Pensamentos em Guerras IV
Último texto de nossas colaboradoras. Pensamentos em Guerras é um exercício de reflexão sobre teatro e sociedade que tem como ponto de partida o espetáculo GUERRAS DESCONHECIDAS da Estudo de Cena.
Último texto de nossas colaboradoras. Pensamentos em Guerras é um exercício de reflexão sobre teatro e sociedade que tem como ponto de partida o espetáculo GUERRAS DESCONHECIDAS da Estudo de Cena.
O elo perdido
Partindo do princípio de que o teatro tem um papel privilegiado no resgate das lutas das classes miseráveis contra a opressão patronal banidas de nossa memória, a que se propõe a encenação de "Guerras Desconhecidas", da Companhia Estudo de Cena, acho que uma contribuição interessante e uma perspectiva a partir da qual interpretá-la, é explorar a característica desse privilégio, que é a essência não documental dessa representação, procurando, com isso, acompanhar as referências de nossa crítica literária mais radical. Nesse sentido, repare-se bem: na Guerra de Pau de Colher, de São Bonifácio, do Gatilheiro Quintino ou de Santa Dica, o que ficou soterrado e que a peça evoca não é o conteúdo explícito dos acontecimentos, que é secundário para a apreensão de um contexto social, e que, bem ou mal, suas ruínas permitem ao historiador recontar ou mesmo inferir, mas algo que não é imediatamente perceptível. Trata-se de um sentimento exato, específico de direito à terra, um sentido inequívoco de justiça social, arraigados a fatos próximos aos indivíduos, produzidos por uma conjuntura social imediata precisa, e aos quais , por isso mesmo, conferiram direção. Os quadros que apresentam sucessivamente lavradores, garimpeiros e sertanejos afrontando o poder dos dominantes e a força bruta de seus soldados e milícias nos deixam adivinhar uma compreensão desassombrada da realidade a que não estamos habituados e que é possibilitada por um contexto social arcaico, específico, "pré-moderno", e, por isso, anacrônico, como ainda ocorre nas regiões "atrasadas" do país, onde a arbitrariedade do mando, a alternativa de formas autossuficentes de sobrevivência, a constelação de interesses em conflito surgem inteiramente evidentes a um só tempo. Esta experiência se perde quando a impessoalidade do poder e a gestão institucional de todas as formas de vida das pessoas, do trabalho à família, sem falar no próprio "ócio", tornam tão distante e flexível a ideia de oposição ao sistema que ela se presta praticamente a qualquer uso e a nenhum. Efeito dessa desmobilização é o desfecho conformista em que vamos encontrar a família de sobreviventes da Guerra de São Bonifácio (1987), em contraste com as cenas da rebelião que a personagem de Juliana Liegel melancolicamente rememora.
Afinal, a energia elétrica chegara ao vilarejo da família, que também já adquirira, em longuíssimas prestações, uma magnífica TV tela plana, e, para arrematar o quietismo, aos domingos, a igreja encarregou-se de congregar e entreter os moradores de São Bonifácio. Ao mesmo tempo em que a memória da intervenção social, a transmissão da experiência, foi silenciada, junto com as mortes que custaram, ao país, a modernização capitalista – que, geograficamente, como se vê, jamais se completou –, as próprias condições daquela intervenção foram suspensas, aconselhando à "acomodação à vida", como faz a família de ex-garimpeiros de Serra Pelada. Enquanto se extirpa a herança política da luta espontânea dos oprimidos, que a partir da intensificação da industrialização, por volta da metade do séc. XX, será cada vez mais desfavorecida, as contradições da moderna ordem social são relativizadas em nome das promessas do progresso que, no caso do Brasil, denominavam-se "desenvolvimento", e foram contraditoriamente encampadas mesmo pelos defensores do socialismo. Esse progressismo dependeu em boa parte do descabido nacionalismo ufanista que a pantomima grotesca de abertura da peça espicaça, ao fazer os brasileiros serem cagados por uma mãe pátria antropófoga (Juliana Liegel). A força da pilhéria se acentua mais quando lembramos que a sociedade nacional, a "nação", teve uma origem completamente artificial, que foi oferecer suporte para a manutenção do território brasileiro como entreposto comercial de Portugal. Assim, em contrapartida ao obscurecimento do vínculo das ideias com a ordem social, temos o fomento da abstração pela apologética dos ideais modernos. A ilusão desenvolvimentista persistiu, ainda que desmentida pela aliança da burguesia nacional com o imperialismo, trazida à luz com o golpe militar (e civil) de 1964, até poucas décadas atrás, quando a terceira revolução industrial condenou definitivamente o país ao "atraso". Então, um capitalismo inequivocamente vitorioso, dispensando as antigas promessas autolegitimadoras, trouxe à tona o perverso efeito ideológico de tanta abstração: a inversão indiscriminada de todos os valores emancipatórios e a promoção de um gigantesco retrocesso de direitos, paradoxalmente sob o mesmo antigo rótulo de avanço social; no topo, nada menos que a sacralização da liberdade do mercado e a conversão da liberdade do indivíduo em ameaça. Poderíamos dizer que o capital presenteou a cultura da civilização burguesa... com um Cavalo de Troia! Esta é a natureza ideológica do monumental esquecimento que nos separa das anacrônicas batalhas nos rincões brasileiros pré-modernos, onde a ideia de justiça, articulada à realidade material, ainda não se reduziu a uma abstração indefinidamente maleável. Com isso, o resgate das memórias apagadas acaba por conduzir a um ponto nevrálgico: representar experiências efetivas do passado a partir de um presente povoado de fraseologias. Nessas circunstâncias, a encenação se encontra entre a abstração quase inevitável e o ponto de fuga que é a sua fidelidade ao seu próprio vínculo com o presente, momento em que reevoca a investida ancestral contra o poder dominante ancorada na realidade material. Esse dilaceramento é precisamente o impasse formulado pela impressionante personagem de Nei Gomes, cujas características, ao mesmo tempo, fazem dela essa espécie de elo perdido entre o presente e o passado. Em transe, o patético "Canarinho" anuncia a seguinte visão:
"– Olha essa tempestade que tá partindo prá cima da gente!..."
