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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Pensamentos em Guerras III


PENSAMENTOS EM GUERRAS III
 
            Com a intenção de aprofundar o pensamento crítico sobre os trabalhos da Estudo de Cena e contribuir com a formação de seus/suas integrantes e do público, a Estudo de Cena convidou pesquisadoras e artistas, que tem interesse na relação entre arte e realidade latino americana, para escrever reflexões a partir do espetáculo GUERRAS DESCONHECIDAS.

Confiram o terceiro texto da série escrito pela cientista social e educadora Jade Percassi.

Pensamentos em Guerras na Batalha das Ideias


"Tão longa a história das perdas que é preciso que faça sentido."

(trecho de A Farsa da Justiça Burguesa)


Porque a História não começa onde a gente começa é que é preciso reconhecer a importância e a beleza destes Pensamentos em Guerras.

Partindo de um projeto mais amplo, "Barricadas", a ideia da intervenção (ou deveria se chamar peça de Agitação?) Guerras Desconhecidas encontrava-se inscrita na noção de arte contra-hegemônica, que, segundo o pensamento de Gramsci, considera que contribuir para romper com as relações de hegemonia vigentes e com um modo de pensar unificado, na formação de uma nova concepção de mundo por meio da qual se fará uma nova leitura da história e da herança cultural da humanidade, faz parte da tarefa revolucionária. E para cumprir com tal tarefa, como é sabido, não basta avermelhar o discurso.

Daí que reconhecemos, em cena, desalienadamente, dezenas de pistas que demonstram serem os atos desta peça frutos de intensa pesquisa – teórica, sobre os processos históricos de luta e resistência de trabalhadores e trabalhadoras, conforme declara a própria Companhia – mas também, e principalmente, do aprofundamento dos estudos de linguagem, que intensificados no último período através da realização dos seminários Teatro de todos os dias e Diversões Populares – agregaram elementos do teatro de feira, circo, teatro de rua, estátuas vivas, mamulengos, malhação de judas, cortejos, entre outros, expressões populares carregadas de força e beleza, insistentemente desqualificadas ou invisibilizadas pela dita "alta" cultura.


                                                               

Ainda sobre os sinais visíveis do processo de construção, tal como um canteiro de obras não desmontado, percebemos a riqueza da interação entre os pares – a contribuição, intencionalizada ou não, de integrantes de grupos de teatro aliados dentro dessa perspectiva de uma arte política e politizada, e que vão contribuindo nessa interação e fricção de linguagens e criações, para um repertório crescente de um modo de fazer teatro que se reconhece entre os diferentes. Apontaria, nesse sentido, traços de diálogos da trupe com Latão, Antropofágica, Estável, Brava, Engenho, Dolores, Kiwi, Buraco d'Oráculo – para ficar em alguns. Mas também, e não menos importante, do diálogo interrompido com uma tradição da militância teatral empreendida durante os anos que antecederam a ditadura civil- militar, dando continuidade a experimentações ousadas, ancoradas no princípio da indissociação entre técnica e política.

Na proposição de uma arte política contra-hegemônica se faz necessária a relação entre teoria e prática na produção do conhecimento, o desenvolvimento de ações e reflexões que possibilitem a formação de uma nova concepção de mundo por parte dos atuadores e atuadoras, cuja concreticidade se verifique na força da encenação. Nesse sentido, faz-se presente a participação política na formação dos integrantes da companhia, e isto se reflete na criação estética – desde o montar e desmontar a Barraca tendo o trabalho coletivo como princípio político-pedagógico, até referências possíveis devido à participação em espaços de luta e de debates junto aos movimentos sociais, como é o caso do diálogo com o MST e a Escola Nacional Florestan Fernandes (a instalação "mística" do encerramento figura como exemplo mais emblemático).


                                                           

Quando a Estudo de Cena começou a traçar sua rota de Barricadas, pretendia resgatar episódios de resistência popular pouco divulgados, e através destes, oferecer experiências simbólicas diversas para o imaginário do público. E eu digo, humildemente, que o que se alcançou foi muito além. Emprestando de Iná Camargo a tese sobre os sismógrafos - for­mas artísticas são conteúdo histórico sedimentado e, quando uma obra explicita a necessidade de superação de alguma con­venção vigente, ela está registrando, como um sismógrafo, aba­los havidos na sociedade. Podemos assumir que Guerras Desconhecidas, além de barricada, compõe um conjunto atual desses sismógrafos. Mas além disso, Guerras Desconhecidas contribui para criar espaços coletivos não-convencionais que nos permitem refletir e criticar as contradições que perpassam o cotidiano - passo fundamental na luta pela participação efetiva e consciente de homens e mulheres comprometidos com a transformação social.

Aos trabalhadores e trabalhadoras, fica o ensinamento histórico do não–conformismo – que só rezar não basta. E aos poderosos, fica o recado: quem não pode com as formigas, não assanhe o formigueiro...

Jade Percassi
Cientista social e educadora formada pela Universidade de São Paulo; é militante do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.

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