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domingo, 31 de maio de 2020

Salvar as pessoas. Elas salvarão a arte e a cultura


Adailtom Alves Teixeira

Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito à existência.
Theodor Adorno – Teoria Estética

A despeito de Raymond Williams, em seu livro Palavras-chave, considerar o termo cultura complexo e complicado, tratemos um pouco dessa questão – ainda que, como se verá, não será esse nosso foco, porém, importante para entendermos a urgência de nosso tempo.
Cultura, em sua raiz, vem de colere, relacionando-se com habitar, cultivar, proteger e honrar com veneração. Se o verbo habitar se desenvolve para colonus, até chegar em colônia e honrar com veneração para culto, cultura assume o sentido principal de cultivo ou cuidado. Ou seja, se o sentido inicial se referia a lavoura, “o cuidado com o crescimento natural” no dizer de Williams, no século XVI o cuidado natural incluiu o desenvolvimento humano: cultivo da mente e do espírito. Assim, podemos afirmar, cultivamos nosso espírito com o que colhemos da cultura.
Não percamos de vista, portanto, a ideia de cultivo e cuidado relacionados à cultura. Logo, as artes são uma parte da cultura, mas não toda a cultura. O desenvolvimento histórico, no entanto, faz com que, via de regra, falemos de cultura como sinônimo de arte. Para ficarmos ainda com o autor galês, este afirma que isso ocorreu principalmente a partir do século XVIII. Já as artes, poderíamos definir como objetos sensoriais diversos que portam peculiaridades – na forma, na recepção, no suporte, na produção etc. – e foram criadas como uma resposta ao medo humano diante da natureza. Não obstante, o medo veio carregado também de admiração e, talvez, daí herdamos ou buscamos nosso senso de beleza, inspirando-nos na harmonia presente na natureza.
Nascemos em um mundo da cultura e somos cultivados pelo que há nela. Assim, se há ódio, podemos receber essa cultura. Mas herdamos também toda a produção artística humana, que, em larga medida, são exemplos de caminhos a serem seguidos em um caminho de sensibilidade, de solidariedade e de crítica àquilo que não seja saudável ao cultivo do que nos faz humanos. Contra a cultura do ódio e da morte, há que se cultivar a cultura da vida. Muitos são os caminhos, mas é certo que esse percurso passa pelas artes.

A urgência de nosso tempo
No momento, pode-se dizer que as pessoas do mundo inteiro vivem o medo de algo invisível advindo da natureza. A pandemia nos colocou em insegurança. Para enfrentar esse momento muitos têm recorrido às artes. Seja para acalmar, seja para passar o tempo, seja para buscar alento, seja para ajudar na construção de outros mundos, outras possibilidades, inclusive distópicas. Músicas, filmes, livros, contação de histórias, teleteatro, entre outras. No Brasil, porém, a esmagadora maioria dos artistas que tem nos ajudado a criar mundos, possibilidades e a suportar esse nosso tempo, estão completamente sem renda, ainda que continuem a produzir. Claro que a arte é maior que qualquer artista individualmente e todas elas sobreviverão a este momento. Mas é justamente a arte que tem nos mostrado ao longo de milênios, de séculos, a importância do cuidado do outro. No dizer do poeta Ray Lima: “cuidar do outro, é cuidar de mim”. Salvemos as pessoas! Não só os artistas, mas não esqueçamos deles. Salvemos as pessoas. Elas salvarão as artes. Sejam elas produtoras ou fruidoras.
Nesse momento difícil que atravessa a sociedade brasileira, de descrédito da ciência, do uso do medo e do ódio na política, de perseguição a intelectuais e artistas, faz-se necessário ficarmos atentos para não retornamos no tempo, não nos perdemos nessa floresta escura. Pois todo esse caldo terrível também é cultura, produz imaginário, cultiva nosso espírito. Não é fácil enfrentar o vírus biológico e o social. Ainda assim, os artistas resistem e se mobilizaram para pressionar o Congresso e o Governo Federal. Em todo o Brasil, por via remota, os segmentos culturais se reuniram e conseguiram fazer com que o PL 1075/20 fosse votado na Câmara Federal. A Lei recebeu o nome de Aldir Blanc, numa justa homenagem a este grande compositor. O próximo passo é no Senado e depois a assinatura do presidente. Nas negociações perderam parte dos recursos e outros pontos importantes. Ainda assim, a Lei é fundamental para a sobrevivência dos artistas e para a continuidade de suas atividades. Cabe ressaltar que os recursos destinados virão da própria área da cultura. A Lei apenas disciplina o destino destes recursos. Existem também debates e proposições em alguns estados e municípios, todos importantes, mas a Lei federal tem o escopo de abrangência nacional.
Todos estão em um processo de reinvenção. As artes também já passam por essa mudança, mas não podem se reinventar apenas nas plataformas digitais – ainda que fundamental nesse momento. Para tanto, os artistas precisam continuarem existindo. Eles foram os primeiros a pararem e serão os últimos a retornarem. E quando retornarem, muitas artes vão se reinventar em relação direta com seu público. Para tanto, para que o retorno seja potente, há que existir artistas. Que a aprovação da Lei Aldir Blanc seja rápida. Os artistas têm pressa! Há que se continuar a semear cuidados e produzir imaginários plenos de humanidade.

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