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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

POMBAS URBANAS: Voar Alto e Semear Sonhos

Por Adailtom Alves Teixeira – Licenciado em história, ator e diretor teatral

Trabalho apresentado como requisito da disciplina As Práxis Teatrais de Grupos Paulistanos de 1940 a 1980, Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista.
Professor Doutor Alexandre Mate.
Apresentação
O texto que se segue é fruto de uma entrevista com Adriano Mauriz e Juliana Flory, integrantes do Pombas Urbanas e foi realizada em 16/03/08 na cozinha do Centro Cultural Arte em Construção, sede do Grupo, em Cidade Tiradentes, maior conjunto habitacional da América Latina.
A entrevista foi realizada para compor a documentação de uma pesquisa de Iniciação Científica em História sobre o teatro de rua de São Paulo, junto a Universidade Cruzeiro do Sul, em 2007 e 2008. O que se segue é uma transcriação, termo utilizado pela História Oral, em que o texto é apresentado na primeira pessoa e o entrevistado é um colaborador, portanto, um co-autor.
Adriano e Juliana falaram do começo da história do Grupo, dos projetos desenvolvidos e em desenvolvimento, de seus últimos espetáculos e, principalmente, sobre teatro de rua, foco de nosso trabalho na época.

O começo e os projetos
"Todos os seres humanos, sem distinção de classe e de raça, crescem criando suas características individuais de expressar-se, de comunicar-se. Portanto, todos podem ser atores e fazer arte, independente de suas individualidades."
Lino Rojas