"– Ocês tão ouvindo esse eco de voz que já ficou mudo?
" – Cês tão sentindo esse ar que já foi respirado? Essas ruínas que tão crescendo até o céu?..."
"Eu lembro da Guerra de Pau de Colher como se fosse um relâmpago na minha cabeça!"
Evocando o anjo da História, de Walter Benjamin, a representação de Nei Gomes personifica a suspensão temporal apontada por "Guerras Desconhecidas". Canarinho enxerga, aterrorizado, como o "Angelus Novus", de Paul Klee, as ruínas que são o nosso presente, da qual ele mesmo é testemunho. Ele, que é a personagem mais descentrada da peça é também o elo mais forte com o passado porque o seu vazio reflete o presente, a abstração da realidade derivada da impossibilidade de atuação social, e o seu terror, emblematicamente falando, constitui um sentimento efetivamente vinculado à conjuntura que nos concerne. O terror desmente a concepção salvífica da história, a confiança no final feliz, que é um elemento da apologética dominante, e nos devolve ao ponto mais forte da resistência ao sistema, que é o mais próximo da realidade, por pior que esta seja. Recuperemos, então, um pouco do que é relatado sobre a personagem.
Canarinho retrata um empregado, ou talvez agregado, alcoólatra, perseguido pelas lembranças do sangrento ataque militar que deu fim ao povoado em que vivia: as últimas impressões junto à mãe quase morta; o odor fétido a exalar de um buraco em que jazia o corpo de um soldado; a arrepiante imagem das mulheres do vilarejo, abrindo lençóis contra os fuzis para impedir a mira dos atiradores... Ainda muito pequeno, em 1937, como outras crianças sobreviventes do massacre de Pau de Colher, na Bahia, foi levado pela polícia assassina até o município de Casa Nova, na divisa do Piauí, e, quase como um escravo, deixado aos cuidados de um grande proprietário. Seguindo essa impiedosa sina, as narrativas vivas que brotam de seu delírio também lhe são subtraídas por Romão, representado por Marilza Batista, o amigo espertalhão, cuja camaradagem escarninha não parece deixá-lo de todo indiferente à desgraça do órfão do arraial, a quem presenteia com um relicário do campo de batalha de seus pais. Braço forte do proprietário (Roberto Kroupa), ele transforma a poética do bêbado nas letras das músicas horríveis que compõem o show de inauguração do novo mercado do patrão, seguindo o atualíssimo padrão do lixo cultural, e por aí também ficamos informados que a "modernização", enfim, chegara ao modo de vida sertanejo. Para arrematar, acrescentemos que é o próprio Canarinho quem diz ter sido "salvo" por um soldado. Nisto, aliás, já pouco importa que acredite ou não, porque sua fragilidade bem mostra que é ele ao mesmo tempo a última testemunha e o primeiro borrão na lembrança do sentido concreto de justiça, outrora bem enraízado em Pau de Colher.
Entretanto, essa interpretação, aparentemente, contradiz outro momento forte da peça, quando Marilza Batista declama um poema de Aimé Césaire, um dos expoentes do Surrealismo. Uma impassível afirmação da superioridade dos valores humanos acima de toda dominação e vilania, por mais que tenha perdurado até aqui. Evidentemente, não se trata de fazer uma leitura ao pé da letra, nem do contrassenso de pôr em questão uma poética consagrada. Ainda assim, considerando o contexto da peça, talvez mais interessante que se entregar à força desses poderosos versos, seria deter-se antes que a nossa ancestral sede de justiça possa festejar valores que, quanto mais imprescindíveis, mais intransigentemente devemos impedir que a falsa garantia de sua realização sirva de escudo à própria ordem que os condena. Por essa razão, é que a voz fraca e o pensamento não linear de Canarinho parecem insistir em ficar com a última palavra em "Guerras Desconhecidas", nos devolvendo intransigentemente às ruínas do presente para escutá-las.
Cristina Daniels,
filósofa formada pela Universidade de São Paulo.
São Paulo, 14 dez. 2015