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domingo, 13 de outubro de 2019

DIALÉTICA DO MARXISMO CULTURAL



Iná Camargo Costa
I
Marx encerra o posfácio à segunda edição do livro O capital avisando que a dialética não se deixa intimidar por nada, além de ser essencialmente crítica e revolucionária. Esta é uma tentativa de seguir seu exemplo.

Marxistas que honram a própria tradição não podem aceitar a caracterização do marxismo cultural formulada pelo inimigo, assim como Marx, Engels e os companheiros da Liga Comunista não aceitaram o fantasma brandido pela santa aliança anticomunista do século XIX e por isto em 1848 redigiram o histórico Manifesto Comunista justamente para definir comunismo nos seus próprios termos.

Estamos há algum tempo desafiados a apresentar a verdade e a verdade sobre o marxismo cultural. A primeira verdade é histórica: a expressão é perfeitamente rastreável desde o programa nazista. Uma vez exposta esta reconstituição, temos uma segunda verdade-desafio a encarar: transformar a incriminação em arma de luta no front cultural, definindo a nossa própria pauta, que dialeticamente pode tomar o próprio resultado do rastreamento como ponto de partida, com o objetivo de resgatar para o nosso time as incontáveis vítimas das primeiras aparições do fantasma.

Embora haja inúmeras controvérsias no campo marxista sobre a questão do nazi-fascismo, há um diagnóstico cada vez mais incontornável: o fascismo só prospera em situações em que a classe proletária está desarmada em todos os sentidos, especialmente no plano político-programático. Para dizer a mesma coisa em linguagem trotskista, está em crise de direção e por isso é incapaz de lutar pela revolução, o único remédio contra os males que o capital precisa lhe impor para resolver sua própria crise, recorrendo para tanto, e em casos extremos, a regimes fascistas: redução de salários, trabalho escravo, eliminação de direitos como organização, expressão, saúde, educação, habitação e uma vasta pauta de violências inomináveis, a começar pelo estado policial. Trata-se de transferir aos trabalhadores os custos do adiamento da crise final.

Apesar das referidas controvérsias, é fato sociologicamente demonstrado que o nazismo, na fase de germinação e ascenso, contou com os bons serviços de elementos pequeno burgueses – derrotados, ressentidos, fracassados, endividados e/ou falidos, desenraizados, inseguros, forjadores de identidades, mistificadores, truculentos etc. – que aderiram com entusiasmo a dois de seus fundamentos mais conhecidos: racismo e anticomunismo. O racismo, dirigido abertamente ao genocídio do povo judeu na Europa (só para começar, pois o alvo era o mundo inteiro), explorou uma das mais descaradas fraudes literárias de que se tem notícia: Os protocolos dos sábios de Sião, que até hoje tem adeptos mundo afora. E o anticomunismo reage a duas causas muito imediatas: a vitoriosa revolução bolchevique de 1917 e a revolução alemã de 1918-19, devidamente massacrada por uma original combinação de forças entre socialdemocratas, militares e freikorps (estes últimos constituem um dos embriões das tropas de choque nazistas, conhecidas como SA). A combinação de ressentimento, racismo e anticomunismo produz o caldeirão onde germinará o entusiasmo dos fanáticos por Hitler, na sua fase de ascensão, mas sobretudo os arregimentados a partir do ano de 1933, quando o líder do movimento assumiu o poder totalitário (claro que com o “docemente constrangido” apoio do grande capital em crise).

A obra Mein Kampf se torna best seller mais ou menos forjado (porque forçado e artificial) justamente a partir de 1933 e, como observou Trotsky, é muito didática. Entre outros motivos, porque a ideologia do movimento ali se encontra exposta em toda a sua abrangência, ainda que de modo grosseiro, rudimentar e charlatanesco. Como esta é a primeira aparição do fantasma do marxismo cultural, vale a pena resgatar algumas das observações, diretrizes e critérios do Autor. É bom avisar entretanto que o livro será citado a partir da tradução portuguesa[1], mas não usaremos aspas porque não se respeitaram sintaxe nem terminologia lusitanas, sem porém culpar o tradutor pelas dificuldades da tradução: como avisou Lion Feuchtwanger[2], o texto de Hitler tem cerca de 164 mil erros de gramática e sintaxe. (É possível que Feuchtwanger não tenha incluído em seu cálculo as contradições – à base do dizer e depois desdizer – que se multiplicam livro afora, para não dizer nada das inconsequências, fraudes ostensivas e demais falhas que envergonhariam qualquer escritor sério).

A certidão de nascimento do marxismo cultural foi, portanto, lavrada por Hitler neste livro lamentável e já na base da contradição. O livro é uma declaração de guerra ao marxismo e à sua expressão cultural máxima que seria o bolchevismo. Mas a certa altura lemos que o marxismo, enquanto arma da conspiração judaica internacional, nunca pôde criar uma cultura (p. 328), quando na página 193 ficara dito que o bolchevismo na arte[3] é a única forma cultural possível de exteriorização do marxismo. AH afirma que as obras do bolchevismo são produtos doentios de loucos degenerados e desde o século passado [o XIX] são conhecidas como dadaísmo, cubismo e futurismo, de modo que o dever dos nazistas é impedir que o povo caia sob a influência de tais loucuras (p. 328). Já se vê que o autor primeiro operou a fusão entre arte moderna e revolução soviética para depois afirmar que o marxismo não pôde criar uma cultura.

Desde as primeiras menções, o marxismo aparece associado ao judaísmo e ambos constituem as duas maiores ameaças ao povo alemão (p. 17): o marxismo  emerge de uma doutrina inspirada pelo egoísmo e pelo ódio, elaborada pelos judeus (p. 39) e os judeus respondem por 90% da produção cultural na Alemanha (p. 45). A doutrina marxista, por isso mesmo, é uma doença; seus autores são verdadeiros demônios, monstros que planejam liquidar a civilização e transformar o mundo num deserto (p. 49)[4]. Sendo o marxismo a causa da decadência do povo alemão (p. 117), uma das metas do nazismo é a sua aniquilação. Esta luta deve combinar força bruta com uma ofensiva por novas ideias (p. 129). Daí o combate, inclusive físico, à Socialdemocracia, pois esta organização se baseia na doutrina do judeu Karl Marx, exposta no livro O capital. A Socialdemocracia é contra a economia nacional e tem o objetivo de preparar o terreno para o domínio da alta finança internacional, controlada pelos judeus (p. 160).

O método deste livro é o da repetição e da variação sobre o mesmo tema. Exemplos: a teoria marxista é o aborto de um cérebro criminoso; é a tropa de choque dos judeus (p. 240). A obra fundamental de Karl Marx foi escrita exclusivamente para os dirigentes intelectuais da máquina que os judeus montaram para a conquista do mundo (p.348). O judeu pratica uma dialética mentirosa (p. 349) e bolcheviques não representam a honra nem a verdade, mas a mentira, a impostura, o furto, o saque e o roubo. Mentira, calúnia, veneno e corrupção são armas dos judeus (p. 490).

Esta breve seleção já evidencia que, para AH, judaísmo e marxismo estão em simbiose, de modo que o combate a um é o combate ao outro. Mas cabe alertar que, embora AH misture tudo, o trânsito de Socialdemocracia para bolchevismo contém um pressuposto histórico: Socialdemocracia se refere à República de Weimar e bolchevismo à Revolução de Outubro de 1917 e seus desdobramentos. O pesadelo e objeto da fúria e do ódio do líder nazista são as experiências culturais desenvolvidas por socialdemocratas e bolcheviques na Alemanha.

No capítulo das providências para erradicar estes males, o ponto de partida é o diagnóstico de que o erro da burguesia foi ser tolerante com o marxismo (p. 506), por isto a primeira tarefa de um governo nazista tem que ser a de declarar guerra de morte ao marxismo, ou ajustar as contas com os marxistas, que são inimigos mortais do povo alemão. Um exemplo a ser seguido é Mussolini, que [na década de 1920] já tratava de destruir o marxismo para preservar a Itália do perigo do internacionalismo (p. 504).

