Livro “Sobre
Dramaturgia(s) para Teatro(s) de Rua: procedimentos de criação no contexto das
políticas culturais brasileiras”. 260p. Rio de Janeiro: Mórula editorial.
ISBN: 978-65-86464-73-3. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível superior – CAPES – Brasil e Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas –
PPGAC/CEART/UDESC.
Ser ou não ser um pesquisador-dramaturgo?
Fátima Costa de Lima[1]
Este livro que você abriu e está
prestes a ler traz uma ambiguidade fundamental, que surgiu no primeiro
instante, quando o autor se confrontou com a tarefa de construir a posição do
pesquisador - uma ambiguidade que foi se alastrando e dominando a metodologia de
sua pesquisa de Doutorado[2]. Porque, na experiência
anterior de sua vida no teatro, o pesquisador se reconhecia mais como um dramaturgo,
a experiência investigativa lhe acabou por levantar uma questão: como conciliar
o dramaturgo com o pesquisador de sua própria dramaturgia? Ali, já no começo da
investigação, Márcio Silveira dos Santos começou a viver este drama, concreto e
real.
Mas, no que se constitui uma pesquisa (pelo menos em parte e, ouso dizer, não somente nas artes ou no teatro) senão a incorporação dialética de nossos próprios dramas à nossa própria reflexão?
Eis uma situação investigativa que se
exacerba ainda mais quando realizamos uma “pesquisa de si” – parafraseando um conceito
hoje na moda. Esta é uma situação investigativa que produz o solo fértil para a
emergência tanto do drama do pesquisador quanto da ambiguidade constitutiva
desta reflexão, pois: que posição tomar para falar de seu próprio teatro de
modo que interesse a outras pessoas que pesquisam e fazem teatro? Como fazer
uma experiência única convergir com as de outras pessoas com experiências tão
únicas como são as de teatro?
No contexto da reflexão sobre
a dramaturgia propriamente dita surgiram outras incógnitas: como se situar para
conseguir que (no texto da tese que resultou) neste livro possam contracenar dramaturgias
desenvolvidas para o teatro sindical com dramaturgias criadas no interior do
teatro de grupo? Teatro para campanhas de saúde pública e ativismo político no âmbito
do teatro de rua? Dramaturgias com fontes estéticas tão diversas como o Steampunk,
o Mamulengo, o Circo-teatro e os zibaldoni
da Commedia dell’Arte?
Parece difícil. E, como
orientadora da pesquisa, posso testemunhar que foi difícil.
Mas, tudo ficou menos difícil quando
o pesquisador descobriu que, quando não podemos com o “inimigo”, o melhor é nos
unirmos a ele – uma joia da sabedoria popular que vale mais ainda quando o
inimigo parece ser você mesmo. Em outras palavras: este livro é, em primeiro
lugar, um trabalho que demonstra que a reflexão avança quando a insegurança que
fazia tremer o espaço do pensamento se torna o chão da pesquisa.
Daí que o livro inicie com uma
espécie de diálogo da incerteza, em torno de “ser ou não ser um
pesquisador-dramaturgo?” Lidando com esta dúvida, a Jornada do dramaturgo
não somente apresenta o livro e suas partes como ostenta a insegurança que passou
a acompanhar o pesquisador em todo o seu processo investigativo. Portanto, ao
invés de tentar resolver a ambiguidade, assumir a dupla posição legou à
metodologia a questão que detonou o conflito interno do pesquisador: ele a
transformou em fio condutor do livro, até o seu final.
Os primeiros capítulos apresentam
a formação do dramaturgo: no teatro de e para trabalhadoras e trabalhadores, assim
como em seu primeiro grupo de teatro. Ele prossegue sua trilha de permanente
aprendizado conjugando fazer teatro com uma atuação intensa no campo das
políticas públicas para o teatro de rua. Acaba concentrando-se em seu próprio teatro
e discutindo modalidades dramatúrgicas, como a “Camelôturgia” e a “Cenopoesia”.
Nesta primeira metade do
livro, o dramaturgo que se torna pesquisador revela para si e para nós algo de
suprema importância: fazer teatro é não fazer sozinho, é contar com uma rede
ampla de companheiras e companheiros com quem podemos trocar ação direta e
conceitos, reflexão e encenação, vida e arte no mais amplo sentido desta
relação: a que a torna inevitável para cada um/a de nós que fazemos teatro... e
pesquisa teatral.
