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quinta-feira, 14 de abril de 2022

Reconstruir os afetos, refazer os laços: retomada das artes

 Adailtom Alves Teixeira[1]

O desmonte das poucas e raras políticas públicas de cultura, somado aos ataques constantes que os fazedores de arte vêm sofrendo, pelo menos desde 2016, são impressionantes. Os artistas foram eleitos inimigos públicos por uma rede de ódio, direcionada a partir do alto escalão do poder. Somado a tudo isso, uma pandemia que já dura mais de dois anos. Os artistas foram os primeiros a pararem suas atividades, sendo os últimos a retornarem, tendo que, nesse ínterim, adaptar-se às novas plataformas digitais e linguagens distintas das que praticavam. É certo que muitos/as ficaram pelo caminho, desistiram, devido a dureza da sobrevivência e os estragos ainda não sabemos por completo. Um viva a todas e todos que até aqui sobreviveram!

Estamos retomando ao presencial, mas, devido aos propagadores do ódio que estão espalhados por toda nossa sociedade, não será uma retomada fácil. Temos acompanhado casos de ofensas e de incompreensão do papel da arte em toda e qualquer sociedade. Para citar dois casos próximos e recentes, procurando interferir no fazer e na forma como as demais pessoas podem ter ou não acesso à arte, dois cidadãos ditos “de bem”, procuraram interferir, sobretudo junto às autoridades constituídas, leia-se secretários e prefeitos, no Festival Matias de Teatro de Rua, realizado no Acre pela Cia Visse Versa, em outubro de 2021 e, mais recentemente, abril de 2022, em uma apresentação do Mamulengo da Folia no interior de São Paulo. A tentativa de censura é, sobretudo, clamando por uma arte isenta; desconhecem o fato de que toda arte é política. Como afirmava Aristóteles, ninguém escapa a esta arte maior chamada política. Viver em sociedade é um ato político. No entanto, como vivemos em um país onde ainda bem poucas pessoas fruem arte e entendem quase nada do papel dos e das artistas em uma sociedade, é provável que acompanhemos muitas agressões e barbaridades nessa retomada. Precisamos avançar. Somos uma sociedade autoritária e violenta, mas precisamos ajudar a instaurar uma cultura de paz, por meio do nosso fazer artístico.

A ocupação dos espaços é tema fertilizador de uma cultura de paz, com suas rodas de conversa, caminhadas, passeatas, enfim, ações nas ruas, como elementos formadores de cidadania. Junto com isso, a valorização do diálogo e escutas em conversas públicas, e a importância das políticas públicas de Cultura de Paz nas redes culturais e nos contextos comunitários e sócio culturais de vulnerabilidade (FARIA; GARCIA; SOUZA, 2013, p. 10).

Teremos que nos desdobrar em muitas ações, ainda que estejamos em frangalhos, pois somos fundamentais na reconstrução dos afetos em nosso país. A cultura de paz pode soar contraditória em um momento histórico com tanto ódio a nos dividir, mas nos parece que este é o caminho mais assertivo a ser percorrido. A não violência deve estar em todos os nossos atos, isso não significa baixarmos a cabeça e aceitarmos os absurdos e violências, pelo contrário, nosso esforço deve ser no sentido do diálogo sempre, mesmo aqueles mais difíceis que surgirão à nossa frente. Faz-se necessário o diálogo também com outras áreas do saber, é fundamental, e nesse aspecto a educação é, sem dúvida uma das mais férteis – não à toa também negligenciada e sob ataque. Nessa retomada, todo diálogo, apoio e parcerias serão bem-vindas.

O diálogo a partir de nossas comunidades, nossos territórios, são o ponto de partida. Vamos deixar de lado a crença popular de que santo de casa não faz milagre, afinal é aí que está o nosso pertencimento. E, a partir do local, de baixo para cima, ampliarmos nossas redes. Sejamos articuladores ativos, para que as redes comecem a balançar e embalados por elas, fiquemos mais fortes. Somos importantes na virada que o Brasil precisa dar e a ação a partir de nossas comunidades, ampliando-as por meio das redes construídas e/ou fortalecidas, fará muita diferença nesse processo de mudança, que sabemos não será imediato, mas precisamos avançar. O caminho se faz no caminhar.