Este combate não precisou esperar pela chegada dos nazistas ao poder; já estava em andamento quando da redação do livro e um dos desafios dos aguerridos combatentes era explicar ao trabalhador alemão que o bolchevismo é um crime horrendo contra a humanidade (p. 491). Uma tática eficaz muito utilizada foi a conversão de “socialistas” e “comunistas”[5] ao nazismo – troféus amplamente ostentados (pp. 379 e 417).

Outra tática importante é o assalto, ruminado e deliberado, ao repertório dos marxistas. Desde a escolha da cor vermelha para cartazes e bandeiras, até o uso esvaziado de conceitos como assembleia, proletários, camaradas etc. (p. 357), mais a infiltração de funcionários do partido nazista nas organizações de esquerda. A culminação desta tática foi a adoção do nome fantasia para a empresa: Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla em alemão)[6]. No plano da opinião pública, a operação deu muito certo. Tanto assim que os burgueses os confundiram com os marxistas, o que produziu muitas gargalhadas a propósito daqueles idiotas e covardes tentando decifrar o enigma da origem do empreendimento, bem como suas intenções e finalidade (p. 356).

Para AH, não pode haver engano: os nazistas combatem a esquerda por ser marxista e a direita por ser covarde (p. 249). Sua convicção é a de que o povo alemão tem uma missão atribuída pelo Criador e este é o critério para acatar ou rejeitar qualquer tese (p. 160). Por exemplo: é dever do Estado evitar que o povo caia nas mãos de maus educadores, ignorantes e mal intencionados. Por isso também a imprensa tem que ficar sob controle. O Estado não pode cair na armadilha da liberdade de imprensa, que precisa estar a serviço da nação (p. 181). E como a maioria dos jornais – tanto os liberais quanto os marxistas – está nas mãos dos judeus, esta imprensa deve ser destruída, inclusive a poder de granadas (p. 182).

O trabalho  da propaganda nazista é pautado por uma convicção básica: o grande erro alemão no pós guerra foi não ter atribuído incessantemente a culpa de tudo ao adversário, mesmo que isso não correspondesse aos fatos, como de fato não correspondia (p.136). Em tradução livre: mentir e falsear a realidade é uma regra, ou até mesmo um princípio. Ao mesmo tempo, é preciso insistir à exaustão na tese de que é o inimigo quem mente e calunia sempre. Isto também é uma regra elementar. Um exemplo: a prova de que a obra Os protocolos dos sábios de Sião é verdadeira está no fato de que a Frankfurter Zeitung [cujos proprietários são judeus] diz que é uma fraude literária (p. 230). Um dos mantras do livro é justamente este: em seus jornais os judeus mentem sempre; até uma verdade é disfarce para uma falsidade e por isso também é mentira; o judeu é o maior mestre da mentira; a mentira e a fraude são as únicas armas da sua luta (p. 262).

Assumida a prerrogativa de falsear os fatos em nome dos valores defendidos pelo nazismo[7], segue a enumeração dos itens do programa de luta e depois de governo nazistas, dos quais destacamos os seguintes: 1) A educação tem que se pautar pela meritocracia (p. 315); 2) O Estado racista tem que combater o princípio marxista de que um homem é igual a outro; 3) É preciso selecionar os melhores do ponto de vista racial; 4) O princípio tem que ser aristocrático, expressamente contra a democracia (p. 324), porque democracia é sintoma de decadência das nações (p. 330).

Segundo AH, o programa do partido é declaração de fé política e, uma vez estabelecido, não pode ter nenhum item alterado. Cada ponto deve ser tratado como dogma; deve-se seguir o exemplo da igreja católica romana, que não recua em seus dogmas nem diante das verdades científicas, pois é assim que se inspira a fé cega na excelência da doutrina (p. 337). Também é bom avisar que em reunião nazista não existe liberdade de expressão. Só falam os líderes designados e preparados para tal. O Serviço de Ordem, integrado por brutais combatentes, retira do recinto, na base da pancadaria, qualquer um que apenas esboce a intenção de falar (p. 362).

Não pode haver dúvida de que a doutrina nacional socialista tem o direito de se impor a toda a nação alemã (p. 427) e cabe à propaganda cumprir esta tarefa (p. 430): a Pátria em primeiro lugar; em segundo o Partido (p. 446). Todos os demais pontos de vista, sejam partidários, religiosos, humanitários etc. devem ser impiedosamente eliminados (p. 452). Como já ficou dito, os princípios acima devem ser tratados da mesma forma que a religião faz com seus dogmas; o objetivo é constituir uma fé política (p. 281), pois o futuro do movimento nazista depende do fanatismo e da intolerância com que seus adeptos o defendem como a única causa justa e muito superior a quaisquer outros esquemas de caráter semelhante (p. 260). A grandeza de toda organização política que corporifique uma ideia está no fanatismo religioso e na intolerância com que hostiliza todas as outras, pois seus adeptos estão convencidos de que só eles estão com a razão. Por isso mesmo os nazistas não temem a inimizade do adversário; pelo contrário, consideram-na como condição essencial de sua própria existência. Antes desejam o ódio dos inimigos, porque na manifestação deste ódio só há mentira e calúnia (p. 261). Ainda sobre este interesse em despertar o sentimento de ódio nos inimigos, AH é muito claro: a função do discurso e da ação nazistas, pelo conteúdo e pela forma, é provocar a réplica do adversário, quanto mais emocional [leia-se irracional], melhor. A combatividade brutal dos homens da segurança (p. 356) é uma necessária força auxiliar.

Assim como a imprensa judaico-marxista deve ser destruída desde já, a arte bolchevique deve ser proibida em todas as suas manifestações: representações teatrais, exposições de arte etc. (p. 194), pois elas são uma destruição sistemática dos fundamentos da cultura, são a preparação intelectual para o bolchevismo político. Seus apóstolos são degenerados, descarados e embusteiros (p. 196).

Uma vez no poder, o nazismo efetivamente desencadeou a mais vasta guerra de que se tem notícia contra todas as manifestações culturais que rotulou de bolchevismo cultural ou arte degenerada. Esta guerra cultural atingiu os intelectuais, os artistas e as obras que fizeram a paisagem da República de Weimar, nacionais e estrangeiras, com destaque para as de origem soviética, mas sem prejuízo de franceses, ingleses e estadunidenses. Artistas foram presos, conduzidos a campos de concentração e assassinados ou, quando tiveram sorte ou a devida sagacidade, partiram para o exílio. Obras de arte foram confiscadas de museus e destruídas [8] e livros foram queimados em sucessivos espetáculos públicos de bibliocausto. O regime nazista produziu uma série de listas negras, tanto com os nomes dos seus inimigos, quanto com os títulos de obras banidas, a serem destruídas. Só da biblioteca do Instituto de Pesquisa Sexual foram sequestrados 25 mil volumes, que alimentaram a primeira fogueira realizada em Berlim pelos estudantes nazistas. Naquele espetáculo macabro, Goebbels disse, solenemente, entre outras barbaridades, que “vocês, jovens, já têm a coragem de encarar o brilho cruel, de superar o medo da morte e reconquistar o respeito pela morte – é esta a tarefa desta nova geração. Fazemos muito bem de lançar às chamas o demônio do passado.”[9]

Para se ter ideia de quem eram os inimigos da “cultura” alemã, tal como entendida pelos nazistas, enumeremos alguns dos mais conhecidos no Brasil: Sigmund Freud, Albert Einstein, Bertolt Brecht, Kurt Weill, Arnold Schoenberg, Stefan Zweig, Franz Kafka, Lasar Segall, Marc Chagall, Henri Matisse, Van Gogh, Picasso, obviamente Marx, Engels, Lenin, Trostky, Kautsky, Rosa Luxemburg, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Herman Hesse, Thomas Mann, o já citado Lion Feuchtwanger, Romain Rolland, Marcel Proust, Helen Keller, Marlene Dietrich...[10]

Para encerrar esta primeira parte, registrem-se alguns destinos dos protagonistas da infame operação nazista, começando por lembrar que as tropas aliadas que ocuparam e dividiram Berlim queimaram mais de 30 mil volumes de livros nazistas que haviam escapado dos bombardeios que destruíram a cidade.

