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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Baco mora na quebrada


Alexandre Falcão de Araújo[1]

Baco, aquele deus grego-romano da desmesura etílica e sexual, também mora na quebrada! E não é que ele deu um rolê na zona leste de São Paulo?! Foi uma visita à XI Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, realizada pelo grupo Buraco do Oráculo. Baco deu as caras e “girou” na apresentação de “Pólo Marginal – Opereta de Rua”, espetáculo do grupo de teatro de rua Loucos e Oprimidos da Maciel, de Recife. Mas, ele não veio sozinho! Em sua companhia, diretamente do panteão africano, veio Exu, que abriu os caminhos para que o encontro teatral acontecesse.

Construído a partir da obra poética de Marco Pólo Guimarães, com roteiro e direção do teatrista pernambucano Carlos Salles – já falecido, o espetáculo se inicia com a tradicional formação da roda do teatro de rua. Desta feita, porém, é com cachaça nordestina que se desenha a roda! A mesma cachaça que lubrifica as goelas e outros orifícios dos atores e das atrizes da trupe recifense...
Pólo Marginal em São Miguel Paulista - São Paulo.

Banhados de músicas da Ave Sangria – banda recifense surgida nos anos 1970 e que, recentemente, retornou à ativa, tendo sido pioneira na fusão sonora de ritmos pernambucanos com o rock psicodélico e o blues e da qual Marco Pólo é vocalista e compositor – o bando teatral brinca com a trajetória de um pirata, coletivamente apresentado, que aporta no centro de uma cidade e convida o público a navegar com ele.

As poesias, cores, sonoridades e corporalidades da encenação transbordam referências da iluminada Recife, com seu mormaço, seu sol aberto e suas praias e mangues. Entre tintas de um teatro ritual híbrido, brincado num brasileiro lócus entre a África Negra e as referências dionisíacas, o espetáculo diverte, emociona, arrepia e também causa reflexões, uma vez que nele não faltam referências de crítica aos regimes autoritários de ontem e de hoje.

É impressionante como a obra cria um universo imagético muito diferente do que é mais usual no teatro de rua paulista. O trabalho é tão repleto de cores que se sobrepôs de forma bela ao cinza de mais um dos muitos dias nublados de São Paulo. Talvez exatamente pela dimensão ambiental e litorânea de seu teatro, a energia dos loucos pernambucanos lembre também a atmosfera criada pelo grupo Tá na Rua, importante e longevo grupo carioca de teatro de rua, em sua “suada labuta” da carnavalização.

                No elenco, quiçá pelas diferenças de idade e de experiências de vida e de teatro, alguns artistas pareciam mais inteiros e entregues à intensidade e visceralidade propostas em cena. Nesse sentido, correndo o risco de ser injusto, destaco Rodrigo Torres (cuja presença em cena me remetia ao grande Ney Matogrosso), Sandro Sant´ana e Roberta Lúcia, que nitidamente divertiam-se com as traquinagens e provocações por eles próprios realizadas junto ao público, gerando forte empatia e creio que também um bocado de excitação. Além da sensualidade de seus corpos em cena e das belas imagens geradas pelas poesias compartilhadas, algumas vezes os artistas também se valiam de gestus ou de posicionamentos políticos explícitos, para criar mais camadas de leitura à obra.

                Ainda em relação à crítica e reflexão, destaco o quadro “Mete Bronca”, que abre espaço para a participação direta do público, para que este possa denunciar os problemas do bairro, da cidade e do país ou apenas compartilhar sua expressão poética no centro da roda. Naquele dia, na zona leste paulistana, o desastroso resultado das eleições brasileiras, bem como o machismo e a falta de responsabilidade dos pais (homens) para com seus filhos, veio à tona, em críticas trazidas pelo público.

                Eu não poderia deixar de citar ainda a bela direção musical do espetáculo, de Walgrene Agra, que está em cena acompanhado de uma banda de bons atores-músicos, cuja última marca aparece no momento de passar o chapéu, com a deliciosa canção: “se quiser dar, pode dar agora, que tá na hora de rodar nossa sacola...”. Assim, entre duplos-sentidos, requebradas, passos de ciranda e muito bom-humor, encerrou-se uma bela tarde de apresentações em São Miguel.



[1] Ator, diretor e pesquisador teatral, professor do curso de Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), coordenador do grupo de Trabalho Artes Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

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