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sexta-feira, 17 de julho de 2020

A hora e a vez das mulheres protagonistas da cena (dentro e fora do palco)


Durante a XIII Mostra Lino Rojas, organizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) no segundo semestre de 2019, tive a oportunidade de assistir, na Casa de cultura do Itaim Paulista, zona leste da capital paulista, ao espetáculo Vulcânicas - Ensaio sobre nossos corpos femininos em luta, inspirado nos livros Calibã e a Bruxa, de Silvia Federicci e Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés, em montagem da companhia também denominada Vulcânicas. Fiquei muito contente em ver o novo caminho coletivo trilhado por um conjunto de mulheres artistas experientes e aguerridas: Cinthia Arruda, Ju Flor e Natali Santos, oriundas do longevo e importante grupo Pombas Urbanas. A obra teve a direção de Aysha Nascimento, artista integrante do coletivo Negro de Teatro e da Cia. dos Inventivos e a dramaturgia de Rafaela Carneiro, integrante do grupo também feminista Madeirite Rosa e, por sua vez, artista madura oriunda da Brava Companhia.
Cinthia Arruda, Natali Santos e Ju Flor em Vulcânicas. Galpão do Folias.
Foto: Sheila Signário.

Considero que a obra expresse tanto um momento de militância e pesquisa artística específico extremamente relevante dessas atrizes-criadoras, em torno das questões interseccionais de gênero e classe, como também seu processo histórico de luta e resistência cultural na zona leste de São Paulo, onde está sediada a companhia. Porém, diferentemente de percursos anteriores, desta vez o trabalho se dá a partir do protagonismo feminino na cena e na criação artística.
                Como é sabido de todes que tenham algum nível de consciência de classe, o acesso aos recursos públicos e privados de fomento às artes e a cultura é absolutamente desigual, com privilégios ligados à classe, raça, gênero e distribuição da produção cultural no território das cidades (especialmente em relação à dicotomia centro-periferia). Nesse sentido, em que pese a qualidade artística do trabalho das Vulcânicas, estou plenamente consciente que seu sustento e continuidade – assim como de tantos outros coletivos periféricos – necessita de um olhar diferenciado por parte do poder público, para que não se reproduza a exclusão histórica que privilegia grupos mais centrais e, frequentemente, mais ligados aos circuitos acadêmicos e da crítica teatral e ainda, cuja predominância de poder, muitas vezes, mantém traços mais evidentes do patriarcado. Por esse e outros motivos associados, no que tange à crítica teatral, dedico-me principalmente ao teatro de rua, na busca de jogar luz sobre essas potentes experiências e reverter parte do preconceito que acomete essa modalidade teatral, mas começo também a dedicar mais atenção aos coletivos que se dedicam às lutas anti-opressão específicas (também chamadas, talvez de forma equivocada, de lutas identitárias) por vê-las como determinantes para o enfrentamento das questões que ferem nosso tecido social.
Apresentação de Vulcânicas na ocupação Nove de Julho. Foto: Dayse Serena.

Ainda que o espetáculo de estreia do coletivo Vulcânicas não seja propriamente teatro de rua, suas criadoras, por também serem atrizes de rua, trazem em seu jogo de cena e em sua temática, eminentemente popular e classista, muitos dos aspectos que me atraem no teatro de rua e que proporcionam ampla comunicação com o público das cidades. Na obra, de estrutura assumidamente épica, memórias documentais e ficcionais se mesclam entre imagens de trabalhadoras periféricas, mães, filhas, esposas, feiticeiras (bruxas, santas ou nenhuma dessas opções maniqueístas?) apresentadas de forma tocante e hábil pelas atrizes, que também são musicistas, cantam e tocam belamente em cena. Sua narrativa, em que pese alguns pontos e significações que podem ser aprimorados, no sentido das costuras dramatúrgicas e de encenação, é tocante e envolvente, como manifesto,  denúncia e acalanto em mulheres que, a despeito de toda a violência histórica, aprenderam a cuidar e estão (estamos) aprendendo a se cuidar, como nos lembra uma bela canção do espetáculo:
Fazer-se sã, neste lugar, apenas existir
E já não ser, para lhe agradar
Não vim pra lhe servir
 
Natali Santos. Apresentação realizada no Galpão do Folias.
 Foto: Sheila Signário.
Por isso e vários outros méritos, desejo longa vida ao espetáculo Vulcânicas...[1] e a seu coletivo homônimo, torcendo para que ele possa circular por todas as regiões da cidade de São Paulo e em muitas outras localidades mais, proporcionando beleza, diversão (no sentido brechtiano) e inspiração pra luta e resistência das mulheres e para o combate ao machismo estrutural que sangra diariamente nossa sociedade e nossas relações humanas.





Alexandre Falcão de Araújo
Professor do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Coordenador do Grupo de Trabalho Artes Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE



[1] Parte da obra, adaptada para o audiovisual (de forma inteligente e sensível) por conta do contexto da pandemia do COVID 19, pode ser conferida no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=d-TL-mHF6KM

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