Hitler, Goebbels (Ministro da Propaganda), Himmler (o Führer da SS-Gestapo, aprisionado pelas tropas inglesas), Goering (Comandante Supremo das Forças Armadas, condenado pelo tribunal de Nuremberg[11]) e Gürtner (Ministro da Justiça do III Reich) se suicidaram.
Heidrich, o carrasco de Praga e vice de Himmler, foi executado pela resistência da Tchecoslováquia. Este episódio constitui o prólogo do filme Os carrascos também morrem, com roteiro de Brecht e direção de Fritz Lang.

Eichmann, o supervisor do Holocausto, fugiu para a Argentina, mas foi localizado e capturado pelo Mossad, o serviço secreto de Israel. Foi condenado e executado em Jerusalém em 1962. Hannah Arendt fez a cobertura jornalística do julgamento e a série de reportagens foi publicada em 1963 no livro Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. Existe farta produção cinematográfica sobre este caso.

Alguns dos integrantes do Ministério da Justiça que participaram da barbárie nazista foram condenados a prisão perpétua, entre os quais Herbert Klemm, Rudolf Oeschy, Franz Schlegelberger e Oswald Hothaug. Este último, personificação da intriga e da crueldade secretas do nazismo, foi caracterizado como sádico e perverso. O filme Julgamento em Nuremberg (Stanley Kramer, 1961) tem por base o processo a que estas figuras foram submetidas.

II
O fantasma do marxismo cultural, já com este nome, teve uma segunda encarnação nos Estados Unidos do início dos anos de 1990, coincidindo com a publicação de estudos críticos e denúncias sobre as ações americanas de contrainsurgência – ou combate a comunistas – principalmente na América Central[12], e em especial na Colômbia. Mas sua pré história é análoga à alemã e também remonta ao período que se seguiu à Revolução de Outubro de 1917. Como já tratamos deste episódio em outro lugar[13], aqui nos limitaremos a referir a lei que deu início à perseguição de militantes de esquerda, o Espionage Act, aprovado em 1917, assim que os Estados Unidos decidiram participar da rapina da Primeira Guerra Mundial (e enviar tropas para combater a revolução soviética). Esta lei marca o início daquilo que ficou conhecido como o primeiro red scare[14]. Em 1918, por exemplo, foi aprovada uma nova lei, o Smith Act, que autorizava todo tipo de violências contra as organizações dos trabalhadores e, sob as ordens do Procurador Geral da República, um certo Palmer, foram realizadas batidas (que ficaram conhecidas como Palmer Raids), prisões, deportações etc.. A literatura a respeito deste primeiro red scare dá o ano de 1921 como o do seu encerramento oficial, mas um fato histórico muito posterior – a execução de Sacco e Vanzetti no dia 23 de agosto de 1927 – é o verdadeiro ponto final desta campanha.

Embora houvesse episódios de atentados diversos à liberdade de expressão, o primeiro red scare não deu maior importância à esfera cultural mas, no âmbito da propaganda, em seu auge contou até mesmo com a colaboração de imigrantes russos (inimigos da Revolução de Outubro) que, com o patrocínio do Estado e de Henry Ford, traduziram a fraude literária Os protocolos dos sábios de Sião para melhor produzir a mesma fusão alemã entre a Revolução de Outubro e uma “conspiração judaica” mundial, que persiste até hoje nos Estados Unidos como referência da extrema direita[15].

A segunda edição da ofensiva da burguesia americana contra os trabalhadores  (o segundo red scare) foi desencadeada na segunda metade dos anos de 1930 e atravessou a década de 1960. A palavra que lhe corresponde é macartismo, embora o senador de triste memória, cujo sobrenome virou substantivo, só tenha aparecido para roubar a cena nos anos de 1950. Agora a prioridade passa a ser a luta contra a “infiltração comunista” na administração pública, no sistema educacional e na indústria cultural.

Um dos seus primeiros capítulos envolveu a criação, em 1938, de uma Comissão Parlamentar para a investigação de atividades comunistas no Estado e na esfera pública. Trata-se da tristemente famosa HUAC – House Un-American Activities Committee – inicialmente presidida por Martin Dies[16], um deputado democrata do Texas. O primeiro alvo da sanha de Dies foi o programa desenvolvido pelo governo Roosevelt (também democrata, é bom não esquecer) para abrir frentes de trabalho na esfera da cultura, no âmbito dos demais programas do New Deal. Uma das instituições criadas para este fim se chamou Federal Theatre[17] e, na primeira oportunidade, Dies convocou para depor a coordenadora deste Departamento, suspeita de filiação comunista. Para que se tenha uma ideia do nível cultural dos integrantes da Comissão, basta referir duas das perguntas a que a constrangida Hallie Flanagan teve que responder: “Christopher Marlowe [contemporâneo de Shakespeare] é comunista? Eurípides [o poeta trágico] faz propaganda da luta de classes?”[18].

Esta primeira investida do Estado americano contra a “infiltração comunista” no serviço público foi muito bem sucedida: a HUAC produziu um relatório que levou ao corte das verbas federais para as artes e devolveu os artistas de todos os setores ao desemprego, sobretudo os do teatro.

A crônica dos feitos da HUAC inclui a denúncia (e depois processo) em 1940 de artistas como Humphrey Bogart, James Cagney, Katharine Hepburn, Melvyn Douglas e Frederic March. Estes foram inocentados, mas algum tempo depois Lionel Stander foi condenado (por comunismo) e por isto demitido da Republic Pictures. Já se pode ver que a “guerra anticomunista” estadunidense se trava preferencialmente na indústria cultural.

Houve um período de hibernação da HUAC durante a Segunda Guerra Mundial, pois os Estados Unidos se aliaram à União Soviética e efetivamente muitos comunistas americanos participaram sem restrições do combate à ameaça que Hitler representava para o mundo. Para não entrar em detalhes que nos levariam muito longe, basta registrar que inúmeros artistas alemães produziram filmes de propaganda antinazista em Hollywood. Um exemplo é o já referido Os carrascos também morrem (1943), de Bertolt Brecht e Fritz Lang.

Encerrada a guerra, o anticomunismo americano reemerge já no ano de 1945. É deste ano a fundação do AMERICA FIRST PARTY (esta denominação foi transformada em slogan na campanha de Trump). Abertamente neofascista, este partido retomou a campanha de denúncias de judeus, comunistas e simpatizantes da União Soviética em Hollywood. Em 1947 é declarada a Guerra Fria e imediatamente temos a fundação da Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (por Walt Disney, entre outros). Do primeiro panfleto alertando para 0 perigo da propaganda comunista subliminar, destacamos alguns dos seus mandamentos: 1) não caluniar o sistema da livre iniciativa; 2) não caluniar empresários; 3) não caluniar a riqueza; 4) não caluniar a busca do lucro; 5) não divinizar os pobres; 6) não glorificar o coletivo. (Temos boas razões para acreditar que este hexálogo continua em vigor pelo menos no cinema, na televisão e nos jornais americanos). Data deste início da Guerra Fria a transformação em tabu de palavras como marxismo, socialismo e comunismo nos Estados Unidos. Pelo menos duas gerações se formaram sem ouvir menção a estas palavras e a universidade americana até hoje, em sua esmagadora maioria, não dispõe de professores críticos do capitalismo em seus cursos de economia.

