Por
Márcio Silveira dos Santos*
Na
marca da identidade,
carrego
a estampa de todos,
andejos
e rapsodos,
criados
na imensidade,
o
vício da liberdade
adquiri
no infinito,
desde
que o Tupã bendito,
num
gesto paterno e largo,
me
deu o sagrado encargo
de
fazer mapa – solito!
Jayme
Caetano Braun
Se
me permite um à parte, você que esta lendo preste atenção vivente. Pegue um
mate amargo pra sorver enquanto lhe conto sobre um espetáculo pra lá de
especial. A peça se chama Fábulas do Sul, novo trabalho cênico do Grupo UEBA Produtos
Notáveis, da Cidade de Caxias do Sul, que fica lá no alto dos morros da serra
gaúcha. O espetáculo, assim de lambuja, afirmo que é diversão garantida, pois
logo na arrancada já se percebe as gargalhadas se espraiando nas bocas e
sorrisos escancarados da plateia.
O
espetáculo chega realizando uma tarefa relevante para os dias de hoje, pois
fala do universo fabulário da pampa gaúcha de forma leve e sutil, sem perder o
caráter sério e indagador que nossas histórias precisam atualmente. Algumas são
muito presentes no imaginário das lendas do Rio Grande do Sul, outras vão um
pouco mais além por se tratarem de causos e estórias que encontramos na pampa
platina que abrange outros países como o Uruguai, Chile e Argentina. A
oralidade do sul da América do Sul ecoa pela narrativa muito bem costurada em
cena.
No
dia 29 de Setembro de 2018, pude assistir Fabulas do Sul na temporada de
estreia no Centro de Cultura Ordovás, na capital da Festa da uva e do frio
congelante. Foram duas apresentações dentro do clima tropeiro de ser, dia
quente e noite fria de doer às costelas. A função mal começou e já teve inicio
a cantoria no compasso do bombo leguero:
Somos viventes, contamos
histórias;
Se aprochega, vamos contar.
São de terror, também de
amor;
Mas tu vais se impressionar...
De
chapéu tapeado de contra ao vento conhecemos os três viventes: Aparício,
Charque e Joca. Logo atrás troteando os cascos como se atravessando as picadas
deste pago rio-grandense, se aprochega o Century. Um cavalo que em certas
feitas se mostra mais sagaz que os três gaudérios perdidos em algum rincão. Assim
seguem suas jornadas acampando aqui e ali entre o verde e o azul da pampa
gaúcha.
Dos
quatro amigos, Joca é o mais cheio de segredos e artimanhas, mais liso que
sabão de aroeira, que aos poucos vai se revelando. Nesta história somente o
teatino Joca conhece um mapa que leva a um tesouro perdido. Este mapa é a única
herança da pampa pobre que seu avô lhe deixou, com a condição de que um dia
encontraria o local e ficasse muito rico. Mas (sempre tem um Mas!) o tesouro
esta numa casa sem portas e sem janelas e por séculos é guardada pela
assombração do índio velho chamado M’bororé. Achar esse tesouro é o fio
condutor da encenação que segue no alvoroço do emendar de fábulas. Além da
Lenda da Casa do índio M’bororé, temos também a da Cobra M’boitatá, da Erva Mate
e as histórias do Negrinho do Pastoreio e da Salamanca do Jarau. Nossos
rapsodos se desdobram para nos contar tantas lendas em pouco tempo.
É
preciso dizer que para encenar este conjunto de fábulas que passa por
assombrações que protegem tesouros, cobras de fogo que engolem olhos, sementes de
erva mate ofertadas por deuses, crueldades de estancieiros com um jovem
empregado e uma princesa que enfeitiçada virou lagartixa encantada, seja necessária
uma boa preparação dos atores e atriz. Tanto para obter uma crível habilidade
na contação de histórias, como também uma boa prática na manipulação de
objetos, bonecos, máscaras e elementos de cena e um bom domínio das técnicas do
teatro épico.
