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domingo, 6 de janeiro de 2019

Festival Matias de Teatro de Rua 2018 – dois momentos


Adailtom Alves Teixeira[1]

A quarta edição do Festival Matias, apesar de todas as turbulências no campo da cultura que ocorreram no país, afirmou sua importância para a Região Norte e para o teatro de rua de todo o Brasil. Realizado pelo Cia Visse-Versa, com apoio do poder público e do Sesc, o Festival teve representação das cinco regiões brasileira. Ocorreu de 21 a 26 de agosto de 2018 em quatro cidades: Rio Branco, Bujari, Plácido de Castro e Senador Guiomard. Foram onze espetáculos, 25 apresentações, oficinas e rodas de conversas. Os números por si só demonstram a grandiosidade, mas quero destacar dois pontos, focados mais no momento político em que vivemos no Brasil: uma conversa com o homenageado Humberto Lopes e o encontro de articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), visando analisar o momento histórico atual.

Humberto Lopes é o criador do grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar, de João Pessoa/PB. A história do homem de teatro e do coletivo se confundem, já que o grupo tem 31 anos de existência e o diretor já atua a 35 anos na área. Marcado por uma experiência anterior do Grupo de Teatro Experimental, que montou o texto de Brecht, A Exceção e a Regra e por assistir o grupo de teatro de rua, Imbuaça, de Sergipe, em um festival em Campina Grande/PB, e também embalado pela politização que se vivia no Brasil dos anos 1980, Humberto cria, a partir de uma oficina em uma escola, o grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar.

Humberto destaca que a função do teatro “é tocar o coração das pessoas” e ir onde não há teatro. Embora o teatro “não muda nada”, pode mudar as pessoas, para que elas mudem a realidade. Então, em sua concepção, o teatro deve construir afetos. Quando se está imbuído desses pressupostos, se faz o teatro, seja pago para isso ou não, tenha amparo do poder público ou não.

O grupo participou do Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo (MBTG), uma tentativa de organização teatral nacional ainda nos anos 1990. A história do MBTG é ainda pouco debatida e pouco conhecida entre nós. Para Humberto, “são muitos grupos de teatro, mas pouco teatro de grupo”. Essa  forma de organização para trabalhar e criar é fundamental hoje no teatro brasileiro e para o Quem Tem Boca, no grupo, as diferenças devem unir, não separar, afinal o teatro é a questão maior.

No processo de criação do grupo, Humberto destaca alguns elementos, como o anti-herói, que ele reputa como fundamental no teatro nordestino. Aqui lembramos do saudoso Ariano Suassuna, quando ele dizia que “a arma do amarelo é a esperteza”. O que se coaduna com a ideia do anti-herói apresentado por Humberto, já que personagens como Pedro Malasartes, Cancão de Fogo, João Grilo, entre outros, fazem parte do imaginário popular nordestino e em que a esperteza é o que prevalece na luta pela sobrevivência.

Outro elemento influenciador é o circo, a música – Humberto destaca que cada ator deve tocar, ao menos, um instrumento cada – e, evidentemente, a própria cultura popular, base para o treinamento dos atores. Brincadeiras como o coco, o cavalo marinho, o maracatu, são utilizados no treinamento e na expressividade do Quem Tem Boca é Pra Gritar. Uma oficina de cavalo marinho foi ministrada pelos integrantes aos participantes do Festival.

Uma clara preocupação em toda a fala do Humberto Lopes foi o momento político pelo qual estamos passando no país. No seu questionamento: “Como vamos atacar o problema do Brasil hoje?”. Ou seja, como vamos resistir, como vamos expressar em nosso teatro a realidade brasileira de hoje? Como vamos reorganizar os afetos? Muitas questões para debatermos, refletirmos e, principalmente, para agirmos. Todo artista deve pensar e buscar algumas respostas, afinal o horizonte que está a nossa frente é bem difícil.

Outro momento importante dentro do Festival foi o encontro de articuladores da RBTR, prática que andava um pouco esquecida e que o idealizador do Festival, Lenine Alencar, ao abrir a conversa fez questão de lembrar, que “todo festival ou evento que os articuladores participavam, sempre encontravam formas e momento para conversar”. Na conversa participaram articuladores dos estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Paraíba, Pernambuco, Distrito Federal, São Paulo e Paraná.

Lenine frisa que o momento histórico pede muita reflexão, muita articulação e luta, afinal muitas pessoas tem parado de “fazer teatro pra fazer outra coisa para sobreviver”. Em sua avalição, estivemos muito preso às políticas públicas na última década, todas políticas de governo e não de Estado. Mais uma vez o teatro de grupo é lembrado como uma possibilidade de seguir fazendo. Não há muito saída fora dos coletivos, para continuar pensando, criando, o grupo se coloca como alternativa.

Lenine frisa que o Festival Matias terá continuidade, mas é fundamental, sobretudo na Região Norte, a retomada do Festival Amazônia Encena na Rua, de Porto Velho/RO, como forma de um fortalecer o outro, além de não deixar esse corredor morrer. Para quem não é do Norte, talvez não saiba, mas essas são as duas capitais mais próximas na Região, Rio Branco e Porto Velho.

Na conversa foi lembrado que ainda somos o único movimento nacional do seguimento teatral e foi destacado a importância do próximo encontro em Salvador/BA, em março de 2019, como forma de retomar os encontros e fortalecer a RBTR. Nós, como movimento não “esfriamos”, mas o Brasil entrou em um processo político delicado e nos afetou. Outro ponto falado foi que paramos de disputar o Estado e agora precisamos lutar para não desaparecermos. Talvez, para não pararmos de nos encontrarmos, os encontros precisem serem anual, e não a cada semestre, como vem sendo desde a fundação da Rede.

Todos os presentes demonstraram grande preocupação, bem como plena consciência do momento político que se vive, não temos mais condição ideal – se é que um dia tivemos. Parte da luta agora é para não perder, onde ainda há, espaços conquistados e voltar a disputá-los, ocupá-los, como os Conselhos de Cultura, Setoriais etc., pois a direita também está se organizando para ocupar esses espaços, como foi relatado por um articulador, que o MBL do Paraná está disputando esses espaços de representação política.

Além disso, pensar o país, o que se entende por política e praticá-la, produzir nossa memória, como livros e outras formas de comunicar quem somos à sociedade e nós mesmos, enfim, disputar os rumos que tomam o Brasil. Na sequência passou-se aos relatos de como cada lugar está, a constatação não poderia ser diferente: precariedade da condição artística, perseguições, polarização e fragmentação social por todo o país.



[1] Professor no Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua; integrante do Teatro Ruante.

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