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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A disputa da arte em uma sociedade conservadora

Adailtom Alves Teixeira[1]

A liberdade é imprescindível para o desenvolvimento das artes. É possível garantir esse desenvolvimento quando à sociedade dá uma guinada conservadora, se pautando por valores morais? Atos recentes ocorridos em museus brasileiros e promovidos por certo “movimento” de olhos nas eleições que se aproximam, lançam o alerta fundamental: mais do que o desenvolvimento da arte, o que está em jogo é o tipo de sociedade que estamos construindo; que direção essa sociedade está tomando. Mas a arte passa a ser importante como sinal, justamente porque ela sempre foi desimportante, principalmente se tomarmos como parâmetros programas públicos de cultura construídos no tempo de nossa jovem democracia, isto é, nos últimos 30 anos.

A arte que acredito deve ter a possibilidade de disputar o imaginário e apontar novos rumos da sociedade, muito embora não seja a arte em si que mudará o país, o mundo. Para que essa arte possa disputar esse imaginário se faz necessário a liberdade, em sentido amplo, pois em uma sociedade de mercado, a censura, na maior parte das vezes, vem pela via econômica, por isso a discussão aqui ficou atrelada, minimamente, à questão das políticas públicas de cultura, ou seja, de como essa mesma sociedade é capaz de entender sua arte e disputar mecanismos de fomento dentro do Estado para que ela cresça e floresça. E aí a cobra morde o próprio rabo, pois em três décadas de nossa jovem democracia temos experiências pontuais de políticas públicas democráticas na área da cultura, mas a grande orientação é mercadológica e não de processos de fomento que permitam a experimentação político-estética. Basta dizer que, no âmbito federal o nosso modelo ainda é a Lei Rouanet. Ou se pegarmos qualquer uma das sete artes, todas que tem grande expressão social são ligadas à indústria cultural. E aqui não cabe e não farei a discussão entre cultura popular, de massa e erudita, isso porque essa separação é histórica e, talvez um dia, sejamos capazes de superá-la, embora saibamos que existem muitas diferenças, mas foge ao escopo da discussão.

Como apontamento em relação à construção de políticas públicas de cultura, cabe deixar claro que, nem mesmo no chamado melhor período de nossa jovem democracia, os anos de governo democrático popular, fomos capazes de construir algo duradouro e os retrocessos vêm em avalanche: desmonte do Minc, ausência de programas públicos de cultura em lei, desmonte do que há nas principais metrópoles – o que demonstra que os artistas não foram capazes de construírem grande lastro social, a ponto dos demais seguimentos sociais lutarem com os artistas pelas conquistas – e, mais recentemente, a censura pública por parte de pequenos grupos conservadores, mas com uma forte capacidade de intervenção midiática e com apelo popular, devido à disseminação do medo. Esse aspecto, o desmonte e o retrocesso social, deixa claro um ponto fundamental, ao menos em relação ao campo aqui em discussão: a esquerda em nosso país nunca deu a devida atenção à força e ao papel da arte na sociedade, somos vistos como penduricalhos à direita e à esquerda.

Quando não somos reconhecidos como importante nem mesmo pelos elementos progressistas, padecemos do abandono do Estado – que, apesar de ser instrumento de dominação de uma classe sobre a outra, deve ser disputado, pois é onde, ainda, estão os instrumentos de regulação social. Abandonada pelo Estado, a arte passa a contar apenas com instrumentos de regulação econômica, isto é, deve ser vendável para sobreviver. Ora, em uma sociedade pautada pela moral, fica claro que arte se destacará: o rebotalho midiático, a indústria cultural. Isso significa que não haverá outra forma de arte? Claro que não, onde há opressão há resistência. Mas não se pode esquecer que os meios materiais também determinam a estética, logo uma arte de resistência talvez fique mais frágil, por mais que se deseje ou se espere o contrário.

Devemos lutar pela liberdade da arte, mas não apenas nós, os artistas, mas sim como sociedade. Sabemos que a liberdade é uma construção social; como construir a liberdade em uma sociedade conservadora? Retomo aqui o texto de Raymond Williams de 1978, Arte: liberdade como dever. O autor discute a liberdade e o dever na arte, entende que “[...] o primeiro dever do artista, em um sentido importante, é ser livre, e o primeiro dever do provimento social das artes é assegurar a liberdade” (2015, p. 131). Claro, o lugar de fala do autor é diferente do nosso, mas nos serve. O autor sabe dos limites da liberdade em uma sociedade de mercado, ainda assim, entende que a liberdade nas artes é “[...] uma necessidade social” (2015, p. 132). Logo, temos uma tarefa: engajar a maior parte da sociedade na discussão.

Essa necessidade de muitas vozes é uma condição de saúde cultural de qualquer sociedade complexa e, assim, a criação de condições para a liberdade do artista, nesse sentido, é dever da sociedade, não para o bem de qualquer artista individual, nem em termos de discussões abstratas sobre direitos, mas simplesmente porque a sociedade precisa de toda experiência articulada e de todas as criações específicas que puder obter (2015, p. 133).

Nascemos no seio de uma família, de uma sociedade e em determinado tempo histórico, logo, a arte que se produz não está dissociada disso tudo. Então cabe perguntar: se não formos capazes de mobilizar, de avançarmos em um debate público sobre a liberdade da arte, o que as próximas gerações estarão produzindo artisticamente daqui a trinta anos? Talvez nossa capacidade de criação, de inventividade seja maior que isso, haja vista, a produção que a periferia das grandes cidades tem dado como resposta artística, inclusive sem apoio do Estado; mas, ainda que seja alentador esse olhar, é preciso lutar agora para que não tenhamos nossa capacidade de resiliência ainda mais diminuído nas próximas décadas. A nossa liberdade é sempre relativa, todo artista é filho de seu tempo histórico, logo sua criação não foge totalmente a isso. O artista do futuro dependerá da sociedade que formos capazes de construir no atual momento histórico.

Bibliografia
WILLIAMS, Raymond. Arte: liberdade como dever. In: WILLIAMS, R. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.: Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski. São Paulo: EdUnesp, 2015.




[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pela Unesp; articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; ator e diretor teatral.