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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Fabulário Pampiano – três viventes, um cavalo e muitas lendas



Por Márcio Silveira dos Santos*


Na marca da identidade,
carrego a estampa de todos,
andejos e rapsodos,
criados na imensidade,
o vício da liberdade
adquiri no infinito,
desde que o Tupã bendito,
num gesto paterno e largo,
me deu o sagrado encargo
de fazer mapa – solito!

Jayme Caetano Braun


Se me permite um à parte, você que esta lendo preste atenção vivente. Pegue um mate amargo pra sorver enquanto lhe conto sobre um espetáculo pra lá de especial. A peça se chama Fábulas do Sul, novo trabalho cênico do Grupo UEBA Produtos Notáveis, da Cidade de Caxias do Sul, que fica lá no alto dos morros da serra gaúcha. O espetáculo, assim de lambuja, afirmo que é diversão garantida, pois logo na arrancada já se percebe as gargalhadas se espraiando nas bocas e sorrisos escancarados da plateia.
O espetáculo chega realizando uma tarefa relevante para os dias de hoje, pois fala do universo fabulário da pampa gaúcha de forma leve e sutil, sem perder o caráter sério e indagador que nossas histórias precisam atualmente. Algumas são muito presentes no imaginário das lendas do Rio Grande do Sul, outras vão um pouco mais além por se tratarem de causos e estórias que encontramos na pampa platina que abrange outros países como o Uruguai, Chile e Argentina. A oralidade do sul da América do Sul ecoa pela narrativa muito bem costurada em cena.
No dia 29 de Setembro de 2018, pude assistir Fabulas do Sul na temporada de estreia no Centro de Cultura Ordovás, na capital da Festa da uva e do frio congelante. Foram duas apresentações dentro do clima tropeiro de ser, dia quente e noite fria de doer às costelas. A função mal começou e já teve inicio a cantoria no compasso do bombo leguero:

Somos viventes, contamos histórias;
Se aprochega, vamos contar.

São de terror, também de amor;
Mas tu vais se impressionar...
  
De chapéu tapeado de contra ao vento conhecemos os três viventes: Aparício, Charque e Joca. Logo atrás troteando os cascos como se atravessando as picadas deste pago rio-grandense, se aprochega o Century. Um cavalo que em certas feitas se mostra mais sagaz que os três gaudérios perdidos em algum rincão. Assim seguem suas jornadas acampando aqui e ali entre o verde e o azul da pampa gaúcha.
Dos quatro amigos, Joca é o mais cheio de segredos e artimanhas, mais liso que sabão de aroeira, que aos poucos vai se revelando. Nesta história somente o teatino Joca conhece um mapa que leva a um tesouro perdido. Este mapa é a única herança da pampa pobre que seu avô lhe deixou, com a condição de que um dia encontraria o local e ficasse muito rico. Mas (sempre tem um Mas!) o tesouro esta numa casa sem portas e sem janelas e por séculos é guardada pela assombração do índio velho chamado M’bororé. Achar esse tesouro é o fio condutor da encenação que segue no alvoroço do emendar de fábulas. Além da Lenda da Casa do índio M’bororé, temos também a da Cobra M’boitatá, da Erva Mate e as histórias do Negrinho do Pastoreio e da Salamanca do Jarau. Nossos rapsodos se desdobram para nos contar tantas lendas em pouco tempo.
É preciso dizer que para encenar este conjunto de fábulas que passa por assombrações que protegem tesouros, cobras de fogo que engolem olhos, sementes de erva mate ofertadas por deuses, crueldades de estancieiros com um jovem empregado e uma princesa que enfeitiçada virou lagartixa encantada, seja necessária uma boa preparação dos atores e atriz. Tanto para obter uma crível habilidade na contação de histórias, como também uma boa prática na manipulação de objetos, bonecos, máscaras e elementos de cena e um bom domínio das técnicas do teatro épico.