Nesta nova conjuntura, a HUAC volta à ativa, agora ávida do sangue dos aliados da véspera. Seu momento de maior visibilidade foi o capítulo conhecido como “Os dez de Hollywood”, uma lista de roteiristas convocados para depor perante a comissão e, principalmente, responder à pergunta “o senhor é ou foi filiado ao Partido Comunista?” Dentre os convocados, atualmente um dos mais conhecidos no Brasil é Dalton Trumbo, que recentemente teve livro e filme dedicados a esta amarga experiência de denunciado e condenado a um ano de prisão, mais a proibição de trabalhar na indústria cinematográfica (que foi devidamente contornada pelo recurso aos “testas de ferro” – pessoas que se dispunham a emprestar seus nomes para os roteiros que continuaram a ser escritos). Produziu-se neste contexto uma lista negra com cerca de três centenas de “suspeitos”. Para ficar nos mais conhecidos entre nós, limitemo-nos aos seguintes: Howard Koch (roteirista de Casablanca, de 1942), Bertolt Brecht, Hans Eisler, Jules Dassin (diretor de Nunca aos domingos, filmado já no exílio, em 1960), Edward G. Robinson, Orson Welles, Joseph Losey (diretor de Galileu, de 1975, baseado na peça de Brecht e filmado na Inglaterra, país que Losey adotou), Charlie Chaplin, Elia Kazan, Lillian Hellmann, Stella Adler, Leonard Bernstein, Dashiel Hammet, Dorothy Parker, Marc Blitztein, Lena Horne, Langston Hughes, Arthur Miller e Harry Belafonte. Ainda merecem destaque, por seus feitos posteriores ao mar de lama anticomunista, Ring Lardner Jr., que escreveu o roteiro de M.A.S.H., filme de 1970 dirigido por Robert Altman, e Martin Ritt, diretor de Testa de ferro por acaso (1976), cujo roteiro foi escrito por Walter Bernstein, igualmente vítima da caça aos “comunistas” em Hollywood e participante da tática dos “testas de ferro”.

Como ficou dito, este período de caça às bruxas, que se encerrou oficialmente em 1975, acabou tendo nome próprio – macartismo – em parte porque o senador aprofundou os métodos da difamação, dos constrangedores interrogatórios televisionados, das inferências hostis e das falsas acusações.[19] Este episódio do red scare merece ser encerrado com duas de suas derrotas. A primeira é moral. Em 1953 o ator acima referido, Lionel Stander, fez à HUAC o seguinte pronunciamento, ainda hoje válido:

Tenho notícia de um grupo de fanáticos que está tentando destruir a Constituição dos Estados Unidos ao impedir que artistas e outros tenham o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade sem o devido processo legal [...] Posso citar nomes e exemplos, pois sou uma das suas primeiras vítimas. É um grupo de ex-fascistas, militantes do partido AMERICA FIRST e antissemitas. É gente que odeia todo mundo, inclusive negros, minorias e muito provavelmente a si mesma. Essa gente está envolvida numa conspiração à margem dos processos legais para minar os conceitos fundamentais sobre os quais se baseia a nossa democracia[20].

A segunda derrota é real e já dá notícia da mudança dos ventos: em 1961, o cantor Pete Seeger foi condenado, recorreu e venceu a causa em 1962. O recuo do segundo red scare teve causas políticas e sociais muito relevantes, a começar pela luta por direitos civis iniciada na década de 1950 e vitoriosa em 1964 (com a lei que assegurou o direito ao voto e o fim da segregação dos afroamericanos). Este processo de lutas verdadeiramente épicas, que vai de Rosa Parks, Mahalia Jackson, Nina Simone e Martin Luther King aos Panteras Negras, aliado ao movimento estudantil, à luta contra a guerra do Vietnam e ao feminismo pode ser sintetizado na expressão New Left. Mas a contraofensiva dos herdeiros do red scare já se verifica na eleição de Ronald Reagan à presidência, na aurora da campanha publicitária do “neoliberalismo”. A hegemonia então reconquistada foi abalada com a crise instaurada em 2008, e ainda hoje em curso, mas persiste aos trancos e barrancos. O red scare da década de 1990 é uma versão muito pálida dos dois primeiros, mas não menos ameaçador, pois já conseguiu até eleger o atual presidente daquele país.[21]

Esta última encarnação (esperando que seja mesmo a última) do red scare se caracteriza pelo mesmo baixo nível do nazismo, do palmerismo e do macartismo. Segundo Richard D. Wolff[22], os mais proeminentes porta-vozes atuais do combate ao marxismo cultural (agora assim designado) são Steve Bannon e o canadense Jordan Peterson. Por seu papel estratégico nas nossas eleições presidenciais de 2018, o primeiro dispensa apresentações; Jordan Peterson é uma boa síntese do intelectual conservador: dispõe-se, por exemplo, a debater marxismo sem ter lido uma única obra de Marx, como ficou mundialmente evidenciado em recente debate com Slavoj Zizek (disponível no You Tube). Para Richard Wolff, em Jordan Peterson é evidente a constrangedora combinação de ignorância e pretensão, pois todas as suas proposições a respeito de Marx e do marxismo são simplesmente falsas.

Quanto à expressão “marxismo cultural”, como já ficou dito, seu uso data do início da década de 1990. Seus primeiros usuários são cristãos fundamentalistas, ultraconservadores, supremacistas – enfim, a extrema direita estadunidense. Uma das mais eloquentes manifestações da tendência é o movimento  Dark Enlightenment (que não se perca pelo nome)– antítese assumida do iluminismo, que prega a moral vitoriana do século XIX, uma ordem tradicionalista e teocrática, declara guerra aberta a todo conhecimento científico e, em primeiro lugar, ao marxismo cultural. Os objetos mais imediatos de sua fúria conservadora são o feminismo, a ação afirmativa, a liberação sexual, a igualdade racial, o multiculturalismo, os direitos LGBTQ e o ambientalismo[23].

Para esta horda de reacionários, incluídos os integrantes do movimento Tea Party, a instituição precursora do marxismo cultural foi a Escola de Frankfurt pelas seguintes razões: imigrou para os Estados Unidos em sua fuga ao nazismo, é constituída por judeus, combinou as teorias dos judeus Marx e Freud e, sobretudo, promoveu a arte moderna (combatida pelos nazistas, como já vimos), contaminando o espírito da contracultura dos anos de 1960. Em suma, a Escola de Frankfurt seria uma instituição de fachada do comunismo.

Trump e asseclas acreditam firmemente que a cultura estadunidense é dominada pelo marxismo cultural, o que é energicamente desmentido por gente como Noam Chomsky[24], Paul Buhle, Michael Denning, Richard Wolff e inúmeros outros. Para os reacionários assumidos daquele país, “politicamente correto” é marxismo cultural, ou marxismo transposto da economia para a cultura; suas origens estão no bolchevismo cultural e, portanto, esta pauta é conspiração contra os sagrados valores americanos (ver mandamentos da Associação hollywoodiana de Walt Disney e bando, acima).

Em 1999, o professor Martin Jay (conhecido no Brasil por seu livro sobre a história da Escola de Frankfurt, A imaginação dialética) caiu numa armadilha montada por William Linch, um militante da causa reacionária: de boa fé, gravou um depoimento para um programa televisivo sobre a Escola de Frankfurt. Devidamente adulterado, este depoimento foi utilizado para “demonstrar” as teses a respeito do marxismo cultural. Esta experiência chocante é por ele relatada em detalhes no ensaio Dialetics of Counter-Enlightenment: The Frankfurt School as Scapegoat of the Lunatic Fringe[25]. Dentre os capítulos mais eloquentes da campanha obscurantista, e lembrando que Marcuse foi mesmo o pensador favorito das publicações da New Left, destaquem-se do relato de Martin Jay as seguintes referências: Patrick Buchanan publicou em 2001 o livro The Death of the West, no qual, reciclando as teses do bolchevismo cultural, afirma que a Escola de Frankfurt propaga o marxismo cultural; em 1992, Michael Minnicino publicou no jornal Fidelio o artigo New Dark Age: Frankfurt School and Political Correctness; e, por último, o próprio “documentário” televisivo do qual Martin Jay participou. Detalhe: William Linch dirigia na ocasião o Center for Cultural Conservatism.