Aline
Zilli, Jonas Piccoli e Pablo Beluck não deixam a desejar, suas atuações se
mostraram consistentes diante de um público exigente composto de idades entre 08
aos 80 anos. À atriz coube desempenhar o papel de Joca, que no final faz a
grande revelação do espetáculo (que não contarei, assista). Jonas Piccoli dá
vida ao agitado Aparício, que no entrevero de vontades pareceu-me descobrir o
verdadeiro sentido da vida de andarilho pelos pagos do mundo. Já Pablo Beluck, embora
jovem nas searas do teatro já se mostra um veterano na arte de interpretar ao
dar voz e corpo ao desconfiado Charque, grande amigo de Aparício. Ambos, além
de executarem seus personagens principais, por meio da atuação épica cumprem
excelente desenvoltura com os demais personagens das Fábulas do Sul, tudo
orientado pelo olhar generoso do diretor e dramaturgo Jonas Piccoli.
O
Grupo UEBA Produtos Notáveis investiu bastante na utilização do teatro de
animação neste novo trabalho. Temos além do cavalo Century, que consiste num
boneco articulável do tamanho natural de um cavalo adulto que permanece em cena
o espetáculo inteiro. Também há o Deus Tupã, representado por um boneco gigante
de três metros de altura, as máscaras, o envolvente boneco do negrinho com a
sua lamparina e os minimalistas cavalos no potreiro. Tudo muito bem empregado
nas cenas e em consonância com cenário, adereços e figurinos, aliás, as vestes
bem retratadas e funcionais.
Um
dos destaques são as cenas da Lenda do Negrinho do Pastoreio. Não só pela
exímia elaboração e estética do boneco, como também pelo tipo de articulação que
possibilita a leveza e sutileza empregada pela manipulação de Aline Zilli. O
boneco do Negrinho do Pastoreio causa um efeito impressionante em cena. A atriz
também conseguiu dar boa modulação de voz e no tempo certo, ora alegre ora
triste, ao menino negro que sofre pesada crueldade dos patrões. O Grupo retrata
a lenda do Negrinho do Pastoreio como ninguém até o momento. Constrói na medida
do quase intangível uma cena delicada e comovente para esta lenda tão forte e
dolorida. Um passado sombrio que ainda ecoa em nossa história e que lamentavelmente
persiste em se repetir nos dias atuais não só no sul, mas no mundo inteiro.
Outro
destaque são as cenas da Lenda da Salamanca do Jarau, conhecida também em
outros países como na Argentina por exemplo. O Grupo compõe de forma equilibrada
uma reviravolta que acontece no meio desta parte da trama. Quando estão contando
a história da Princesa Moura, Teiniaguá, que por meio de um feitiço é
transformada por Anhangá-pitã, o diabo vermelho, em uma lagartixa encantada e condenada
a ser guardiã de uma caverna repleta de tesouros e perigos no Cerro do Jarau, que
fica na metade do sul do Rio Grande do Sul, de repente acontece uma interrupção
e um grande segredo é revelado pelo travesso Joca.
O
bem sucedido final com a história da Princesa Moura, que se passou num
longínquo tempo, nos transporta para a reflexão de um dos pontos nevrálgicos da
sociedade nos dias atuais: a força e o papel da mulher na história. É preciso
dar voz e dialogar sobre esta questão, nossa história é repleta de histórias
que precisam ser contadas.
Fabulas
do Sul é um espetáculo que merece se espraiar pelos rincões deste mundo. O
espetáculo por trazer em seu bojo parte do nosso imaginário ele contribui
plenamente para que a tradição da oralidade se mantenha. Estimula que nossas
lendas sejam transmitidas de geração a geração e o universo das fábulas
continue ativo no futuro. É isto que os personagens Joca, Aparício, Charque e
Century nos mostram, que o verdadeiro tesouro, a verdadeira riqueza, não esta
no ouro e sim no imenso fabulário que possuímos e temos o dever de manter esse
legado vivo.
Entonces
vivente! Passe adiante o chimarrão, essa bebida amarga da raça que adoça meu
coração. E dá-lhe lenda Xirú!
*Márcio
Silveira dos Santos é professor, pesquisador, ator, diretor, dramaturgo.
Integrante do Grupo Manjericão (RS). Doutorando em Teatro pelo Programa de
Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor dos
livros: Longa Jornada de Teatro de Rua Brasil Afora (2016) e Um Artista de Rua
faz mais que um Ministro da Cultura (2018).
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