Pousadas do Pantanal durante a copa, com reservas de turistas de outros países! Será que o problema é porque... talvez... não há político de ficha limpa no alto escalão dos governos? Sem culpa no cartório? Como diria um amigo meu lá do nordeste: Isso tudo é uma maracutáia sem fim, descarada e exposta ao povo e o povo tem que reagir imediatamente!
O novo ministro (que como o seu antecessor é afilhado político da família Sarney!) já assumiu dizendo uma pérola: Precisamos colocar essa nova massa de brasileiros nos "ganhos" do turismo nacional! Ou seja, "ganhos=lucros", "cifras", "massa de manobra", sua frase lascou pertinho do vocabulário do capitalismo selvagem!!!! Sim "capitalismo" meu caro leitor mais atento e prolixo nas palavras. Você pode até pensar que a palavra certa talvez fosse "capitalismo tardio" ou já é "pós-neo-capitalismo", etc. Não importa a nomenclatura, o que importa é que o Seu Zé da Folha, artista de rua de ficha tão limpa que daria inveja a muitos políticos, tá percebendo o que acontece no seu entorno e não está satisfeito!
Seu Zé pergunta: - E a cultura? Como está e será com a Cultura? (silêncio...) É preciso balançar a cabeça num movimento de negativo enquanto se ganha tempo para lembrar algo bom, e o que vem a mente é apenas metáfora. Eis o nevoeiro, mais denso que aquele em São Paulo que gerou um acidente gigantesco de carros. Estamos às cegas, não vemos nada no front! Pra pegar um exemplo mais nacional e que diz respeito ao Seu Zé da Folha também, a Fundação nacional de Arte/MINC ficou com a responsabilidade da implantação das Praças dos Esportes e da Cultura (PECs) do PAC 2 - Programa de Aceleração do Crescimento 2.

O programa prevê a implantação de 800 Praças dos Esportes e da Cultura (PECs) em municípios de todas as regiões brasileiras, até o final de 2014. Estes locais serão espaços destinados a promover a cidadania em áreas de alta vulnerabilidade social, por meio da realização de programas e ações culturais, práticas desportivas e de lazer, oficinas de formação e qualificação profissional, serviços de assistência social, de prevenção à violência e de inclusão digital. Entre as ações que serão desenvolvidas nas Praças, o Ministério da Cultura irá implantar Telecentros, Bibliotecas, Oficinas Culturais, Cineteatros e Auditórios para a realização de espetáculos artísticos. O programa contempla três modelos arquitetônicos para as praças, com base na dimensão dos terrenos, que poderão ser de 700m², 3.000m² e 7.000m². Servirão apenas como referência para as prefeituras, podendo ou não ser adotados. O principal compromisso que as administrações locais terão com o programa é a implantação das políticas públicas propostas[3].

No entanto, numa consulta que fiz sobre as ideias do Programa não constatei nenhum parte que contemplasse as artes cênicas na rua, muito menos espaços amplos com estrutura para lonas de circo de médios e grandes portes. Na imagem que endossava o programa via-se um grupo de capoeiristas jogando num espaço gramado que na escala proporcional não permitiria que o grupo tivesse realmente espaço suficiente para sua roda. Ou seja, mais um engodo. Não houve diálogo com os artistas de rua e se houve foi pífio. O ator/palhaço Richard Riguetti, do Grupo Off-Sina/RJ, constatou um equívoco sem tamanho com o fator histórico da arte circense na sua cidade, disse ele por email:

Oi Márcio, é isso mesmo. A maioria das praças onde serão implantadas as Praças do PAC (PECs) são terrenos onde os circenses montavam as suas lonas. Aqui no Rio de Janeiro estamos tendo problemas com o Pátio Benjamim de Oliveira (conhecida Praça 11 ou Terreirão do Samba). A reforma já começou e nenhum circense foi consultado. Encaminhei o caso a Frente Parlamentar de Democratização da Cultura da Câmara dos Vereadores. Através dessa mobilização recebemos a planta baixa do novo projeto e pasmos constatamos a presença de 5 árvores no meio do terreno, ou seja, ninguém monta mais circo lá.