O diálogo que proponho nos pede um exercício de atenção constante para não mergulharmos em certo etnocentrismo, no qual venhamos a nos caracterizar como donos da verdade. O diálogo precisa ser honesto e verdadeiro. Precisamos nos abrir para o diferente, para o/a outro/a: “A nossa riqueza reside na diversidade de várias faces, que devem ser preservadas através de conflitos e conciliações, na busca de uma sociedade mais justa. É a experiência da alteridade que nos leva a nos reconhecermos uns nos outros" (GARCIA, 2013, p. 36). A arte é nosso passaporte para a conversa inicial, mas precisamos de outras ações, outras formas de diálogo: espaços de trocas e conversas, possibilidades para que o público experimente nossas linguagens artísticas e, assim, irmos nos aproximando, enquanto eles e elas compreendem mais o nosso fazer e nosso papel, para que juntas/os compreendamos e avancemos como cidadãos interessados em nosso país. O poeta e doutor em antropologia, Pedro Benjamin Garcia, citando um pensador polonês, L. Kolakowski, afirma que “a arte é um modo de perdoar a maldade e o caos do mundo”, mas perdoar não é justificar o mal ou se reconciliar com ele, mas sim, como complementa o citado pensador:

Perdoar tem outro sentido. A arte organiza as percepções com respeito ao mundo do mau e do caótico, introduzindo a compreensão da vida de maneira tal que a presença do mau e do caos se converte na possibilidade de minha iniciativa com respeito ao mundo, que leva em si, mesmo o seu próprio bem e o seu próprio mal. Para que possa ser assim, a arte deve recobrir no mundo o que sua aparência não proporciona, ou seja, o encanto secreto de sua feiura, a deformação oculta de sua graça, o ridículo de sua elevação, a pobreza do luxo e o custo da pobreza; em uma palavra: deve descobrir todas as fibras secretas sufocadas pelas qualidades empíricas e que convertem em partículas de nosso fracasso ou de nosso orgulho (L. Kolakowski apud GARCIA, 2013, p. 37).

Sejamos férteis, revelemos “a feiura que vivemos”. Vamos encher o mundo com nossa arte, ampliando nossas redes para frutificarmos ainda mais nossos diálogos e, assim, ajudarmos a superar este momento histórico tão terrível pelo qual todas e todos passamos. Se o diálogo fracassar, a violência grassará. Vamos olhar o mundo com espanto e convidar nossos semelhantes a se espantarem conosco, sem perder jamais nossa ludicidade, nossa alegria! Como nos lembra o nosso grande educador Paulo Freire, ninguém ensina sem aprender, ninguém aprende sem ensinar. Nessa ciranda maior que é a vida, vamos, então, aprender e ensinar; ensinar e aprender com o/a outro/a. Vamos conviver. Não será fácil, mas parece que a encruzilhada a que chegamos nos convida à ação. Como nos lembra outro educador, Luiz Rufino, na nota introdutória de seu Pedagogia das encruzilhadas,

A encruzilhada é a boca do mundo, é saber praticado nas margens por inúmeros seres que fazem tecnologias e poéticas de espantar a escassez abrindo caminhos. Exu, como dono da encruzilhada, é primado ético que diz acerca de tudo que existe e pode vir a ser. (...) A sua face brincante, transgressora, pregadora de peças, é o contraponto necessário a esse latifúndio de desigualdade e mentira (2019, p. 5).

Que Exu abra nossos caminhos, que toda ginga e malandragem de nossos ancestrais nos inspire e nossas artes frutifiquem em férteis diálogos afetuosos, e juntos e juntas com a população, possamos ajudar a parir um novo Brasil.

 

Bibliografia

FARIA, Hamilton; GARCIA, Pedro; SOUZA, Valmir de. Apresentação. In: FARIA, Hamilton; GARCIA, Pedro; SOUZA, Valmir de (Orgs.). Cultura viva, políticas públicas e cultura de paz. São Paulo: Instituto Pólis, 2013.

GARCIA, Pedro Benjamin. Interculturalidade e cultura de paz. In: FARIA, Hamilton; GARCIA, Pedro; SOUZA, Valmir de (Orgs.). Cultura viva, políticas públicas e cultura de paz. São Paulo: Instituto Pólis, 2013.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.



[1] É professor do Departamento Acadêmico de Artes da Universidade Federal de Rondônia (Unir) no Curso Licenciatura em Teatro; Doutorando em Artes no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); Mestre em Artes pela mesma instituição; Graduação em Licenciatura em História pela Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Ator e diretor teatral com 26 anos de experiência, dedicados sobretudo à pesquisa e à prática em teatro de rua; integrante do “Grupo de Pesquisa Práxis Épico-Populares em Perspectivas Críticas: documentação de experimentos teatrais” (CNPq) e do “PAKY`OP Laboratório de Pesquisa em Teatro e Transculturalidade: práxis, reflexões e poéticas pedagógicas”, (CNPq) no qual coordena a linha de pesquisa Memórias da Cena Amazônica. É articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; foi um dos fundadores do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo; é membro fundador do Teatro Ruante. Em 2020 publicou pela Giostri Editora o livro Teatro de Rua - identidade, território.

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