PENSAMENTOS EM  GUERRAS III
     
                                                Com  a intenção de aprofundar o pensamento crítico sobre os trabalhos da Estudo de Cena e contribuir com a formação  de seus/suas integrantes e do público, a Estudo de Cena convidou pesquisadoras e  artistas, que tem interesse na relação entre arte e realidade latino americana,  para escrever reflexões a partir do espetáculo GUERRAS DESCONHECIDAS. 
    
Confiram o terceiro texto da série escrito pela cientista social e educadora Jade Percassi.
Pensamentos em  Guerras na Batalha das Ideias
"Tão longa a história das perdas que é preciso que faça sentido."
    
(trecho de A Farsa da Justiça Burguesa)
Porque a História não começa onde a gente  começa é que é preciso reconhecer a importância e a beleza destes Pensamentos  em Guerras. 
Partindo de um projeto mais amplo, "Barricadas",  a ideia da intervenção (ou deveria se chamar peça de Agitação?) Guerras  Desconhecidas encontrava-se inscrita na noção de arte contra-hegemônica, que,  segundo o pensamento de Gramsci, considera que contribuir para romper com as  relações de hegemonia vigentes e com um modo de pensar unificado, na formação  de uma nova concepção de mundo por meio da qual se fará uma nova leitura da  história e da herança cultural da humanidade, faz parte da tarefa  revolucionária. E para cumprir com tal tarefa, como é sabido, não basta  avermelhar o discurso.
Daí que reconhecemos, em cena,  desalienadamente, dezenas de pistas que demonstram serem os atos desta peça frutos  de intensa pesquisa – teórica, sobre os processos históricos de luta e  resistência de trabalhadores e trabalhadoras, conforme declara a própria  Companhia – mas também, e principalmente, do aprofundamento dos estudos de  linguagem, que intensificados no último período através da realização dos seminários  Teatro de todos os dias e Diversões Populares – agregaram elementos do teatro  de feira, circo, teatro de rua, estátuas vivas, mamulengos, malhação de judas, cortejos,  entre outros, expressões populares carregadas de força e beleza, insistentemente  desqualificadas ou invisibilizadas pela dita "alta" cultura. 
Ainda sobre os sinais visíveis do processo  de construção, tal como um canteiro de obras não desmontado, percebemos a  riqueza da interação entre os pares – a contribuição, intencionalizada ou não,  de integrantes de grupos de teatro aliados dentro dessa perspectiva de uma arte  política e politizada, e que vão contribuindo nessa interação e fricção de  linguagens e criações, para um repertório crescente de um modo de fazer teatro  que se reconhece entre os diferentes. Apontaria, nesse sentido, traços de  diálogos da trupe com Latão, Antropofágica, Estável, Brava, Engenho, Dolores,  Kiwi, Buraco d'Oráculo – para ficar em alguns. Mas também, e não menos  importante, do diálogo interrompido com uma tradição da militância teatral  empreendida durante os anos que antecederam a ditadura civil- militar, dando  continuidade a experimentações ousadas, ancoradas no princípio da indissociação  entre técnica e política. 
Na proposição de uma arte política  contra-hegemônica se faz necessária a relação entre teoria e prática na  produção do conhecimento, o desenvolvimento de ações e reflexões que  possibilitem a formação de uma nova concepção de mundo por parte dos atuadores  e atuadoras, cuja concreticidade se verifique na força da encenação. Nesse  sentido, faz-se presente a participação política na formação dos integrantes da  companhia, e isto se reflete na criação estética – desde o montar e desmontar a  Barraca tendo o trabalho coletivo como princípio político-pedagógico, até referências  possíveis devido à participação em espaços de luta e de debates junto aos  movimentos sociais, como é o caso do diálogo com o MST e a Escola Nacional  Florestan Fernandes (a instalação "mística" do encerramento figura como exemplo  mais emblemático).
Quando a Estudo de Cena começou a traçar  sua rota de Barricadas, pretendia resgatar episódios de resistência popular  pouco divulgados, e através destes, oferecer experiências simbólicas diversas  para o imaginário do público. E eu digo, humildemente, que o que se alcançou  foi muito além. Emprestando de Iná Camargo a tese sobre os sismógrafos - formas artísticas são conteúdo  histórico sedimentado e, quando uma obra explicita a necessidade de superação de alguma  convenção vigente,  ela está registrando, como um sismógrafo, abalos havidos na sociedade. Podemos assumir que Guerras  Desconhecidas, além de barricada, compõe um conjunto atual desses sismógrafos.  Mas além disso, Guerras Desconhecidas contribui para criar espaços coletivos  não-convencionais que nos permitem refletir e criticar as contradições que  perpassam o cotidiano - passo fundamental na luta pela participação efetiva e  consciente de homens e mulheres comprometidos com a transformação social. 
Aos trabalhadores e trabalhadoras, fica o  ensinamento histórico do não–conformismo – que só rezar não basta. E aos  poderosos, fica o recado: quem não pode com as formigas, não assanhe o  formigueiro...
Jade Percassi
Cientista social e educadora formada pela Universidade de São Paulo; é militante do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
Cientista social e educadora formada pela Universidade de São Paulo; é militante do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.


 
 
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