Profa. Dra. Michelle Cabral (UFMA)
O livro de Márcio
Silveira nos instiga desde o título. Extraído da dramaturgia cenográfica de um
dos espetáculos que dão materialidade a estas páginas a frase é o desabafo de
um “João ninguém”, um “pé de chinelo”, que resume numa única frase toda a
revolta de uma cultura que resiste e persiste. Além de provocador e convidativo
o livro nos leva a relacionar em nossa leitura, o teatro, a rua e a política,
trilhas pelas quais nosso autor (assim como o teatro de rua) caminha – muitas
vezes o percurso é íngreme e provoca alguns tropeços, em outros, planos e sem
pedras, por onde podemos caminhar seguros – nos conduzindo por diferentes
poéticas, o autor nos apresenta um panorama amplo, rico, diverso e
multifacetado, que compõe, impõe e transpõe o nosso teatro de rua brasileiro.
Seria talvez
redundância falar da importância desta obra para o teatro de rua, pois está
dada a relevância de publicações na área que venham a contribuir com o
entendimento e a difusão desta arte tão específica e singular, que toma a
cidade e a possui, fecundando os espaços de poesia. Contudo, o livro de Márcio
Silveira traz consigo também outros méritos: combina de forma harmoniosa a fala
do acadêmico/pesquisador com a do artista de rua. Ator, diretor e dramaturgo,
com anos de experiência tanto no “papel” de espectador, quanto de
criador/praticante do teatro de rua. Essa combinação, que em outros tempos
(velhos tempos) poderia parecer antagônica, hoje é fundamental para que
entendamos que não há teoria sem prática, nem prática sem teoria. Assim,
dividido em duas partes o livro faz uma cartografia estética/política do teatro
de rua no Brasil.
Na primeira parte do
livro, o autor transita por processos criativos de diferentes grupos de teatro
de rua, como também, compartilha experiências como oficinas e circulações por
cidades geralmente alijadas de seu direito a cultura. Em sua escrita, nos deparamos
com artigos que analisam em profundidade diferentes procedimentos da criação
artística em teatro de rua, e as relações sociais e políticas que o implicam.
Dessas reflexões emerge a máscara: herança poética desenhada em nossa “pele
humana e mística” desde os primórdios de nossa existência. Por meio do estudo da máscara e a utilização
de seus recursos, o pesquisador evidencia a fala do ator/criador e seus
procedimentos de atuação e encenação. Nesta trajetória, traz luz à própria
gênese do teatro de rua porto-alegrense e sua atual configuração.
Corpo, controle,
codificação e liberdade se confrontam em descobertas que só são possíveis no
âmbito das Artes Cênicas, ou seja, nas relações humanas mediadas pela arte que,
implica o corpo tornando-o dócil e disciplinado, mas, ao mesmo tempo, permite a
(sub) versão, a (in) docilidade: a máscara esconde e revela; fixa e liberta.
Ao compartilhar suas
experiências na região Norte do Brasil, o autor nos aproxima do sentido
primeiro do teatro: o encontro com o espectador. Um teatro que rompe
fronteiras, distâncias e diferenças culturais para instaurar um acontecimento.
Este acontecimento espetacular que é ao mesmo tempo estético, político e
social. Neste encontro nos rincões do Brasil, entre “estradas” de rios e olhos
surpresos, o jogo se instaura, a interatividade flui e, assim, o teatro renasce
nos braços da comunidade.
Ainda nesta primeira
parte do livro, um Dom Quixote desvairado corta a cidade em seu delírio urbano.
Um universo deslizante se instaura criando uma outra espacialidade. Ator,
objeto e cidade se fundem na rua, fazendo emergir um outro lugar de
compartilhamento e coletividade. Por fim, cultura e políticas públicas às
vésperas da Copa suscitam reflexões sobre o papel social do artista e da arte
de rua enquanto arte pública.
Na segunda parte do
livro, Marcio Silveira inicia “pedindo passagem” para o teatro de rua. Nos
presenteia com uma série de textos sobre artistas, espetáculos e grupos de
teatro de rua distintos. Sua escrita leve e direta, num diálogo aberto e franco
não tem a intenção de fazer uma “crítica” do artista ou, da obra teatral, tal
como a entendemos enquanto comentário especializado, está mais para uma crônica
do acontecimento teatral. É antes, o olhar de um artista e pesquisador
empenhado em difundir e compartilhar o que vê passar diante dos olhos, as
impressões, sensações e, sobretudo, as experiências. E é assim, pelos olhos e
palavras do autor que conhecemos o “Homem que queria explodir o Senado”, entendemos
que o mundo não é imutável e talvez, também tenhamos vontade de colocar nosso
Bloco de Carnaval para percorrer as ruas da Cidade Baixa, quem sabe?
Também neste segundo
momento, entramos em contato com figuras incríveis que fazem parte da arte e da
cultura da rua. Por meio de sua escrita, passamos a conhecer um pouco do
discurso, das lutas e da produção teatral dos grupos que fazem o teatro de rua
de Porto Alegre, como também, a resistência guerreira de grupos e artistas da
região amazônica com quem nosso escritor fez importantes e memoráveis trocas.
Veremos ainda, um espetáculo que grita contra a barbárie na personificação de
uma Medeia brasileira plena em sua indignação. Em outro espetáculo, Dona
Coisinha, com suas quinquilharias, trapos e farrapos nos mostrará como a
comicidade e a ironia desmascaram a exploração e a violência contra a
mulher. E, na narrativa minuciosa do
autor sobre o 3º Encontro de Mamulengo em São Paulo, encontramos toda a
diversidade de uma cultura genuinamente brasileira. Como se não bastasse, uma
palhaça rasga nosso coração em meio à praça, fazendo rir e chorar, mas,
sobretudo, fazendo sentido. Próximo do final, na análise do espetáculo “Meu
nome é Zé”, de um grupo do Movimento Escambo, do Nordeste, o autor descreve a
força política da dramaturgia, da palavra e da tribuna popular que é a praça, a
rua... os espaços onde o povo está.
Como se não bastasse
toda essa riqueza, o autor fecha a segunda parte do livro com a cena lúdica e
potente do Circo Minimal mostrando que todo o mundo é um circo, basta apenas
aprender a olhar.
Márcio Silveira, como a
maioria dos bons escritores, é sem dúvida uma grande biblioteca viva. Seu livro
é um importante registro do teatro de rua, de artistas populares, eventos e acontecimentos
culturais e políticos, personagens singulares que compõe o vasto campo da
cultura popular. Traz nas entrelinhas das análises aqui empreendidas, muita
informação sobre fatos e pessoas que fizeram e fazem o teatro popular, político
e de rua no Brasil. Sua escrita vai interessar não apenas aos artistas e
pesquisadores de teatro de rua, mas também, historiadores e cientistas
políticos e sociais, que entendem que a arte nunca será desassociada da vida,
pelo contrário, é na vida plena de experiências que a arte teatral vai gerar
seus melhores roteiros, suas mais contundentes tramas, fazendo dessa relação
simbiótica sua força e materialidade.
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