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domingo, 19 de julho de 2009

O espaço cênico do teatro de rua


Por Adailtom Alves Teixeira

Foto: Augusto Paiva

O teatro de rua ocupa as áreas abertas, como praças, ruas, parques, entre outros, para fazer desses lugares seu espaço cênico. No entanto, esses lugares são dotados de significados, inscrevem parte da história da cidade, portanto, devem ser pensados em toda a sua amplitude para que possam ser bem utilizados.
Se cada época teve o seu espaço de representação, devemos nos questionar acerca de qual seria o espaço de nosso século? Amir Haddad (2005) afirma que arquitetura e espetáculos sempre estiveram ideologicamente ligados e que nos últimos trezentos anos essa ligação foi determinada pela classe dominante, através da cena à italiana. Não obstante, a rua não é o espaço da classe dominante, que a tem apenas como escoadouro do capital, sendo um local perigoso, que deve ser evitado.
A cidade é portadora de duas dimensões fundamentais: a de mercado e a de centro de decisões políticas, que não podem ser esquecidos ao criarmos a dramaturgia e o espaço cênico de qualquer espetáculo. Se pensarmos na cidade de São Paulo, constataremos que as possibilidades de ocupação com o teatro são muitas, isso por conta de suas próprias características. Aldaíza Sposati adverte que São Paulo é uma cidade em pedaços, fragmentada, dividida (2001), já Heitor Frúgoli Júnior se pergunta se ainda temos uma cidade ou apenas “(...) esferas sociais separadas, que já teriam perdido seus elos e mesmo a capacidade de reatá-los” (1995: p. 106). Ainda que esteja em pedaços ou mesmo que não seja mais cidade, tudo que há nela está carregado de significados e recebem “(...) influências econômicas (industrial e de consumo), comunicativas, associativas e culturais.” (FERRARA, 1993: p. 154) Por tudo isso, precisamos pensar a cidade e como a ocuparemos com o nosso teatro, como criaremos o espaço cênico e como daremos novo significado ao ambiente onde ocorre o espetáculo.
Radicalizar a inserção teatral na cidade é fundamental. Já nos anos 1970, o Living Theatre realizava espetáculos dessa ordem, como a performance itinerante Seis Atos Públicos para transformar a Violência em Concórdia, utilizando seis pontos da cidade, cada um representando, em termos simbólicos, o que interessava dentro da história apresentada. Como por exemplo, a adoração de um touro de ouro em frente a uma instituição financeira. Uma crítica mordaz ao capitalismo. Ou O Legado de Caim, um espetáculo composto de “(...) cento e cinqüenta peças separadas que tratam sobre as diferentes funções da cidade” (MIRALLES, 1979: p. 97). Assim, podemos perceber que a cidade em seus fragmentos, pode ser mais do que o espaço da representação, pode ser cenário para a história que se desenrola e, mesmo, a própria dramaturgia.
O espaço cênico nos é dado pelo próprio espetáculo e é “(...) concretamente perceptível pelo público na, ou nas cenas, ou ainda [n]os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis.” (PAVIS, 1999: p. 133), sendo a primeira instância de valor do espetáculo. Por isso mesmo, devemos refletir sobre os fragmentos da cidade que um espetáculo de rua ocupa, já que os mesmos têm reflexo direto na encenação.
André Carreira, com o seu teatro de invasão, propõe que a cidade pode ser uma dramaturgia pulsante, isto é, a cidade e os espaços escolhidos podem direcionar a história. Dessa maneira, precisamos repensar a nossa concepção de espetáculo. Precisamos ver com novos olhos, já que o texto perde o seu papel principal, a visão textocêntrica cai por terra. Para tanto é preciso entender a cidade como um tecido com suas “dinâmicas sociais e culturais”, seus fluxos e contrafluxos e sua textura política e inseri-los no contexto do espetáculo. O autor propõe o uso espetacular da rua, incorporando na cena os fluxos da rua ou subvertendo-os, “(...) fabricando rupturas dos ritmos cotidianos” (2008: p. 69). Mas “(...) se a cidade é um texto dramático, uma encenação invasora será sempre percebida como uma releitura da cidade” (CARREIRA, 2008: p. 71).
Já Ana Carneiro, co-fundadora do Tá Na Rua, afirma que as pesquisas encaminharam o grupo para a concepção cênica em roda. A roda “(...) transforma os atores que nela atuam em fontes irradiadoras que se propagam infinitamente” (2005: p. 123). Além disso, prioriza a horizontalidade na relação entre ator e espectador, sendo, portanto, um espaço privilegiado para a comunhão. No grupo Tá na Rua a utilização do apresentador-narrador faz com que não haja texto escrito, e sim “(...) uma escrita cênica, que se faz na hora, em contato direto com a realidade” (2005: p. 131).
Os dois autores referem-se aos riscos de ocupar a cidade por essas duas vias, exigindo uma nova concepção de espetáculo, diferente das formas tradicionais com um texto ou uma história tendo inicio, meio e fim. Para Carreira o espetáculo dentro de suas concepções estaria mais próximo da linguagem cinematográfica; já Carneiro, entende que o jogo com os espectadores, aliado aos fatos narrados, pode ser deflagrador de uma reflexão dos fatos e da “realidade que circunscreve” os mesmos. Ao mesmo tempo, as duas formas de ocupação da rua exigem um ator bem preparado para lidar com os riscos e as dificuldades inerentes as abordagens, um ator com uma grande capacidade de adaptabilidade.
Por fim, sabemos que há inúmeras outras possibilidades de ocupação da rua para além das duas formas abordadas, para tanto, faz-se necessário pensar o espaço cênico, para que a própria cidade seja ressignificada. Pois “(...) pensar o espaço, o local dos espetáculos, e associados a isto pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador é também pensar o mundo.” (HADDAD, 2005: 62)

Referências bibliográficas
CARDOSO, Ricardo José Brügger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
CARNEIRO, Ana. A rua enquanto espaço privilegiado da relação público/ator: opapel do apresentador-narrador (Tá na Rua – 1981)” In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (Orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005.
CARREIRA, André. “Teatro de Invasão: Redefinindo a ordem da cidade” In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Op. cit.
_____. Teatro de rua: uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007.
FERRARA, Lucrécia D`Alessio. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: Edusp, 1993.
FRÚGOLI Junior, Heitor. São Paulo: espaços públicos e interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995.
HADDAD, Amir. Espaço. In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (Orgs.). Op.cit.
MIRALLES, Alberto. Novos rumos do teatro. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SPOSATI, Aldaíza. Cidade em pedaços. São Paulo: Brasiliense, 2001.
TEIXEIRA, Adailton Alves. A rua como palco: o teatro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. Monografia: História, Universidade Cruzeiro do Sul, 2008.

Publicado originalmente na Revista Arte e Resistência na Rua, Ano 1, nº 01, abril de 2009, p. 06 e 07.

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