Para Martin Jay, a tese fundamental destes reacionários é a de que todos os males da cultura – feminismo, ação afirmativa, liberação sexual, direitos LGBTQ, decadência da educação tradicional e ambientalismo – são responsabilidade da insidiosa influência da Escola de Frankfurt. Lukács e Gramsci também são responsáveis, mas têm peso menor porque não imigraram para os Estados Unidos. Os adeptos do marxismo cultural são acusados de ensinar sexo e homossexualismo às crianças, promover a destruição da família, controlar os meios de comunicação e promover o engodo de massas, esvaziar as igrejas e promover o consumo de bebidas. Enfim: marxismo cultural seria a própria subversão da cultura ocidental. Como se pode ver, a maior parte destas acusações – observa Martin Jay – provém de um pântano de demagogos de extrema direita, totalmente desinformados e muito deficientes no quesito lógica. Sua especialidade é disseminar disparates, absurdos e despropósitos. É evidente a semelhança entre o que dizem e o que dizia seu protoguru Adolf Hitler. A Escola de Frankfurt foi promovida a bode expiatório de uma compreensão completamente arruinada do mundo, de uma visão patética e desorientada. Acrescentemos: pautada por uma insaciável sede de vingança dos típicos desiludidos do american dream que se voltaram exatamente contra aqueles que sempre o denunciaram.

A expressão “marxismo cultural” desfruta da duvidosa honra de ter entrado na cena oficial brasileira através do programa da campanha de Bolsonaro à presidência da república em 2018 (disponível na internet), desde já contando com os bons serviços de Steve Bannon, como sabem todos os que acompanharam aquela momentosa operação política. Por esta determinação, nem ao menos merece ser tratada como item separado. Em outras palavras: não passa de extensão à neocolônia (por opção) da pauta metropolitana, graças ainda aos bons serviços da alfândega ideológica instalada no Estado da Virginia, responsável pela péssima tradução dos dogmas americanos. Isto também explica a profundidade de pires das suas manifestações por estas plagas.

Na página 5 do programa dos novos lacaios da neocolônia, o candidato ao cargo titular e à libré mais vistosa promete livrar o país de “ideologias perversas” e na página 8 nos deparamos com a seguinte informação: “Nos últimos trinta anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo se uniu [sic[26]] às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira.” Na página 10, tropeçamos  na promessa: “Após 30 anos em que a esquerda corrompeu a democracia e estagnou a economia, faremos uma aliança da ordem com o progresso: um governo Liberal Democrata.” Dentre as providências, lemos à página 48 que “Além de mudar o método da gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire.”

É bem verdade que esta operação (em andamento) de guerra ideológica declarada ainda contou com os bons serviços da Santa Madre Igreja, que desde os anos de 1990 desfraldou para todo o mundo a bandeira do combate à ideologia de gênero, num assalto similar ao realizado pelos nazistas ao repertório marxista e análogo ao combate travado contra a “ideologia comunista” por nossa penúltima ditadura (1964-85). Um dos mais importantes ideólogos desta empreitada foi o cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, que de 1981 a 2005 comandou uma importante divisão do Vaticano historicamente conhecida como Inquisição e mais recentemente denominada Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Saiu da forja da reação católica a tese de que “ideologia de gênero” é um conjunto de ideias falsas, marxistas, que objetivam aniquilar a “família natural”, para tanto fomentando a libertinagem, a união homoafetiva, a pedofilia [como se eles mesmos não fossem seus mais contumazes praticantes]...[27]

Para enfrentar esta pouco surpreendente aliança entre extrema direita católica, extrema direita evangélica e extrema direita propriamente dita (ou neofascismo) em guerra declarada às expressões culturais da multissecular luta pelo esclarecimento e pelo socialismo, estamos desafiados a apresentar as nossas armas.

III
No 18 Brumário, Marx faz uma observação muito pertinente para a situação em que nos encontramos: “As revoluções proletárias [...] se autocriticam constantemente, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçarem de novo; escarnecem com impiedoso rigor as meias medidas, fraquezas e misérias dos seus primeiros esforços; parecem derrubar seu adversário só para que este arranque da terra novas forças e diante delas se erga novamente, ainda mais gigantesco; recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos, até se criar uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”[28].

Períodos como o que estamos atravessando, de ascensão do fascismo, nos colocam diante da necessidade de recomeçar tudo de novo. Aqui nos limitaremos ao trabalho da memória na frente cultural com o próprio marxismo como elemento central para nos dar régua e compasso.

Lembremo-nos, por exemplo, de que a tradição socialista e comunista é rica em confrontos, divergências e polêmicas infindáveis. Deles é que o marxismo tira a sua força e capacidade de avançar. Para uma pequena amostra desta ampla matéria, basta remeter a clássicos como o Manifesto comunista e Do socialismo utópico ao científico, este último da lavra de Engels. Nestas duas obras nos defrontamos com o socialismo reacionário dos aristocratas que sonham com a volta ao feudalismo, o socialismo conservador da burguesia, além do socialismo e do comunismo crítico-utópicos. Socialismo científico vem a ser uma denominação entre outras do marxismo, que suprassume todos os conceitos anteriores.

O próprio marxismo acabaria produzindo outra multiplicação de denominações. Por exemplo: marxismo legal, surgido na Rússia do século XIX, os marxismos economicista, reformista e/ou revisionista; marxismo empedernido (na formulação de Lenin em 1906); marxismo ortodoxo (na concepção de Lukács), o marxismo-leninismo dos stalinistas e assim por diante, até culminar na relativamente recente formulação de Perry Anderson – marxismo ocidental. Isto sem falar em outra preciosa contribuição inglesa, a de Raymond Willliams, que impulsionou a formação  da ala do materialismo cultural[29], atuante até hoje na Inglaterra e nos Estados Unidos. Todas estas “escolas” constituem a nossa herança. Temos que no mínimo cultivar dialeticamente a sua memória pois, como aprendemos com Hegel, é com ela que forjaremos as armas com que confrontar os neoassaltantes de beira de estrada atualmente na ativa.

Sobre marxismo ocidental e materialismo cultural, vale a pena fazer uma pausa, pois a nossa hipótese é que os luminares do “marxismo cultural-espectral” assaltaram a obra de Perry Anderson[30], assim como a produção dos discípulos angloamericanos de Raymond Williams. Anderson subsume ao conceito de marxismo ocidental autores como Gramsci, Lukács, Escola de Frankfurt... Não são os mesmos mobilizados pela versão fantasmática? Outra demarcação do marxista inglês: os integrantes do marxismo ocidental atuariam de preferência no âmbito da cultura e do debate teórico (exceção feita a Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, cuja principal contribuição ao marxismo cultural – incluídas as reflexões sobre Maquiavel – foi produzida no cárcere fascista e, por isto mesmo, à revelia), enquanto os marxistas  tout  court (os clássicos: Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Rosa Luxemburg, Trotsky...), além de debaterem amplamente as questões culturais, também eram ligados à militância revolucionária, ou seja, vinculados a partidos, tanto da tradição socialista quanto da comunista[31], o que não se aplica aos integrantes da Escola de Frankfurt.

Dando continuidade a esta primeira pausa, não é demais lembrar uma outra consideração de Engels a propósito da luta de classes em todas as frentes, inclusive a cultural: “todas as lutas históricas, quer se processem no domínio político, religioso, filosófico, ou qualquer outro campo ideológico, são na realidade apenas a expressão mais ou menos clara de lutas entre as classes sociais”[32].

Luta de classes é a principal marca registrada do marxismo, mas é bom não esquecer que sua mais importante determinação é a da crítica ao capitalismo, cifrada no subtítulo do Capital: crítica da economia política. Importa insistir nisto, porque nosso ponto de honra é a luta pelo fim do sistema capitalista, de modo que o inimigo – que defende a continuidade do capitalismo – tem bons motivos para temer os comunistas. Somos inimigos mesmo: nós combatemos as relações de produção capitalistas, a verdadeira causa de todas as misérias – econômicas, sociais, políticas e culturais – atualmente existentes. Sendo assim, podemos e devemos dar razão a eles quando brandem o “marxismo cultural” contra nós, mas precisamos corrigir as suas falácias, falta de percepção e seus erros elementares, decorrentes de medo, ignorância e incapacidade para o pensamento.

