A Beradera Companhia de Teatro,
de Porto Velho, Rondônia, estreou recentemente seu segundo espetáculo: Saga Beradera. A obra, escrita e
dirigida por Rodrigo Vrech, traz à tona a luta da população do distrito de
Nazaré pela permanência de sua cultura e de seu território. Nazaré, apesar de
pertencer ao mesmo município que a capital rondoniense, fica a cerca de 5 horas
de viagem de barco, única forma de acesso à comunidade, rio Madeira abaixo.
A partir de um
trio fictício: Seu Arigó (o avô), seu neto e a esposa Urbana, a dramaturgia
explicita o conflito entre modos de vida distintos: os ribeirinhos e aqueles
que vivem nas grandes cidades. Trata-se de um conflito intersubjetivo, mas que
implica também em macro questões, incluindo a sustentabilidade socioambiental.
Parte da
memória dos fundadores de Nazaré e de vários moradores da vila é sintetizada na
trama em que, após a cheia histórica de 2014, Neto, nascido nas margens do
Madeira, mas atual morador de São Paulo, tenta levar seu avô para a metrópole,
a contragosto do mesmo.
Construída de
forma fragmentada, a dramaturgia realça a dificuldade de comunicação entre os
universos do concreto e da mata e entre diferentes gerações, ao mesmo tempo em
que presentifica a resistência cultural na voz não apenas do morador
tradicional da “velha guarda”, mas por meio das músicas e da participação em
cena dos jovens do grupo Minhas Raízes, formado na comunidade.
As delicadas
composições do grupo, executadas ao vivo, com a voz doce e regional de seus
integrantes, dão um tom especial ao espetáculo, denotando a sensibilidade de
quem vem de fora (o diretor Rodrigo Vrech e parte do elenco), mas tem a
capacidade de construir as necessárias pontes entre os distintos mundos. Vale
apontar que, às vezes, o volume da voz e dos instrumentos não alcança a totalidade
do público, indicando a necessidade de amplificação. Os musicistas poderiam ser
ainda melhor aproveitados, talvez com canções inéditas para o espetáculo ou
ainda ambientação de cenas a serem umedecidas com outras músicas.
Além do aspecto
musical, a encenação envolve o público por vários prismas, como a própria
interpretação. O jovem elenco surpreende pela qualidade técnica e integridade
em cena, ainda em processo de construção, porém, com conquistas consideráveis.
O poeta e ator beradero Elizeu Braga fisicaliza suas memórias de infância em
Itacoã, no Baixo Madeira, e o legado de seus antepassados, conquistando voz e
corporalidade vívidas, para contar as encantadoras narrativas das margens de
onde veio. Além disso, a manipulação que o ator realiza com a poronga, que se
transmuta em diversos objetos e seres ao longo da história, é um belo exemplo
de criatividade na lida com os elementos cenográficos.
Andressa Silva
gera comicidade, nojo e identificação em sua construção da preconceituosa
Urbana, que destila incapacidade de enxergar e compreender o diferente, uma
postura que, infelizmente, é extremamente comum nestes tempos de ascensão do
fascismo. Para não dizer que não falei das flores, pequenas passagens de texto
ditas pela atriz ainda não estão condizentes com a postura que se espera da
personagem paulista.
Já Cláudio
Zarco, ator que vem se destacando na cena rondoniense, pela qualidade de seu
trabalho interpretativo, tem um desafio com o personagem Neto, já que ele
representa a inconclusa transição entre os mundos do Norte e do Sudeste. Seu
trabalho, a despeito de sua interessante presença no palco, demanda ainda
certos aprimoramentos de passagens específicas, especialmente nas transições de
emoção e em momentos de sua relação com Urbana, dada a complexidade que Neto
solicita.
A peça como um
todo tem um desenho e trajetória envolventes, mais ainda carece de um meio para
chegar ao fim. No entanto, o grupo, de forma legítima, vem experimentando
diversas estratégias de finalização da narrativa e está ainda buscando as
formas, por enquanto, dialogando com romantismo, informações históricas e
narrativas cíclicas.
Ressalto que esta
leitura crítica não tem a pretensão de se constituir como verdade, nem de dar
conta da totalidade da obra, mas sim de ser uma apreensão específica a partir
de um olhar que, como todos, é singular. Assim, encerro este texto expressando
a felicidade que tive em assistir a obra já por três vezes, por se tratar de um
trabalho belo, necessário e de grande potencial. Se o grupo investir na
continuidade da obra e conquistar as oportunidades para tanto, ela terá grandes
possibilidades de se firmar como a mais potente obra teatral nativa de Rondônia
no ano de 2015 e alçar voos além das fronteiras estaduais.
Alexandre
Falcão de Araújo, Professor de Teatro da Universidade Federal de Rondônia –
UNIR.
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