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sábado, 12 de setembro de 2015

A memória das margens ou A suada resistência dos beradeiros é trazida à cena

A Beradera Companhia de Teatro, de Porto Velho, Rondônia, estreou recentemente seu segundo espetáculo: Saga Beradera. A obra, escrita e dirigida por Rodrigo Vrech, traz à tona a luta da população do distrito de Nazaré pela permanência de sua cultura e de seu território. Nazaré, apesar de pertencer ao mesmo município que a capital rondoniense, fica a cerca de 5 horas de viagem de barco, única forma de acesso à comunidade, rio Madeira abaixo.
A partir de um trio fictício: Seu Arigó (o avô), seu neto e a esposa Urbana, a dramaturgia explicita o conflito entre modos de vida distintos: os ribeirinhos e aqueles que vivem nas grandes cidades. Trata-se de um conflito intersubjetivo, mas que implica também em macro questões, incluindo a sustentabilidade socioambiental.
Parte da memória dos fundadores de Nazaré e de vários moradores da vila é sintetizada na trama em que, após a cheia histórica de 2014, Neto, nascido nas margens do Madeira, mas atual morador de São Paulo, tenta levar seu avô para a metrópole, a contragosto do mesmo.
Construída de forma fragmentada, a dramaturgia realça a dificuldade de comunicação entre os universos do concreto e da mata e entre diferentes gerações, ao mesmo tempo em que presentifica a resistência cultural na voz não apenas do morador tradicional da “velha guarda”, mas por meio das músicas e da participação em cena dos jovens do grupo Minhas Raízes, formado na comunidade.
As delicadas composições do grupo, executadas ao vivo, com a voz doce e regional de seus integrantes, dão um tom especial ao espetáculo, denotando a sensibilidade de quem vem de fora (o diretor Rodrigo Vrech e parte do elenco), mas tem a capacidade de construir as necessárias pontes entre os distintos mundos. Vale apontar que, às vezes, o volume da voz e dos instrumentos não alcança a totalidade do público, indicando a necessidade de amplificação. Os musicistas poderiam ser ainda melhor aproveitados, talvez com canções inéditas para o espetáculo ou ainda ambientação de cenas a serem umedecidas com outras músicas.
Além do aspecto musical, a encenação envolve o público por vários prismas, como a própria interpretação. O jovem elenco surpreende pela qualidade técnica e integridade em cena, ainda em processo de construção, porém, com conquistas consideráveis. O poeta e ator beradero Elizeu Braga fisicaliza suas memórias de infância em Itacoã, no Baixo Madeira, e o legado de seus antepassados, conquistando voz e corporalidade vívidas, para contar as encantadoras narrativas das margens de onde veio. Além disso, a manipulação que o ator realiza com a poronga, que se transmuta em diversos objetos e seres ao longo da história, é um belo exemplo de criatividade na lida com os elementos cenográficos.
Andressa Silva gera comicidade, nojo e identificação em sua construção da preconceituosa Urbana, que destila incapacidade de enxergar e compreender o diferente, uma postura que, infelizmente, é extremamente comum nestes tempos de ascensão do fascismo. Para não dizer que não falei das flores, pequenas passagens de texto ditas pela atriz ainda não estão condizentes com a postura que se espera da personagem paulista.


Já Cláudio Zarco, ator que vem se destacando na cena rondoniense, pela qualidade de seu trabalho interpretativo, tem um desafio com o personagem Neto, já que ele representa a inconclusa transição entre os mundos do Norte e do Sudeste. Seu trabalho, a despeito de sua interessante presença no palco, demanda ainda certos aprimoramentos de passagens específicas, especialmente nas transições de emoção e em momentos de sua relação com Urbana, dada a complexidade que Neto solicita.
A peça como um todo tem um desenho e trajetória envolventes, mais ainda carece de um meio para chegar ao fim. No entanto, o grupo, de forma legítima, vem experimentando diversas estratégias de finalização da narrativa e está ainda buscando as formas, por enquanto, dialogando com romantismo, informações históricas e narrativas cíclicas.
Ressalto que esta leitura crítica não tem a pretensão de se constituir como verdade, nem de dar conta da totalidade da obra, mas sim de ser uma apreensão específica a partir de um olhar que, como todos, é singular. Assim, encerro este texto expressando a felicidade que tive em assistir a obra já por três vezes, por se tratar de um trabalho belo, necessário e de grande potencial. Se o grupo investir na continuidade da obra e conquistar as oportunidades para tanto, ela terá grandes possibilidades de se firmar como a mais potente obra teatral nativa de Rondônia no ano de 2015 e alçar voos além das fronteiras estaduais.
                                                                   

Alexandre Falcão de Araújo, Professor de Teatro da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

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