Tornando a situação mais não-dialógica ainda, o Governo Federal está promovendo a partir desta semana até meados de novembro, nove seminários em nove capitais do país, com o objetivo de discutir com gestores públicos a mobilização social das comunidades onde as praças serão implantadas. Uma capacitação para os envolvidos nas áreas de construção das praças, de assistência social e de cultura e lazer. Ou seja, o diálogo é somente com funcionários públicos, não com a sociedade civil como um todo. Urge que os movimentos e redes sociais se articulem de outra forma para uma mudança de visão destes funcionários com a forma de estrutura destas praças do PAC2, ainda é possível participar e na medida do possível contextualizar as suas realidades.
No país a vigilância sobre o artista de rua é crescente. Proibições diante de solicitações de atividade nas praças, parques e ruas se tornaram situações kafkanianas. Em São Paulo os artistas de rua conseguiram reverter um pouco à situação, só não sabemos até quando. Já no Rio de Janeiro a incomunicabilidade tem facilitado a permanência do choque de ordem.
Se "a rua é o advento da modernidade[4]", inventada para uma forma de policiamento de Napoleão III, onde poderia visualizar melhor o núcleo urbano através de grandes avenidas e largas calçadas, e desta transformação a vida privada passa a co-existir com a vida pública, hoje com o cerceamento dos artistas de rua podemos supor que o privado dominou a via pública. Concretizando um caminho de choque de ordem em prol da boa imagem "clean" e bons costumes durante a Copa. O mais incrível é que essas des-medidas dos governos colidem com o Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998.

Parágrafo IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Parágrafo X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.[5]

A transformação das cidades em prol da Copa das confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e depois às Olimpíadas (2016) não pode relegar as necessidades da sociedade que nela habita. Há que se ter um bom conhecimento das várias dimensões para um bom planejamento urbano. Por isso deve haver consulta pública e/ou diálogos constantes com os movimentos sociais de base.

O êxito de qualquer ação prática sobre um determinado objeto concreto depende do conhecimento que se tem deste objeto. No caso do planejamento urbano entendido com uma forma de ação sobre a cidade, observa-se muitas vezes a ineficácia do planejamento motivada pelo conhecimento limitado que se tem sobre a cidade, objeto complexo, multidisciplinar e ainda carente de um corpo teórico próprio. Os objetivos do planejamento urbano dependem em grande parte do conhecimento de todas as dimensões do urbano[6]. (Lima, 2007: 14)

Nosso ícone do teatro de rua brasileiro, Amir Haddad, tem há muito levantado a bandeira do respeito e a dignidade merecida do artista de rua e suas práticas. Amir em riste tece um soberbo pensamento de que se artes públicas (como estátuas, marcos, templos, prédios históricos, etc) possuem privilégios econômicos e estrutura para sua existência e manutenção, assim o artista de rua que tem sua arte como sendo também arte pública deva merecer a mesma atenção, os mesmos benefícios, o mesmo respaldo, respeito e liberdade de expressão. E para que isso de fato se concretize é necessária uma nova ideia de luta: Políticas Públicas para Arte Pública!

Acho que a gente deveria trabalhar por um conceito de artes públicas, dar este nome a nossa atividade. É bom porque pode conseguir políticas interessantes e a gente não (precisaria) vir sempre a reboque do pensamento da cultura oficial. Nós somos de outro setor, outro departamento e estamos andando para outra direção completamente diferente da que avança aquela. Se a gente consegue fazer passar uma idéia desta, avança muito. (...)
 Se isto der certo, eu já posso falar de arte pública, em cobrar do prefeito, lançar esta idéia. Falar que o Brasil tinha que sair na frente - nós temos que sair na frente mesmo. Não temos que ir à reboque de nada. Que nós podemos propor políticas públicas para as artes públicas. Isto é muito bom. O Brasil vai fazer a Copa do Mundo. O Brasil vai fazer as olimpíadas. É hora de se pensar nas artes públicas! Porque, senão, o que é que nós vamos oferecer para as pessoas? Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Luan Santana, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Ivete Sangalo, Luan Santana, Ivete Sangalo... o tempo todo! (...)
Eu acho que políticas públicas para as Artes Públicas é uma coisa que ninguém pediu! E nos organizarmos em movimento pelas artes públicas num país que já é muito privilegiado por políticas públicas para as Artes Privadas![7]


O próprio Amir, junto ao Grupo Tá na Rua, já está organizando o I Seminário de Artes Públicas, a ser realizado no dia 31 de Outubro de 2011 às 16h, nos Arcos da Lapa/RJ e seguirá as atividades na sede do grupo. Haverá a presença de artistas de rua de várias regiões do país e de alguns parlamentares que vem encaminhando projetos de políticas culturais para as artes públicas na cidade do Rio de Janeiro. Parte do convite tem mais pensamentos de Amir:

Este projeto de lei traz em si o reconhecimento que existe  um sentimento público de produção artística, que é anterior ao conceito de arte privada conforme nós a conhecemos, e que novamente se manifesta. 
A este movimento podemos chamar de "Arte Pública", um conceito ainda muito novo e ao mesmo tempo muito antigo. Uma arte que se faz e se produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a esperança. Um direito de todo e qualquer cidadão.