Dialeticamente, para um marxista, o marxismo cultural (sub specie spectrum) nada mais é que a fusão operada pelo inimigo entre marxismo ocidental e materialismo cultural, numa operação ideológica que requenta, além de mal e porcamente reciclar, a marmita nazista. Segue-se que, para além do recurso aos nossos clássicos, devemos incorporar ao trabalho do pensamento na frente cultural todos os autores e obras que Perry Anderson examinou em seu livro – com destaque particular para a Escola de Frankfurt e Gramsci –, bem como os procedimentos e sugestões de Raymond Williams em sua profícua trajetória de pensador das relações entre cultura e luta de classes na Inglaterra. Estudar, por exemplo, O eclipse da razão, de Max Horkheimer e o capítulo “Indústria cultural, o iluminismo como mistificação das massas” do livro Dialética do iluminismo, também de Adorno e Horkheimer. Estes trabalhos foram elaborados num contexto de reflexão sobre a pergunta “como foi possível o surgimento da barbárie nazista?”. Para uma visão ampla do trabalho dos frankfurtianos, os brasileiros ainda temos a sorte de dispor da antologia publicada pela editora Abril na coleção Os Pensadores, Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas, trabalho coletivo que contou com o enérgico apoio (consultoria) de dois grandes marxistas culturais especialistas no assunto: Otília e Paulo Arantes.

Gramsci, em seus Cadernos do cárcere, tem inspiradoras análises dos desafios postos aos intelectuais pela presença e dominação cultural da Igreja Católica na Itália[33], cuja condição de empresa privada que obteve status de Estado graças aos fascistas, (pelo Tratado de Latrão em 1929), foi examinada no artigo “O Vaticano”, publicado na revista Correspondência Internacional em 1924. Ali Gramsci afirma sem meias palavras que o então papa Pio XI apoiou o golpe de estado do fascismo e declara que, além de contar em seus quadros com indivíduos de habilidade consumada na arte da intriga, o Vaticano é a maior força reacionária da Itália e um inimigo internacional do proletariado.

Encampando, além das acima enumeradas, as sugestões de Raymond Williams, o campo prioritário de atuação dos marxistas culturais vem a ser a esfera da cultura pautada pela luta de classes em todos os seus desdobramentos e seu olhar deve estar direcionado preferencialmente para os artistas e obras que, ao longo da história do capitalismo, tematizaram as lutas pela emancipação dos trabalhadores em todas as suas modalidades, sem prejuízo do interesse por aquelas obras que, a exemplo do que fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, desmascaram os comportamentos da classe dominante.

É assim que temos basicamente dois momentos nesta produção cultural: a da luta contra a escravidão propriamente dita – em especial a dos africanos, mas no caso de países de continentes como o americano também a dos nativos – e a da luta contra a escravidão salarial (esta é uma das expressões que Marx utiliza em diversas obras, inclusive O Capital). A causa pela qual lutamos é libertar o proletariado das relações de produção capitalistas – nunca é demais insistir –, e desde que foi fundada a Internacional Comunista (1919), um desdobramento que sintetiza estas pautas é a luta contra a dominação colonial. Portanto, aos marxistas culturais interessam todos os episódios de confronto com o colonialismo e o imperialismo, a começar pela Revolução do Haiti (1791-1804), até as vitoriosas guerras que os vietnamitas travaram contra Japão, França e Estados Unidos, passando por revoluções como a cubana e pelas guerras de libertação de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, entre outras. E só para adiantar um tópico: você sabia que o sucesso mundial de 1967, Pata pata, de Miriam Makeba, apoiada por Harry Belafonte, serviu para arrecadar fundos para tirar lutadores contra o apartheid das prisões sul africanas? Eis uma das milhares de histórias que interessam a um militante comunista do autêntico marxismo cultural!

Marxismo cultural pode muito bem servir de senha para nos voltarmos ao que realmente interessa no plano cultural. Enumeremos alguns exemplos para começo de conversa. Como estamos no Brasil, nossa primeira prioridade é a luta de resistência dos africanos às condições de escravidão, cuja figura mais antiga é o quilombo[34]. Palmares e Zumbi são ainda hoje fonte inesgotável de inspiração. Marxistas culturais brasileiros têm em Zumbi uma espécie de ancestral e já contam com respeitável tradição de abordagens da sua luta, com erros e acertos. Neste item entram evidentemente Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, autores da obra prima Upa, neguinho!, gravada por Elis Regina e integrante do espetáculo Arena conta Zumbi. Mas não podemos nos esquecer de que foi Abdias Nascimento[35] quem abriu os olhos do jovem Augusto Boal para importância desta questão.

Ainda no capítulo da denúncia e da luta contra a escravidão, o marxismo cultural tem muito o que aprender com os afroamericanos. Para ficar só num exemplo, existe um spiritual, Swing low, sweet chariot, que foi adotado pelos abolicionistas como senha para a fuga organizada de escravos. Uma organização clandestina (a Underground Railroad, ou estrada clandestina) fazia chegar a determinada plantação a notícia de que uma carroça passaria à noite para levar os fugitivos designados. Durante o dia, o líder dos trabalhadores cantava “swing low, sweet chariot” (balance de leve, querida carroça) e o coro respondia “coming for to carry me home” (que vem para me levar para casa – casa, aqui, significa liberdade). Todos ficavam sabendo que a carroça passaria naquela noite e tomavam as providências para a fuga ser bem sucedida. O Brasil teve organizações similares, como Os tenentes do diabo (Rio de Janeiro) que publicamente aparecia como associação carnavalesca, mas que ao mesmo tempo comprava cartas de alforria e colaborava em fugas organizadas.

Poetas europeus também participaram desta luta. Um dos melhores exemplos é Heinrich Heine (1797-1856), amigo de Marx, que escreveu o poema Navio negreiro, no qual denuncia a violência do tráfico, tanto no aprisionamento quanto na travessia do mar, e expõe a frieza dos traficantes em seus cálculos. Parte dele foi reaproveitada pelo nosso Castro Alves em poema de mesmo nome. Machado de Assis imortaliza o poema de Heine em passagem inesquecível do seu Memorial de Aires (1908), quando o diplomata aposentado constata em seu diário que o dia é 13 de maio.

A luta contra a herança do escravismo no Brasil e no mundo ainda está em andamento e precisa integrar de modo enérgico o conjunto das referências do marxismo cultural. Assim como a Jamaica forjou um C.L. R. James, cuja obra abarca desde Notas sobre dialética (1948) até Os jacobinos negros (1963), os Estados Unidos têm uma miríade de militantes, poetas e escritores de leitura obrigatória. Obviamente, Angela Davis e Bobby Seale fazem parte desta galeria, mas também Langston Hughes, Eugene O’Neill, Malcolm X, Stokely Carmichael e Martin Luther King.  Nina Simone entra como a compositora da trilha sonora da luta por direitos civis e Billie Holiday, que em 1939 gravou Strange Fruit para denunciar linchamentos de afroamericanos nos estados sulistas, também deve fazer parte da sonoplastia do marxismo cultural. Dentre os brasileiros, cabe destaque a Luís Gama, José do Patrocínio, Abdias Nascimento e todos os seus discípulos (de Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo a Érica Malunguinho), mas isto apenas para começo de conversa.

No âmbito da luta cultural do proletariado contra a escravidão salarial, da qual Brecht é uma das mais eloquentes sínteses, entram todos os escritores naturalistas, a começar por Emile Zola e Maxim Gorky. Do primeiro vale a pena destacar Germinal (1885), que trata da organização dos trabalhadores numa prolongada greve de mineiros que contou até com o apoio da Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada por Marx, entre outros, em 1864, também conhecida como Primeira Internacional). O assunto central do romance é a greve que evolui para uma rebelião violentamente massacrada pelas forças da ordem. De Gorky (1868-1936) destaque-se o romance A mãe (1906) que mostra como uma mulher evolui de analfabeta e despolitizada a militante fundamental na luta clandestina depois de acompanhar a evolução política do próprio filho, que morre num confronto com as forças da ordem. Brecht adaptou este romance para o teatro.

Para encerrar este primeiro passeio, cabe fazer uma homenagem a Augusto Boal, também discípulo de Paulo Freire, enumerando alguns nomes daqueles que podemos chamar de integrantes do arco-íris do marxismo cultural sem precisar pensar duas vezes (desde já insistindo: é lista de memória e sem pretensão de ser exaustiva).

