Fomos batizados terroristas
Encontrar Lampião, Zapata, um Pantera Negra e Santa Dica (quem??) num mesmo ato, a carregar o caixão de Gatilheiro Quintino (ah?...) poderia ser insólito, se o cortejo não fosse acompanhado de canto tão rasgante. Poderia ser insólito, se o cortejo fosse realmente fúnebre, mesmo em ato teatral. Mas não é.
O cortejo, que encerra peça da Companhia Estudo de Cena, ressuscita a força de luta de nosso povo latino americano. Recupera, nos destroços das histórias [quase] esquecidas, a braveza, a valentia, a indignação de tantos nós. Sua coerência encontra coro num canto que repete: "fomos batizados terroristas".
Lampião, Zapata, os Panteras Negras, Santa Dica e Gatilheiro Quintino ressurgem, assim, como irmãos de uma mesma tradição: que não se aprende em escola nenhuma, por vezes nem mesmo em casa, tradição dessa revolta que irrompe em forma de luta contra a perpetuação de tanta injustiça social.
"Fomos batizados guerrilheiros" é canto final composto pela Estudo de Cena para a montagem de Guerras Desconhecidas, peça de teatro inspirada nos cadernos do jornalista Leonencio Nossa. Criação da Estudo de Cena para um teatro mambembe a visitar feiras, praças, a rua por onde passam as pessoas mais comuns. Teatro sem cortinas de veludo, nem lugares marcados, que se faz com certo improviso frente as situações que a feira oferece, mas enreda sem rodeios nem floreios, com a precisão de sua música e poesia, a lembrança do que foi propositalmente omitido da história oficial.
O teatro então nos apresenta a história de três revoltas populares brasileiras de épocas e lugares diferente, revoltas que assumem a força de uma guerra contra a legitimação da propriedade privada e da opressão: a Guerra do Pau-de-Colher (década de 1930, interior da Bahia), a Guerra [ou Massacre] de São Bonifácio (anos 80, Serra Pelada), a Guerra do Gatilheiro Quintino (também década de 1980, no Pará, mas desta vez pela demarcação de terras). A montagem teatral da Estudo de Cena não apenas justapõe coisas e gentes que parecem separados no tempo e espaço, como também faz uso de diferentes jogos teatrais: a comédia, o drama épico, o poema lírico. A peça é como um experimento de linguagem com fim de sugerir a revelação de outra história, uma história então ampliada pela citação [aparição quase fantasmagórica] de outras tantas figuras – Zapata, Lampião - e revoltas – Canudos, Palmares.
A aparente simplicidade e a precisão na comunicação - já que é de uma síntese perspicaz - é um valor admirável da obra. Também o riso constante da plateia, fruto da atuação competente dos atores e do escracho crítico do texto, irrompe como força do trabalho sério deste teatro que não se abstém de tratar em praça pública da indigesta injustiça social da nossa realidade. Tratar a história de tanto sangue e pólvora surge pertinente como rastro do passado no presente.
Guerras Desconhecidas não é apenas uma denúncia ou revelação, toca-nos o brio, como um chamado bem dirigido:
"Ensinem nossa história sombria aos filhos, a fim de que nosso sangue permaneça na bandeira dos criminosos como sinal de catástrofe."
Este é um teatro que não segue como lamento ou cortejo fúnebre que elege heróis. É, antes, um teatro que brada a ressurreição da luta e da resistência:
"Pedimos: protejam os fracos das balas para que os vivos fiquem a salvo, permaneçam vigilantes, pronto para o combate."
Carolina Abreu
Novembro de 2015