A contagem é regressiva para os dias nebulosos para a cultura popular e de rua. Se não houver ações mais enérgicas teremos dias de muita revolta durante a Copa. Pois como disse o Vereador João Bosco Vaz, Secretário da Secretaria Extraordinária da Copa 2014 (Secopa) no final do programa jornalístico da RBS, afiliada da Rede Globo no RS: "Copa do Mundo é business, é negócio!". Então é esse o legado de desenvolvimento Senhor Prefeito e Senhora Presidenta?
Numa possível guinada urgente na situação da cultura e outras áreas no Brasil neste momento, o ator/diretor Adailton Alves, Grupo Buraco D'Oráculo/SP, refletiu por email sobre o contraste das lutas dos países latino americanos e a situação no Brasil:
 
Com a proximidade da copa, tudo só tende a piorar para os debaixo e nós somos os debaixo. Mas para além dos artistas existem muitos outros embaixo. É preciso juntar forças. Vamos aprender com o Chile. Em todos os lugares a coisa tá pegando fogo e só no Brasil parece que não acontece. Não é que não acontece. Explicando melhor, pois há resistências em todos os lugares, em várias áreas: moradias, atingidos por barragens etc. Mas temos dificuldades em juntar todos os lascados. Não sei se são as distâncias desse Brasil continental ou a despolitização que leva a defender "primeiro o meu". Só é possível ter uma certeza: a coisa vai piorar. E logo, logo começa a quebradeira nos países de primeiro mundo e alguém tem que pagar a conta.

As lutas continuam, seja dos artistas de rua da Colômbia que foram coibidos pelas agulhas negras de realizar seus trabalhos, ou dos artistas do Amapá que acampam na frente da Assembléia Legislativa na capital Macapá. Mas ainda sim é preciso uma união coletiva dos movimentos e uma reação como acontece no Chile. Por outro lado boa parte da população só pensa no futebol, em ter uma delegação representante de algum país em suas terras. Outra parte está de olhos arregalados e bolsos abertíssimos, estalando os dedos prontos para contabilizar os reais, dólares, euros, pesos, etc, que virão junto com os milhares de turistas estrangeiros. Para estes o negócio é alugar o Brasil!
Mas há reações, tramita na Câmara dos deputados a analise do Projeto de Lei 1096/11 do Deputado Vicente Cândido (PT/SP) que equipara, para fins legais, a arte de rua a todas as outras modalidades artísticas e proíbe autoridades federais, estaduais e municipais de estabelecer qualquer tipo de cerceamento da atividade dos artistas que trabalham em cruzamentos ou semáforos.

Segundo o projeto, o termo cultura abrange as manifestações artísticas em geral, realizadas em espaço fechado ou aberto, privado ou público, em veículo aberto ou nas ruas e praças públicas, com ingresso pago, gratuito ou com remuneração espontânea ao artista a título de doação após ou durante a encenação. Integram a categoria as artes cênicas, circenses, marciais e plásticas, as apresentações musicais, a dança, as lutas de exibição, a poesia e as manifestações de artistas de rua, que não poderão ser censuradas pelas autoridades públicas. O projeto assegura ainda aos artistas o direito de reunião pacífica, a liberdade de associação para fins lícitos e a constituição de cooperativas, independentemente de autorização e vedada a interferência estatal no seu funcionamento.[8]

Enfim, devemos ampliar o debate e propor suportes as leis e ações em prol de profícuas políticas públicas para as artes públicas! Não podemos nos contentar com uma ou outra concessão, alguns editais "apagar incêndio" e diálogos pueris durante esses "1000 dias". Corremos o risco de serem histórias de "1001 noites"[9] para não percebermos o que está por trás destas intenções mais superficiais dos representantes dos órgãos públicos e privados, que desejam somente o tal "business"!
Então vamos esperar o conto do vigário?
A luta é permanente.


[1] É ator, diretor, dramaturgo e professor. Mestre em Artes Cênicas PPGAC/UFRGS. Integrante do Grupo Teatral Manjericão. Articulador da RBTR - Rede Brasileira de Teatro de Rua.
[2]http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=145422&COPA+DE+2014+DEIXARA+LEGADO+DE+DESENVOLVIMENTO
[4] Teatro de rua e sua importância na metrópole. Andreazza, João Carlos. P.47. In Teatro de rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio. Turle, Licko. Trindade, Jussara. E-papers: RJ. 2010.
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm
[6] Espaço e Cidade - Conceitos e leituras. Org. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. Editora: 7 letras: RJ. 2ª Ed 2007.
[7] Falas de Amir Haddad, diretor do Grupo Tá Na Rua/RJ, no Seminário Nacional de Dramaturgia para o Teatro de Rua, promovido pelo Núcleo Pavanelli, em 18 de junho de 2011 no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, com transmissão pela internet. Trecho transcrito por Licko Turle.
[9] Com o perdão da analogia, pois as histórias do livro "As Mil e uma noites" são ótimas. http://pt.wikipedia.org/wiki/As_Mil_e_uma_Noites

Nenhum comentário: