Alexandre Falcão de Araújo[1]
Baco,
aquele deus grego-romano da desmesura etílica e sexual, também mora na quebrada!
E não é que ele deu um rolê na zona leste de São Paulo?! Foi uma visita à XI
Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, realizada pelo grupo Buraco do
Oráculo. Baco deu as caras e “girou” na apresentação de “Pólo Marginal –
Opereta de Rua”, espetáculo do grupo de teatro de rua Loucos e Oprimidos da
Maciel, de Recife. Mas, ele não veio sozinho! Em sua companhia, diretamente do
panteão africano, veio Exu, que abriu os caminhos para que o encontro teatral
acontecesse.
Construído
a partir da obra poética de Marco Pólo Guimarães, com roteiro e direção do
teatrista pernambucano Carlos Salles – já falecido, o espetáculo se inicia com
a tradicional formação da roda do teatro de rua. Desta feita, porém, é com
cachaça nordestina que se desenha a roda! A mesma cachaça que lubrifica as
goelas e outros orifícios dos atores e das atrizes da trupe recifense...
Pólo Marginal em São Miguel Paulista - São Paulo. |
Banhados
de músicas da Ave Sangria – banda recifense surgida nos anos 1970 e que, recentemente, retornou à
ativa, tendo sido pioneira na fusão sonora de ritmos pernambucanos com o rock
psicodélico e o blues e da qual Marco Pólo é vocalista e compositor – o bando
teatral brinca com a trajetória de um pirata, coletivamente apresentado, que
aporta no centro de uma cidade e convida o público a navegar com ele.
As
poesias, cores, sonoridades e corporalidades da encenação transbordam
referências da iluminada Recife, com seu mormaço, seu sol aberto e suas praias
e mangues. Entre tintas de um teatro ritual híbrido, brincado num brasileiro lócus entre a África Negra e as
referências dionisíacas, o espetáculo diverte, emociona, arrepia e também causa
reflexões, uma vez que nele não faltam referências de crítica aos regimes
autoritários de ontem e de hoje.
É
impressionante como a obra cria um universo imagético muito diferente do que é
mais usual no teatro de rua paulista. O trabalho é tão repleto de cores que se
sobrepôs de forma bela ao cinza de mais um dos muitos dias nublados de São
Paulo. Talvez exatamente pela dimensão ambiental e litorânea de seu teatro, a
energia dos loucos pernambucanos lembre também a atmosfera criada pelo grupo Tá
na Rua, importante e longevo grupo carioca de teatro de rua, em sua “suada
labuta” da carnavalização.
No
elenco, quiçá pelas diferenças de idade e de experiências de vida e de teatro,
alguns artistas pareciam mais inteiros e entregues à intensidade e visceralidade
propostas em cena. Nesse sentido, correndo o risco de ser injusto, destaco Rodrigo
Torres (cuja presença em cena me remetia ao grande Ney Matogrosso), Sandro
Sant´ana e Roberta Lúcia, que nitidamente divertiam-se com as traquinagens e
provocações por eles próprios realizadas junto ao público, gerando forte
empatia e creio que também um bocado de excitação. Além da sensualidade de seus
corpos em cena e das belas imagens geradas pelas poesias compartilhadas,
algumas vezes os artistas também se valiam de gestus ou de posicionamentos políticos explícitos, para criar mais
camadas de leitura à obra.
Ainda
em relação à crítica e reflexão, destaco o quadro “Mete Bronca”, que abre
espaço para a participação direta do público, para que este possa denunciar os problemas
do bairro, da cidade e do país ou apenas compartilhar sua expressão poética no
centro da roda. Naquele dia, na zona leste paulistana, o desastroso resultado
das eleições brasileiras, bem como o machismo e a falta de responsabilidade dos
pais (homens) para com seus filhos, veio à tona, em críticas trazidas pelo
público.
Eu
não poderia deixar de citar ainda a bela direção musical do espetáculo, de
Walgrene Agra, que está em cena acompanhado de uma banda de bons
atores-músicos, cuja última marca aparece no momento de passar o chapéu, com a
deliciosa canção: “se quiser dar, pode dar agora, que tá na hora de rodar nossa
sacola...”. Assim, entre duplos-sentidos, requebradas, passos de ciranda e
muito bom-humor, encerrou-se uma bela tarde de apresentações em São Miguel.
[1]
Ator, diretor e pesquisador teatral, professor do curso de Teatro da
Universidade Federal de Rondônia (UNIR), coordenador do grupo de Trabalho Artes
Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes
Cênicas (ABRACE) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
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