Dentre os brasileiros, além dos já citados, temos Jorge Amado, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Patrícia Galvão, Joracy Camargo (todos escritores-militantes), Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Emília Viotti, Fernando Novais, Anatol Rosenfeld, Chico de Assis, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Ruy Guerra (este foi importado de Moçambique, mas se abrasileirou rapidamente), Eduardo e Lauro Escorel, Leon Hirszman, Oduvaldo Vianna Pai e Filho, Solano Trindade, João das Neves, Clóvis Moura, Chico Buarque, Flávio Império, Michel Löwy, Roberto Schwarz, Maria Bethânia, Ivone Lara, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus...

Nas Américas temos Rigoberta Menchú (Guatemala), Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Ariel Dorfman, Violeta Parra e Patricio Guzmán (Chile), Rubén Darío (Nicarágua), Miguel Angel Astúrias, Carlos Fuentes, Frida Kahlo e Diego Rivera (México), Atahualpa del Cioppo e Mário Benedetti (Uruguai), Sergio Cabrera, Gabriel García Márquez, Santiago Garcia e Enrique Buenaventura (Colômbia), Leonidas Barletta, Oswaldo Dragún, Fernando Solanas e Eduardo Pavlovsky (Argentina), José Martí, Roberto Fernandez Retamar (Cuba), Aimé Césaire (Martinica), César Vallejo, José María Arguedas e José Carlos Mariátegui (Peru), Henry Sylvester Williams (Trinidad), Harriet Taubman, Frederick Douglass, James Brown, Mother Jones, Joe Hill, John Reed, Louise Bryant, Paul Robeson, Elisabeth Gurley-Flynn, Jack London, John dos Passos, Joan Baez, Woody Guthrie, W.E.B. Dubois, Elmer Rice, Harry Braverman, Frederic Jameson, Sally Fields, James Baldwin, Spike Lee (Estados Unidos)...

Note-se que ainda nem começamos a pensar em nossos clássicos, grandes cientistas, pensadores e filósofos que, de fins da Idade Média ao século XIX, vêm enfrentando as trevas cultivadas pela Igreja Católica (e agora também pelas evangélicas). É o caso de Maquiavel, Giordano Bruno, Galileu e Copérnico, René Descartes, Voltaire (que insistia sobre a necessidade de “massacrar a infame”), Diderot, Laplace (o astrônomo que dispensava a hipótese de Deus), David Strauss, Feuerbach, Newton, David Hume, Kant, Charles Lyell,Charles Darwin, Thomas Huxley, Ernst Haeckel... Para o século XX, podemos adotar Cheikh Anta Diop como símbolo da pesquisa mais relevante: o marxismo cultural se considera herdeiro de todas as conquistas da ciência e assume seu compromisso irrevogável com a verdade – tanto a científica quanto a histórica – porque sabe que a mentira tem um papel reacionário. Reafirma assim seu compromisso com a legítima defesa da humanidade.
Como lembrou o companheiro Carlos Russo Jr., citando Gramsci, em recente matéria do site “Espaço Literário Marcel Proust”, “o fascismo incorpora como nunca a servidão, a mentira e o terror, flagelos que buscam fazer reinar o silêncio entre os homens, obscurecendo-os uns aos outros e impedindo que se reencontrem no único valor que poderia salvá-los: a longa cumplicidade cujo limite é precisamente o poder de revolta dos homens em conflito contra o despotismo e a opressão.”[36]

FIM DO PRIMEIRO TEMPO

Quando os nazistas inventaram o fantasma do bolchevismo cultural, para variar cometeram a falácia da generalização apressada (marca registrada de toda abstração indevida que tem a intenção de bloquear o debate). Atiraram num fantasma quando na realidade o bolchevismo cultural – entendido como a revolução bolchevique no plano da cultura – estava muito presente na União Soviética e também na Alemanha, sobretudo nas figuras de Asja Lacis (leta), Meyerhold, Tretiakov (russos) e de Piscator, Hans Eisler, Max Valentin (alemães), entre inúmeros outros. O fato histórico é que havia dentre os bolcheviques, desde outubro de 1917, uma ala dedicada a enfrentar os problemas culturais que os marxistas debatem desde que existem e a Revolução colocara na ordem do dia: órfãos da guerra e da revolução, fome, analfabetismo, questão feminina, integração do proletariado e seus filhos à vida cultural (escolarização, todas as modalidades de arte, teatro, cinema, literatura etc., etc., etc.).

A luta cultural da Revolução de Outubro ainda é amplamente desconhecida entre nós e por isso vale a pena começar do começo quando o assunto é bolchevismo cultural. Os bolcheviques que assumiram a linha de frente nesta luta foram Lunatcharski e Krupskaia (comissários do povo para a educação e cultura – o Narkompros). Uma semana antes do 25 de outubro de 1917, Lunatcharski deu o primeiro passo na tarefa de organizar artistas e intelectuais para a luta que se avizinhava. Com os mais aguerridos, fundou a Proletkult (cultura proletária), organização que em pouco tempo (menos de um ano) arregimentava cerca de 400 mil pessoas[37]. Krupskaia dedicou-se às crianças, às mulheres e ao programa de erradicação do analfabetismo. Seus textos disponíveis no site marxists.org mostram o alcance do seu compromisso com a construção de um futuro sem as marcas horrendas da ideologia burguesa tanto no que se refere à autonomia das mulheres quando na educação de crianças experimentando a igualdade de gênero (meninos e meninas em pé de igualdade e camaradagem na organização chamada Jovens Pioneiros) desde a mais tenra idade. O exato oposto do escotismo, adotado com entusiasmo por fascistas e nazistas (meninos e suas violências de um lado e meninas se preparando para a submissão aos homens e para a maternidade do outro). Merece destaque, no trabalho com crianças, a atuação de Asja Lacis, que desenvolveu, com apoio de Meyerhold, métodos de resgate de crianças abandonadas através do teatro e depois ajudou os camaradas alemães a organizarem até grupos infantis de agitprop. Ainda na questão feminina temos na linha de frente Alexandra Kollontai e Inessa Armand que publicaram textos a respeito da necessidade de libertar as mulheres da escravidão doméstica e da submissão aos homens empenhando-se na criação de restaurantes, lavanderias e creches de modo a liberar o tempo das mulheres para a ação política. Inessa Armand cuidou até do trabalho feminino na retaguarda do exército vermelho durante a guerra civil[38].

Dentre os incontáveis bolcheviques da frente cultural – dramaturgos, diretores teatrais, cineastas, artistas plásticos – destaquemos ainda Tretiakov, o exemplo de “artista militante” na expressão de Walter Benjamin[39]; Meyerhold, que dirigiu a divisão de teatro do comissariado da educação e cultura; Eisenstein, Dziga Vertov e Pudovkin que ainda hoje dão régua e compasso ao cinema que pretende ser relevante; Rodchenko e Stepanova, que desenvolveram na teoria e na prática as propostas do construtivismo; e, evidentemente, Maiakovsky, o poeta que a plenos pulmões cantou a Revolução em prosa e verso. São dele os versos inesquecíveis: COME ANANÁS, MASTIGA PERDIZ. TEU DIA ESTÁ PRESTES, BURGUÊS.


