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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Um retrato do teatro de rua brasileiro pelo olhar de um teatreiro


Profa. Dra. Michelle Cabral (UFMA)

O livro de Márcio Silveira nos instiga desde o título. Extraído da dramaturgia cenográfica de um dos espetáculos que dão materialidade a estas páginas a frase é o desabafo de um “João ninguém”, um “pé de chinelo”, que resume numa única frase toda a revolta de uma cultura que resiste e persiste. Além de provocador e convidativo o livro nos leva a relacionar em nossa leitura, o teatro, a rua e a política, trilhas pelas quais nosso autor (assim como o teatro de rua) caminha – muitas vezes o percurso é íngreme e provoca alguns tropeços, em outros, planos e sem pedras, por onde podemos caminhar seguros – nos conduzindo por diferentes poéticas, o autor nos apresenta um panorama amplo, rico, diverso e multifacetado, que compõe, impõe e transpõe o nosso teatro de rua brasileiro.
Seria talvez redundância falar da importância desta obra para o teatro de rua, pois está dada a relevância de publicações na área que venham a contribuir com o entendimento e a difusão desta arte tão específica e singular, que toma a cidade e a possui, fecundando os espaços de poesia. Contudo, o livro de Márcio Silveira traz consigo também outros méritos: combina de forma harmoniosa a fala do acadêmico/pesquisador com a do artista de rua. Ator, diretor e dramaturgo, com anos de experiência tanto no “papel” de espectador, quanto de criador/praticante do teatro de rua. Essa combinação, que em outros tempos (velhos tempos) poderia parecer antagônica, hoje é fundamental para que entendamos que não há teoria sem prática, nem prática sem teoria. Assim, dividido em duas partes o livro faz uma cartografia estética/política do teatro de rua no Brasil.
Na primeira parte do livro, o autor transita por processos criativos de diferentes grupos de teatro de rua, como também, compartilha experiências como oficinas e circulações por cidades geralmente alijadas de seu direito a cultura. Em sua escrita, nos deparamos com artigos que analisam em profundidade diferentes procedimentos da criação artística em teatro de rua, e as relações sociais e políticas que o implicam. Dessas reflexões emerge a máscara: herança poética desenhada em nossa “pele humana e mística” desde os primórdios de nossa existência.  Por meio do estudo da máscara e a utilização de seus recursos, o pesquisador evidencia a fala do ator/criador e seus procedimentos de atuação e encenação. Nesta trajetória, traz luz à própria gênese do teatro de rua porto-alegrense e sua atual configuração.
Corpo, controle, codificação e liberdade se confrontam em descobertas que só são possíveis no âmbito das Artes Cênicas, ou seja, nas relações humanas mediadas pela arte que, implica o corpo tornando-o dócil e disciplinado, mas, ao mesmo tempo, permite a (sub) versão, a (in) docilidade: a máscara esconde e revela; fixa e liberta.
Ao compartilhar suas experiências na região Norte do Brasil, o autor nos aproxima do sentido primeiro do teatro: o encontro com o espectador. Um teatro que rompe fronteiras, distâncias e diferenças culturais para instaurar um acontecimento. Este acontecimento espetacular que é ao mesmo tempo estético, político e social. Neste encontro nos rincões do Brasil, entre “estradas” de rios e olhos surpresos, o jogo se instaura, a interatividade flui e, assim, o teatro renasce nos braços da comunidade.
Ainda nesta primeira parte do livro, um Dom Quixote desvairado corta a cidade em seu delírio urbano. Um universo deslizante se instaura criando uma outra espacialidade. Ator, objeto e cidade se fundem na rua, fazendo emergir um outro lugar de compartilhamento e coletividade. Por fim, cultura e políticas públicas às vésperas da Copa suscitam reflexões sobre o papel social do artista e da arte de rua enquanto arte pública.
Na segunda parte do livro, Marcio Silveira inicia “pedindo passagem” para o teatro de rua. Nos presenteia com uma série de textos sobre artistas, espetáculos e grupos de teatro de rua distintos. Sua escrita leve e direta, num diálogo aberto e franco não tem a intenção de fazer uma “crítica” do artista ou, da obra teatral, tal como a entendemos enquanto comentário especializado, está mais para uma crônica do acontecimento teatral. É antes, o olhar de um artista e pesquisador empenhado em difundir e compartilhar o que vê passar diante dos olhos, as impressões, sensações e, sobretudo, as experiências. E é assim, pelos olhos e palavras do autor que conhecemos o “Homem que queria explodir o Senado”, entendemos que o mundo não é imutável e talvez, também tenhamos vontade de colocar nosso Bloco de Carnaval para percorrer as ruas da Cidade Baixa, quem sabe?
Também neste segundo momento, entramos em contato com figuras incríveis que fazem parte da arte e da cultura da rua. Por meio de sua escrita, passamos a conhecer um pouco do discurso, das lutas e da produção teatral dos grupos que fazem o teatro de rua de Porto Alegre, como também, a resistência guerreira de grupos e artistas da região amazônica com quem nosso escritor fez importantes e memoráveis trocas. Veremos ainda, um espetáculo que grita contra a barbárie na personificação de uma Medeia brasileira plena em sua indignação. Em outro espetáculo, Dona Coisinha, com suas quinquilharias, trapos e farrapos nos mostrará como a comicidade e a ironia desmascaram a exploração e a violência contra a mulher.  E, na narrativa minuciosa do autor sobre o 3º Encontro de Mamulengo em São Paulo, encontramos toda a diversidade de uma cultura genuinamente brasileira. Como se não bastasse, uma palhaça rasga nosso coração em meio à praça, fazendo rir e chorar, mas, sobretudo, fazendo sentido. Próximo do final, na análise do espetáculo “Meu nome é Zé”, de um grupo do Movimento Escambo, do Nordeste, o autor descreve a força política da dramaturgia, da palavra e da tribuna popular que é a praça, a rua... os espaços onde o povo está.
Como se não bastasse toda essa riqueza, o autor fecha a segunda parte do livro com a cena lúdica e potente do Circo Minimal mostrando que todo o mundo é um circo, basta apenas aprender a olhar.

Márcio Silveira, como a maioria dos bons escritores, é sem dúvida uma grande biblioteca viva. Seu livro é um importante registro do teatro de rua, de artistas populares, eventos e acontecimentos culturais e políticos, personagens singulares que compõe o vasto campo da cultura popular. Traz nas entrelinhas das análises aqui empreendidas, muita informação sobre fatos e pessoas que fizeram e fazem o teatro popular, político e de rua no Brasil. Sua escrita vai interessar não apenas aos artistas e pesquisadores de teatro de rua, mas também, historiadores e cientistas políticos e sociais, que entendem que a arte nunca será desassociada da vida, pelo contrário, é na vida plena de experiências que a arte teatral vai gerar seus melhores roteiros, suas mais contundentes tramas, fazendo dessa relação simbiótica sua força e materialidade.

Para aquisição: Ueba Editora, 2018 – email: marccioss@yahoo.com.br WhatsApp (51) 98229-2509

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