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domingo, 3 de julho de 2016

Disputar a cidade, disseminar o afeto

A sociedade não é una, mas dividida em diversos grupos sociais. Por não estarem apartados de seu mundo e de seu tempo histórico, os artistas carregam valores de seu corpo social, ao mesmo tempo em que sonham e agem por meio do espetáculo, buscando criar uma nova cidade e uma nova sociedade.
A arte, por sua vez, é valorada de acordo com o lugar e com o grupo social que a pratica ou a quem se destina. Logo, apresentar-se para camadas populares, do ponto de vista de quem cria o imaginário dominante, não tem o mesmo valor, a mesma importância, daquelas obras e artistas que ocupam os espaços ditos consagrados, como os grandes teatros destinados à burguesia. Por isso o estético é condicionado historicamente, seja devido aos sujeitos que o produzem, seja devido às condições materiais de que dispõem esses sujeitos para sua produção.
Dito isso, cabe destacar um ponto importante que diz respeito ao lugar, ao território e aos pedaços que o teatro de rua ocupa nas cidades, sejam elas grandes ou pequenas. Ainda que esses três conceitos tenham significados e conotações diferenciadas no campo das ciências sociais, aqui eu os utilizo como sinônimos, na acepção de espaços relacionais, identitários e de reconhecimentos dos grupos sociais. Se território e lugar implicam limites definidos, o pedaço diz respeito a uma rede relacional; implica sociabilidade, portanto, borra esses limites físicos. Assim, o pedaço torna-se móvel, pode ser transportado, por exemplo, da periferia para o centro e vice-versa, graças aos sujeitos que ocupam determinado lugar e estabelecem relações entre eles. E é nesse contexto que o teatro de rua entra na disputa do imaginário e de uma nova sociabilidade.
O espetáculo teatral de rua, via de regra, proporciona a participação do indivíduo, não só como um receptor passivo, mas como alguém que age e interage com a obra, com o artista, com o espaço e com outras pessoas do público; ao mesmo tempo, essa modalidade teatral cria o sentido de festa coletiva, isto é, faz com que os sujeitos ali presentes se reconheçam enquanto cidadãos, enquanto grupo social e, por fim, como espécie, homens e mulheres que têm sua importância e sua força social. Por isso mesmo são capazes de desorganizar as convenções impostas e de criarem outras. De que maneira? Ora, a própria apropriação de um espaço, que foi criado apenas para o ir e vir e o escoar de mercadorias, passa a ser um espaço de fruição da arte, realizando uma nova significação para os sujeitos envolvidos, ao mesmo tempo em que gera afetividade, isto é, atribui significados àquele lugar. Se os espaços da cidade e as determinações impostas pelas mesmas implicam relações de poder, apropriar-se de alguns desses lugares já é disputar a cidade e lhe dar novas significações.
O que é a roda (ou outra configuração que um grupo ou artista de rua pratica) senão a criação de um território simbólico? Durante uma apresentação em roda, parte da cidade é reconfigurada, novos significados são criados para as pessoas que ali participam e que, portanto, criam afeto em relação àquele lugar da cidade, ao mesmo tempo em que podem fruir a obra e ver os demais à sua volta, criando certa comunidade, isto é, vendo e reconhecendo-se nos demais ali presente. Nesse momento há certa territorialização, relações e afetividades são criadas entre os sujeitos, com a obra e o lugar, criando novas significações e novas possibilidades de se imaginar a cidade. Ao trazermos o lugar de onde somos em nossas mentes e corpos, nessas trocas simbólicas, relacionais, ampliamos nossos seres; complementamo-nos com o outro, ao mesmo tempo em que podemos vislumbrar uma nova sociabilidade. E todos esses elementos complexos estão envolvidos em uma apresentação teatral de rua. Daí a importância também de se saber com quem queremos dialogar.

Adailtom Alves Teixeira

Professor no Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP; Ator e diretor teatral; Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

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