Aline Zilli, Jonas Piccoli e Pablo Beluck não deixam a desejar, suas atuações se mostraram consistentes diante de um público exigente composto de idades entre 08 aos 80 anos. À atriz coube desempenhar o papel de Joca, que no final faz a grande revelação do espetáculo (que não contarei, assista). Jonas Piccoli dá vida ao agitado Aparício, que no entrevero de vontades pareceu-me descobrir o verdadeiro sentido da vida de andarilho pelos pagos do mundo. Já Pablo Beluck, embora jovem nas searas do teatro já se mostra um veterano na arte de interpretar ao dar voz e corpo ao desconfiado Charque, grande amigo de Aparício. Ambos, além de executarem seus personagens principais, por meio da atuação épica cumprem excelente desenvoltura com os demais personagens das Fábulas do Sul, tudo orientado pelo olhar generoso do diretor e dramaturgo Jonas Piccoli.
O Grupo UEBA Produtos Notáveis investiu bastante na utilização do teatro de animação neste novo trabalho. Temos além do cavalo Century, que consiste num boneco articulável do tamanho natural de um cavalo adulto que permanece em cena o espetáculo inteiro. Também há o Deus Tupã, representado por um boneco gigante de três metros de altura, as máscaras, o envolvente boneco do negrinho com a sua lamparina e os minimalistas cavalos no potreiro. Tudo muito bem empregado nas cenas e em consonância com cenário, adereços e figurinos, aliás, as vestes bem retratadas e funcionais.
Um dos destaques são as cenas da Lenda do Negrinho do Pastoreio. Não só pela exímia elaboração e estética do boneco, como também pelo tipo de articulação que possibilita a leveza e sutileza empregada pela manipulação de Aline Zilli. O boneco do Negrinho do Pastoreio causa um efeito impressionante em cena. A atriz também conseguiu dar boa modulação de voz e no tempo certo, ora alegre ora triste, ao menino negro que sofre pesada crueldade dos patrões. O Grupo retrata a lenda do Negrinho do Pastoreio como ninguém até o momento. Constrói na medida do quase intangível uma cena delicada e comovente para esta lenda tão forte e dolorida. Um passado sombrio que ainda ecoa em nossa história e que lamentavelmente persiste em se repetir nos dias atuais não só no sul, mas no mundo inteiro.
Outro destaque são as cenas da Lenda da Salamanca do Jarau, conhecida também em outros países como na Argentina por exemplo. O Grupo compõe de forma equilibrada uma reviravolta que acontece no meio desta parte da trama. Quando estão contando a história da Princesa Moura, Teiniaguá, que por meio de um feitiço é transformada por Anhangá-pitã, o diabo vermelho, em uma lagartixa encantada e condenada a ser guardiã de uma caverna repleta de tesouros e perigos no Cerro do Jarau, que fica na metade do sul do Rio Grande do Sul, de repente acontece uma interrupção e um grande segredo é revelado pelo travesso Joca.
O bem sucedido final com a história da Princesa Moura, que se passou num longínquo tempo, nos transporta para a reflexão de um dos pontos nevrálgicos da sociedade nos dias atuais: a força e o papel da mulher na história. É preciso dar voz e dialogar sobre esta questão, nossa história é repleta de histórias que precisam ser contadas.

Fabulas do Sul é um espetáculo que merece se espraiar pelos rincões deste mundo. O espetáculo por trazer em seu bojo parte do nosso imaginário ele contribui plenamente para que a tradição da oralidade se mantenha. Estimula que nossas lendas sejam transmitidas de geração a geração e o universo das fábulas continue ativo no futuro. É isto que os personagens Joca, Aparício, Charque e Century nos mostram, que o verdadeiro tesouro, a verdadeira riqueza, não esta no ouro e sim no imenso fabulário que possuímos e temos o dever de manter esse legado vivo.
Entonces vivente! Passe adiante o chimarrão, essa bebida amarga da raça que adoça meu coração. E dá-lhe lenda Xirú!

*Márcio Silveira dos Santos é professor, pesquisador, ator, diretor, dramaturgo. Integrante do Grupo Manjericão (RS). Doutorando em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor dos livros: Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016) e Um Artista de Rua faz mais que um Ministro da Cultura (2018).

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