Um a cada oito casos de COVID-19 no
mundo está no Brasil. Ultrapassamos mais de um milhão de casos confirmados (no
mundo todo são pouco mais de oito milhões) e mais de 49 mil mortes, fora a
subnotificação. No entanto, quando olhamos para o governo é ainda mais
desesperador, pois não vemos nenhuma ação no sentido de enfrentar seriamente
essa situação. Não temos se quer alguém da área da medicina no Ministério da
Saúde. O que vemos é apenas um jogo de acusações para com os governos estaduais
e um governo central acuado, buscando defender os seus devidos os últimos acontecimentos.
Somado o descaso e as ações dos grupos que lhe dão sustentação, podemos
afirmar: sim, o fascismo caminha a passos largos no Brasil.
Tomarei aqui as ideias apresentadas em
uma palestra de Vladimir Safatle, para expor a concepção de um fascismo à
brasileira, pois, se alguns anos atrás usávamos em seu sentido mais banal, como
uma exconjuração, uma forma de distratar o outro, hoje, podemos utilizar em seu
sentido analítico. Vejamos quatro características do fascismo, aí vocês podem
dizer se estão ou não presentes no Brasil – e não necessariamente a apenas a um
ano, mas, algumas (ou todas?) características são históricas.
A primeira característica do fascismo
é o culto à violência. Esse culto
pode aparecer de muitas formas: nas falas como ser favorável à tortura, no
desejo de armar uma parte da sociedade brasileira, nas milícias etc. O que
leva, em certo sentido, a um Estado paralelo, uma espécie de Estado
paramilitar, os exemplos no Rio de Janeiro, a greve de policiais no Ceará e a
forma de atuação das polícias nas periferias brasileiras. Isso leva a um Estado
suicidário, concepção que Safatle pinça de Paul Virilo. Isto é, é uma etapa
posterior ao Estado necropolítico. A morte se banaliza, no Estado suicidário um
amplo espectro de pessoas são lançadas à condição de coisa, logo, são sujeitos matáveis. São mais de 65 mil mortes
violentas por ano no Brasil. Mas vamos trazer pro hoje, lembram da dança com
caixões ou das buzinas em frente ao hospital? Essa banalização da morte inclui
quem banaliza, afinal ao irem para rua colocaram as próprias vidas em jogo.
A segunda característica é uma paranoia
identitária: um nacionalismo exacerbado. A pátria, seus símbolos (hino,
bandeira), as fronteiras, juntam os sujeitos de maneira cega. Mais, esses grupos
elegem um inimigo que precisa ser combatido. É nessa perspectiva que qualquer
alusão ao mínimo de direitos, torna-se problemático, pois todos viram
comunistas, de reais comunistas até ao João Dória. A coisa terrível nisso tudo
é a cegueira, pois patriotismo significa um mínimo de defesa dos recursos da
pátria, no entanto, o que vemos é um governo entreguista e dizendo isso às
claras, afinal o que é “passar a boiada”, “vamos vender essa p... logo”? Assim,
essas contradições são absorvidas e causam uma tremenda opacização nos ditos
patriotas, sendo, muitos deles, os próprios expropriados.
Outra característica, a terceira, é
uma profunda insensibilidade para com os historicamente marginalizados, isto é,
indígenas, LGBTQI+, negros (que apesar de serem maioria, devido a seu pouco
poder social, enquadram-se como minoria). Essa insensibilidade implode a
solidariedade, afeto fundamental para a construção de qualquer sociedade que se
pretenda e queira ser um pouco mais igualitária. E claro que, nesse aspecto, a
lógica neoliberal cumpre papel fundamental, pois priorizou e a continua a
priorizar uma extrapolação do indivíduo e da propriedade privada.
A quarta característica do fascismo à
brasileira é a transferência do poder a alguém que estar fora da lei, alguém
que quebra as regras todo o tempo. Alguém que manifesta o desejo anti-institucional,
posto ser o representante daqueles que estão, também historicamente, fora do
poder decisório. No entanto, não significa que seja menos político, pois o outsider centraliza esse desejo de poder
desse grupo, lhes representa, isto é, um determinado corpo social transfere o
poder a alguém igual a si mesmo, que pensa e age igual a si. Esse alguém detém
o poder, mas é simples, é igual àquele sujeito que lhe dá sustentação.
Percebam que, desse ponto de vista,
muitos dos elementos, ou mesmo todos, sempre estivem presente na história
brasileira. Não à toa que, sempre que se busca historicamente exemplos de
fascismos fora da Europa, vem da África do Sul, que pariu o apartheid, e o Brasil, em que a história
dos integralistas são um exemplo. Esses elementos fascistas estão presentes a
bastante tempo e representa uma camada populacional entre 20 e 30% da
população. O Brasil sempre foi extremamente conservador.
Para irmos encerrando essa reflexão,
cabe destacar que Bolsonaro e seu governo foi gestado por seis forças: 1) o
setor financeiro; 2) as igrejas, sobretudo as neopentecostais; 3) o
agronegócio; 4) as Forças Armadas; 5) a Justiça ou grande parte desse setor e;
6) a grande imprensa brasileira. Apenas os dois últimos saltaram fora desse
governo suicida, os demais continuam apoiando e lhe dando sustentação.
Se a esquerda quiser avançar –
esquerda que é esquerda deve ter, no mínimo, como horizonte a igualdade radical
e a soberania popular – precisa fazer o dever de casa e construir um programa e
saber onde quer chegar, mas não pode mais deixar de lado, deixar de discutir
esses elementos fascistas elencados acima e presentes em nossa história e que
hoje nos governa. Nunca enfrentamos o lado terrível de nossa história. Ninguém
foi julgado, por exemplo, pelas torturas que cometeram durante a ditadura
civil-militar, os jovens negros continuam a morrer e continuamos, como
sociedade a olharmos pro lado. Para criar uma nova subjetividade, capaz de
gestar uma nova sociedade, se faz necessário, além das outras tarefas, realizarmos
esses enfrentamentos históricos.
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