[1] HITLER, Adolf. A minha luta. Tradução de Jaime de Carvalho. Porto: Edições Afrodite, 1976.
[2] Testemunha presencial e crítico de primeira hora da ascensão do partido nazista em Munique, Lion Feuchtwanger era escritor de grande sucesso já nos anos de 1920. Colaborou com Brecht na redação da peça A vida de Eduardo II e depois, no exílio na Califórnia, em As visões de Simone Machard. Em 1933, devidamente expatriado, teve a honra de ser declarado “Inimigo número um do Estado alemão”. Terminados a guerra e o pesadelo nazista, Feuchtwanger permaneceu como asilado político nos Estados Unidos, onde morreu em 1958.
[3] A Bauhaus, assim como expressionismo e abstracionismo, também entrou na mira dos nazistas, que adicionalmente combatiam temas das áreas social, comportamental e científica, como a luta pelo controle da natalidade e a luta contra a teoria da relatividade.
[4] Os documentários sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, especialmente sobre a transformação da Alemanha em uma montanha de ruínas, mostram que Hitler quase cumpriu o programa que atribuía ao inimigo...
[5] O emprego das aspas se explica pela dúvida a respeito das referidas “conversões”.
[6] Desde que Hitler foi alçado à condição de dirigente máximo, o Partido passou a funcionar como empresa, fato de que ele se jacta: passou a dar lucro! O mais importante, entretanto, foi a função que ele assumiu: a partir de agora ele decide tudo e distribui tarefas, verticalmente, como em qualquer empresa capitalista.
[7] AH declara ainda que aprendeu a técnica com a propaganda britânica na Primeira Guerra Mundial e Goebbels elaborou a fórmula: “Com suficiente repetição e conhecimento da psicologia popular, é possível provar que um quadrado na verdade é um círculo. São apenas palavras e palavras podem ser buriladas até serem capazes de mascarar uma ideia.” (Apud CHOMSKY, N. Propaganda and the Public Mind. Chicago: Haymarket Books, 2nd ed., 2015, p. 161).
[8] O filme de Peter Cohen, Arquitetura da destruição, de 1989, dá notícia pormenorizada da exposição Arte degenerada (Entartete Kunst), para a qual foram sequestradas de museus em toda a Alemanha mais de 16 mil obras. Pelo menos 4 mil foram queimadas.
[9] Não chega a ser propriamente coincidência o fato do tema da morte atravessar de modo obsessivo a obra do filósofo do nazismo, Heidegger, como demonstrou Adorno (cf. Adorno, T. La ideología como lenguaje)
[10] A lista completa pode ser encontrada em diferentes verbetes da Wikipedia em inglês, como Nazi book burnings. Ver também bibliocaust, e cultural bolshevism, entre outros.
[11] Entre inúmeros filmes que expõem cenas documentando este julgamento, está o interessante Proibido!, de Samuel Fuller (1959).
[12] Chomsky dedica várias obras ao tema, inclusive a já citada Propaganda and the Public Mind.
[13] Cf. Panorama do Rio Vermelho. São Paulo: Nanquim, 2001.
[14] Embora possamos traduzir a expressão por “pânico vermelho”, é importante registrar que se tratou de guerra declarada e campanha midiática para promover o medo e o ódio aos comunistas, de preferência militante e fanático.
[15] Como aprendemos com o autor de Mein Kampf, e este com o “ministério da informação” inglês, a correspondência aos fatos é dispensável na guerra da propaganda.
[16] Esta Comissão existiu oficialmente até 1975, mas a do Senador Joseph McCarthy, como ficou dito, roubou-lhe a cena a partir de 1950.
[17] Este tema também foi desenvolvido com mais pormenores no livro Panorama do Rio Vermelho, acima citado. Nos últimos anos, a bibliografia sobre o tema ganhou novos títulos no Brasil.
[18] O diálogo foi reconstituído no filme genial de Tim Robbins, Cradle will Rock, de 1999.
[19] Sobre este senhor ainda vale a pena registrar (a título de vingança literária) que era alcoólatra e viciado em morfina. Seu vício foi financiado pelo Federal Bureau of Narcotics, de 1950 até sua morte, cuja causa declarada foi “hepatite aguda” (por honra da firma). Sua carreira durou apenas quatro anos, em parte porque atirou no próprio pé ao seguir o palpite de seu assistente, Roy Cohn, e deu corda a uma denúncia de homossexualismo no alto comando das Forças Armadas. Quanto a Roy Cohn, o filme Citizen Cohn (1992, Frank Pierson) trata deste e demais episódios de sua carreira torpe. Não custa lembrar que foi advogado de Donald Trump nos anos de 1980.
[20] Cf. BELTON, John. A Theory of Justice. 4th. ed., McGraw-Hill, 2013, p. 309. Apud Wikipedia, verbete Lionel Stander.
[21] Segundo Paul Krugman, no New York Times, este presidente é a primavera dos trapaceiros. (Cf. Folha de São Paulo, 10/09/2019).
[22] Criador do site Democracy at Work e autor do livro de mesmo nome, além de professor marxista de economia muito conhecido nos Estados Unidos.
[23] Para mais detalhes, procurar na Wikipedia o verbete Dark Enlightenment.
[24] A tese frontalmente oposta é a da preponderância programática do anticomunismo na mídia hegemônica estadunidense. A obra Manufactoring Consent, de Noam Chomsky e Edward Herman (NY: Pantheon Books, 2002; 1ª ed. 1988), a expõe e demonstra minuciosamente. Na página 29 deste livro encontra-se a afirmação de que “anticomunismo é a religião dominante nos Estados Unidos”. Adicionalmente, Chomsky alerta para o fato de que naquele país os liberais são frequentemente acusados de comunismo para que permaneçam na defensiva. Isto não nos soa agora familiar?
[25] Disponível no site Skidmore College.
[26] Assim como AH, nossos autores não cultivam boas relações com a língua materna. Nem devem saber o significado da expressão “concordância verbal”.
[27] Estas e outras informações podem ser encontradas no ensaio de Ivanderson Pereira da Silva (UFAL-Arapiraca) publicado na Educação em revista (Belo Horizonte, 2018; disponível na internet) com o título “Em busca dos significados para a expressão ‘ideologia de gênero’”. É uma pesquisa de fortuna crítica sobre o tema.
[28] MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 21. Aplicada ao próprio marxismo, esta proposição resultou na obra coordenada por E.J. Hobsbawm, História do marxismo, que na edição brasileira conta com 12 volumes e está disponível para download no site Biblioteca Base.
[29] Para quem está chegando agora, um bom começo é o verbete “cultural materialism” da Wikipedia. Os mais dispostos encontrarão amplo material nas diversas obras de Raymond Williams publicadas no Brasil pela Editora Unesp. Recomendo especialmente A política e as letras, de 2013, em que ele reconstitui sua própria trajetória no trânsito permanente entre cultura e política.
[30] Cf. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989.
[31] Recomendamos uma visita ao site marxists.org, seção “select author”, para se ter uma ideia da quantidade de integrantes desta tradição.
[32] ENGELS, F. Prefácio à terceira edição alemã da obra O 18 brumário de Luís Bonaparte, op. cit. p. 12.
[33] Os excertos publicados no volume Literatura e vida nacional são de extremo interesse para quem tem que se haver com os atuais descendentes do infamíssimo padre Bresciani, jesuíta grosseiro e fanático (1798-1862) que cultivava um espírito de vingança reacionária e caprichava na polêmica áspera, atropelando o interlocutor. Na opinião de De Sanctis, ele era pouco dotado, de caráter vulgar, desprovido de espírito, rancoroso, dado a encenar paixões que não sentia, dedicado a mentir, caluniar e odiar. Não é coincidência a semelhança entre estes traços de falta de caráter e as atitudes dos nossos adversários políticos.
[34] Palenques são os equivalentes dos nossos quilombos em países latinoamericanos. Há histórias de extremo interesse na Colômbia, Jamaica e Venezuela, bem como no Equador, México, Panamá e Peru. Em espanhol, os fugitivos da escravidão eram chamados “cimarrones”.
[35] Marxistas culturais que ainda não incorporaram esta figura fundamental em suas referências podem começar a se atualizar com a obra O quilombismo, já em terceira edição, agora (2019) por conta da editora Perspectiva e do Ipeafro. Abdias propõe que Exu (como expressão dos princípios da comunicação, contradição e dialética) e Ogum (como princípio do compromisso com a luta) sejam considerados símbolos do quilombismo.
[37] Interessados em mais detalhes podem ler o livro publicado em 2018 pela editora Expressão Popular: LUNATCHARSKI, A. Revolução, arte e cultura.
[38] Há vários textos destas e de outras mulheres no livro SCHNEIDER, Graziela (org.). A revolução das mulheres. São Paulo: Boitempo, 2017. Ver, sobre o mesmo assunto, GOLDMAN, Wendy. A libertação das mulheres e a Revolução Russa. In JINKINGS, Ivana e DORIA, Kim (orgs.). 1917 – o ano que abalou o mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.
[39] Cf. o ensaio “O autor como produtor”, disponível em várias edições.

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