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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sextas em Movimento em Marechal IV Dia 24 de Julho

Mais uma sexta, mais um dia em que a Praça se movimenta, se ilumina. O som que sai das caixas ecoa devagar pelo ar, anunciando que estamos chegando, no tempo do amor, amor esse anunciado pelo brincante que dança, embalado pelo som das quatro estações de Vivaldi, vestido com seu maio azul, calça vermelha e mascara de palhaço, passeia pela praça, dança com os moradores, com a menina que ele ergue no ar, que abre os braços para o mundo e se sente uma bailarina do mundo, livre, bailarina livre sem sapatilha, sem a prisão das sapatilhas, assim como o senhor que dá a mão e pede “me guia na dança, sou muito cego, mas estou adorando dançar...”, e o brincante o guia para se soltar no meio da praça. O brincante dança e abre o espaço para a chegada de Karol e Vilson, desbravadores do subúrbio, guias que resgatam a memória e conversam com as pessoas para valorizarem o seu bairro, escutar sua história, conhecer suas ruas e sua arquitetura.

Guiadas Urbanas para entender o urbano subúrbio, de tradição, de cultura, de personalidades que ali nasceram, cresceram e se aventuraram pelo universo do país.

Trabalho bonito, dedicado, apaixonado, que só pode ser realizado por quem tem paixão pelo que faz, acredita. E eles chegaram puxando uma comitiva de moradores, de gente que viu a possibilidade e a beleza do bairro de Marechal Hermes. Com o microfone aberto, Dona Ana, filha de portugueses, pega o microfone e solta a voz “ pois precisamos muito disso. O bairro precisa de mais ações como essa. Sou moradora do bairro há mais de 45 anos e é muito bom conhecer jovens, pessoas dispostas a mudar o bucólico do praça. Estão de parabéns!”.

Estas palavras fortes foram o suficiente para arrastar para o centro Ligeiro, que com seus tambores e seus parceiros para fazer uma roda, uma roda de samba de raiz da raiz, um resgate dos sons primeiros do terreiro das senzalas, dos primeiros ocupantes dos morros.

 Ele conta a história e teoriza na prática, no canto e no tambor. E não é Ligeiro no nome a toa, é ligeiro no passo, na harmonia, na ginga do malandro que corteja a dama, dama que entra e entra no gingado da dança de roda, do samba primordial de roda.

Cada um que entra passa pelo tambor e pede sua licença para entrar e dançar. E entram com vontade, com graça. A roda vai enchendo, as pessoas se encantam e entram, quem queria entrar e é bem recebido, orientado, libertado, pois a dança liberta mente e corpo. E foi com essa alegria, começando com o clássico público dos grandes compositores e terminando com os grandes tambores e compositores públicos das rodas de raiz. Um bom dia com uma boa noite!


Herculano Dias

sábado, 12 de setembro de 2015

A memória das margens ou A suada resistência dos beradeiros é trazida à cena

A Beradera Companhia de Teatro, de Porto Velho, Rondônia, estreou recentemente seu segundo espetáculo: Saga Beradera. A obra, escrita e dirigida por Rodrigo Vrech, traz à tona a luta da população do distrito de Nazaré pela permanência de sua cultura e de seu território. Nazaré, apesar de pertencer ao mesmo município que a capital rondoniense, fica a cerca de 5 horas de viagem de barco, única forma de acesso à comunidade, rio Madeira abaixo.
A partir de um trio fictício: Seu Arigó (o avô), seu neto e a esposa Urbana, a dramaturgia explicita o conflito entre modos de vida distintos: os ribeirinhos e aqueles que vivem nas grandes cidades. Trata-se de um conflito intersubjetivo, mas que implica também em macro questões, incluindo a sustentabilidade socioambiental.
Parte da memória dos fundadores de Nazaré e de vários moradores da vila é sintetizada na trama em que, após a cheia histórica de 2014, Neto, nascido nas margens do Madeira, mas atual morador de São Paulo, tenta levar seu avô para a metrópole, a contragosto do mesmo.
Construída de forma fragmentada, a dramaturgia realça a dificuldade de comunicação entre os universos do concreto e da mata e entre diferentes gerações, ao mesmo tempo em que presentifica a resistência cultural na voz não apenas do morador tradicional da “velha guarda”, mas por meio das músicas e da participação em cena dos jovens do grupo Minhas Raízes, formado na comunidade.
As delicadas composições do grupo, executadas ao vivo, com a voz doce e regional de seus integrantes, dão um tom especial ao espetáculo, denotando a sensibilidade de quem vem de fora (o diretor Rodrigo Vrech e parte do elenco), mas tem a capacidade de construir as necessárias pontes entre os distintos mundos. Vale apontar que, às vezes, o volume da voz e dos instrumentos não alcança a totalidade do público, indicando a necessidade de amplificação. Os musicistas poderiam ser ainda melhor aproveitados, talvez com canções inéditas para o espetáculo ou ainda ambientação de cenas a serem umedecidas com outras músicas.
Além do aspecto musical, a encenação envolve o público por vários prismas, como a própria interpretação. O jovem elenco surpreende pela qualidade técnica e integridade em cena, ainda em processo de construção, porém, com conquistas consideráveis. O poeta e ator beradero Elizeu Braga fisicaliza suas memórias de infância em Itacoã, no Baixo Madeira, e o legado de seus antepassados, conquistando voz e corporalidade vívidas, para contar as encantadoras narrativas das margens de onde veio. Além disso, a manipulação que o ator realiza com a poronga, que se transmuta em diversos objetos e seres ao longo da história, é um belo exemplo de criatividade na lida com os elementos cenográficos.
Andressa Silva gera comicidade, nojo e identificação em sua construção da preconceituosa Urbana, que destila incapacidade de enxergar e compreender o diferente, uma postura que, infelizmente, é extremamente comum nestes tempos de ascensão do fascismo. Para não dizer que não falei das flores, pequenas passagens de texto ditas pela atriz ainda não estão condizentes com a postura que se espera da personagem paulista.


Já Cláudio Zarco, ator que vem se destacando na cena rondoniense, pela qualidade de seu trabalho interpretativo, tem um desafio com o personagem Neto, já que ele representa a inconclusa transição entre os mundos do Norte e do Sudeste. Seu trabalho, a despeito de sua interessante presença no palco, demanda ainda certos aprimoramentos de passagens específicas, especialmente nas transições de emoção e em momentos de sua relação com Urbana, dada a complexidade que Neto solicita.
A peça como um todo tem um desenho e trajetória envolventes, mais ainda carece de um meio para chegar ao fim. No entanto, o grupo, de forma legítima, vem experimentando diversas estratégias de finalização da narrativa e está ainda buscando as formas, por enquanto, dialogando com romantismo, informações históricas e narrativas cíclicas.
Ressalto que esta leitura crítica não tem a pretensão de se constituir como verdade, nem de dar conta da totalidade da obra, mas sim de ser uma apreensão específica a partir de um olhar que, como todos, é singular. Assim, encerro este texto expressando a felicidade que tive em assistir a obra já por três vezes, por se tratar de um trabalho belo, necessário e de grande potencial. Se o grupo investir na continuidade da obra e conquistar as oportunidades para tanto, ela terá grandes possibilidades de se firmar como a mais potente obra teatral nativa de Rondônia no ano de 2015 e alçar voos além das fronteiras estaduais.
                                                                   

Alexandre Falcão de Araújo, Professor de Teatro da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.