Na segunda parte do livro, o pesquisador-dramaturgo
concentra sua reflexão sobre o trabalho prático de escrita das dramaturgias para
a rua - melhor dizendo: ruas, com “s”, no plural. Daí vem outro achado deste
estudo: ruas são diferentes, algo que o dramaturgo-pesquisador descobre quando
viaja com suas trupes pelo Brasil inteiro, desde o sul onde mora até o extremo
norte amazônico. Neste momento do livro descortinamos a diversidade cultural
brasileira em descrições de processos criativos encenados em praças, rios, becos
e vielas, o que exigiu o trabalho e o esforço do dramaturgo tanto na escritura
de sua obra quanto na dramaturgia da cena, a fim de contextualizar seja em centros
de cidades seja em rincões e confins, os mais remotos, o cenário que oferece a grande
extensão e população de nosso país continental. A dramaturgia de Márcio
Silveira dos Santos é, pois, uma dramaturgia das ruas.
Mas é também uma dramaturgia
das coisas.
Como escrevi em outro texto, a
relação entre o artista e suas coisas se dá nas fendas em que teimam em se
confundir aquilo que é humano e aquilo que é próprio das coisas,
numa dialética que necessariamente quem anima deve aceitar a sensibilidade das
coisas supostamente inanimadas, o que “transforma a sensibilidade humana no
contato com o objeto [...]. Não seria esta mais uma característica do artista
que cria objetos?”[3]
As coisas deste livro, seus objetos se misturam nas
dramaturgias das ruas: fuscas são surpreendidos por baleias e pedaços de
madeira se transfiguram em cobras. Da sua “dramaturgia mosaica e porosa” - como
a denomina de modo muito feliz o pesquisador-dramaturgo ou
dramaturgo-pesquisador -, de rios negros e imensos oceanos emergem capitães de
navios, valentes em cavalos e palhaços azuis, tão azuis como a caneta azul com
que o dramaturgo anotou e o pesquisador leu num canto de página de seu zibaldone: “Transformar
inquietudes em energias emancipatórias!”.
Talvez esta seja a sentença que impulsiona tanto o
dramaturgo quanto o pesquisador que, juntos, escreveram as páginas que se
seguem. Na solidão do pensamento individual tanto quanto na festa teatral de um
coletivo formado por muitos coletivos. Em teatros de grupos e grupos de teatros,
tudo aqui carrega as muitas folhas das dramaturgias de Márcio Silveira dos
Santos para serem recriadas nas diversas e incontáveis ruas que formam este
Brasil, adentro e afora. É isso que oferecem as próximas páginas.
Boa leitura.
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Márcio Silveira dos Santos é dramaturgo, professor/pesquisador e artista cênico há mais de 30 anos. Trabalhou com o Grupo Espalha-Fatos e o Grupo Manjericão desenvolvendo mais de 40 encenações. Doutor em Teatro (PPGT/UDESC/Bolsa CAPES-DS), Licenciado e Mestre em Artes Cênicas (PPGAC/UFRGS), Especialista em Psicopedagogia (UCB). Foi Professor colaborador na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC-Florianópolis). É articulador na Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e membro da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Escreveu os livros: Movimento Popular Escambo Livre de Rua: Se Escambo é Troca, Eu Também Quero Trocar (2021); Teatro na Comunidade: oficinas como práticas pedagógicas e socioculturais (2019); Teatro na Educação de Jovens e Adultos: um estudo sobre práticas de ensino na sala de aula (2019); Arte-Educação e Psicopedagogia - um olhar sobre o desenvolvimento da criança através da arte (2019); Um Artista de Rua faz mais que um Ministro da Cultura (2018) e Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016). Foi representante da Sociedade civil no Colegiado Setorial de Teatro no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), do Ministério da Cultura (de 2010 até 2015).
[1] Professora e pesquisadora do Curso de
Licenciatura em Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de
Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisa alegoria, espaço e
imagem no teatro e no carnaval, tendo como referência a teoria crítica de
Walter Benjamin.
[2] O autor da pesquisa que resultou neste
livro realizou-a no PPGT do CEART-UDESC, sob minha orientação.
[3] LIMA, Fátima Costa de. “Sozinho na
companhia de muitas coisas”: a relação do artista com seus objetos. Revista
Móin Móin – Estudos de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Dossiê
Visualidades p. 77-94 Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/moin/article/view/1059652595034701122014077/7836