O Pombas Urbanas surgiu a partir de uma oficina, um projeto chamado Semear Asas que o Lino Rojas foi desenvolver na oficina cultural Luiz Gonzaga, em são Miguel paulista, em 1989. Na época a Bete Mendes estava na Secretaria de Estado da Cultura e ela o convidou. Era o projeto de criação das oficinas culturais. O Lino vinha de um processo chamado teatro em comunidades, que havia desenvolvido em várias cidades do interior de são Paulo e por isso a Bete Mendes o convidou. Na oficina Luiz Gonzaga, o primeiro projeto de teatro foi o Semeando Asas que deu origem ao Grupo.
Hoje (2008) somos nove integrantes: Adriano Mauriz, Marcelo Palmares, Juliana Flory, Paulo Carvalho, Marcos Kajhu, Natalie Conceição, Ricardo Big, Diego Rojas, José Solón. Agora, aqui, hoje, na Cidade Tiradentes, nós temos mais de trinta pessoas envolvidas no projeto diretamente, fora alunos.
Quanto aos espetáculos, temos mais de dez no histórico. No primeiro momento do grupo, buscamos essa consolidação artística, depois começamos a dar aula e desenvolvemos o projeto Semeando Asas, inicialmente nos bairros da periferia de são Paulo. A quatro anos nos tornamos uma Oscip, que é o Instituto Pombas Urbanas, a partir disso, foram desenvolvidos outros projetos. Um deles foi o projeto Visita Intima Segura, realizado dentro do presídio feminino do Tatuapé. A idéia era formar agentes multiplicadoras de saúde por meio do teatro. Depois veio o projeto A Parceria Que dá Certo, uma assessoria para pequenos produtores rurais, em parceria com o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), e finalmente o Centro Cultural Arte em Construção, que é esse projeto aqui na Cidade Tiradentes. Trata-se da criação de um espaço cultural para a comunidade da Cidade Tiradentes, tendo os jovens como protagonistas do desenvolvimento local, cultural e humano. O projeto do Centro Cultural desdobra-se em outros: o Ponto de cultura, o Casa Brasil, que é a inclusão digital, tem O Canto das Letras, um projeto para incentivar o letramento via teatro, e mais recentemente o Semeando Asas, que tem o patrocínio da Votorantim.
Alguns desses projetos, isso é importante, hoje em dia estão tornando-se pequenos programas dentro do Centro Cultural. Por exemplo, o Semeando Asas é um programa que está voltado para formação de público e formação de jovens em teatro, ele é o eixo da nossa atividade, da nossa ação na Cidade Tiradentes. Tem várias ações de formação para teatro: cursos com profissionais que convidamos, uma programação com grupos amadores e profissionais etc. Já O Canto das Letras, é específico para criança, porque criança é uma demanda do bairro, e queremos dialogar com elas através da arte. Tem o Somos do Circo, um projeto para crianças, mas exclusivamente de circo.
Quando nós chegamos aqui em Cidade Tiradentes, a ideia era trabalhar teatro com o jovem. Só que no primeiro dia que abrimos a porta do galpão vieram cinquenta, setenta crianças que só saiam na hora de comer e na hora de dormir. Por isso começamos a elaborar propostas para elas. Nas aulas de circo, quando precisava lê uma esquete, apesar de muitos estarem na sexta série, não sabiam lê. Então resolvemos fazer uma experiência na biblioteca, mesmo sem formação pedagógica em educação, depois de seis meses havia umas três crianças que tinham aprendido a lê conosco. Então, falamos, se eles gostam de ficar aqui, gostam de aprender conosco e se temos esse espaço, precisamos elaborar projetos para elas também e foi aí que nasceu o Canto das Letras.
As crianças não têm preconceito. Quando chegamos e abrimos as inscrições para os cursos ou nas primeiras apresentações nas ruínas do galpão, as crianças entraram para vê teatro, mas os jovens e os adultos não, porque tinham outra concepção do que é teatro. Abrimos as inscrições: 800 inscritos. Todo mundo quer fazer teatro. Hoje nós temos uma formação continuada de público e um público assíduo de crianças, adultos etc. Mas o nosso foco é o jovem e sentimos que ele ainda tem um pouco de preconceito, por isso estamos melhorando a estrutura do espaço, ele acha que esse teatro não tem a mesma importância que ir ao Shopping Aricanduva. É preciso modificar esses valores. Entretanto, eles gostam de teatro. Tem um grupo que veio aqui, de Rio Grande da Serra, chamado Água e Vida, é um bando de jovem da idade deles que faz teatro, eles adoram! Porque se identificam, se a peça é boa eles gostam. Eles gostam de vê bom teatro. Gostam de estarem confortáveis, não é porque está na periferia que não deve ter conforto.
A nossa relação com o público mudou muito, pelo fato de estarmos integrados na comunidade. Por exemplo, quando apresentávamos teatro de rua no Centro, na Avenida São João, o Mingau de Concreto, as vezes passávamos para irmos num banco e os camelôs perguntavam: e aí, vai ter show hoje? Tratavam-nos como personagens. Aqui apresentamos e no dia seguinte vamos à padaria comprar pão e o vendedor falava: Eh Zamara, eh Zinho, veio comprar pão? Vai dá pão pro macaco?[1] Então há a necessidade não só de apresentar o espetáculo, mas também entender a vida, o dia a dia da comunidade. Porque no centro você está lá trabalhando e aqui você se relaciona com o público na hora de comprar pão, na farmácia... Então é preciso entender muito mais o público.
Quanto a relação com o jovem, às vezes eles não vem porque não conhecem. Mas aí realizamos um projeto em que a escola os trazem, passam a adorar e querem saber quando terá novamente para retornarem. Temos os eventos no auditório de cinema e teatro. Percebemos que eles gostam mais de teatro, porque o cinema eles tem acesso ao dvd, por isso quando ficamos um tempo sem espetáculos, eles perguntam quando terá teatro de novo.
Criamos uma relação humana e muito solidária também, apesar de ser o Centro Cultural, as pessoas dizem "eu vou ao teatro". Aqui é o teatro, tudo é o teatro. É a relação com o teatro. Tem umas coisas muito bonitas, por exemplo, quando veio o pessoal da Colômbia, eles vieram trazer comida; outra vez estávamos trabalhando até meia noite, aí bateram: ta, tá, ta... "Olha meu filho vim trazer refrigerante, que vocês estão trabalhando até tarde". Alguém da comunidade veio trazer refrigerante pra nós porque estávamos trabalhando até tarde. Agora, no projeto Semear Asas, estamos adotando quatro praças, a primeira no Inácio Monteiro. Lá aconteceu um negócio lindo! Eles pintaram a praça inteira, a população pintou a praça para receber o projeto: pintaram as árvores até a metade, reformaram bancos, limparam. Esse é um negócio que eu acho lindo!
E essa praça, está na COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação) mais antiga daqui. A Cidade Tiradentes tem 23 anos, lá tem 32 anos. Quando surgiu essa comunidade veio muita gente do interior de São Paulo. Então eles tinham uma cultura de fazer quermesse, encontrar-se na praça. Mas quando construiu todo o bairro e chegou uma delegacia lá, começou ter uma violência da polícia com eles, foram ficando com medo e foi se perdendo essa cultura. Então, só nesta praça vamos descobrindo que tem outra cultura. Nesse projeto vamos rastrear, tentar recuperar e compreender a história, pois dentro da Cidade Tiradentes tem sub-regiões que tem histórias próprias.
Nessa praça tem uma caixa d`água desativada e a muitos anos não acontecia nada lá, a prefeitura quis tirar e a população do entorno pediu para que não tirassem, porque é a história deles, é um símbolo. Veja, quando chegamos já tinham uma relação com a praça, no passado acontecia muita coisa e faz tempo que não acontece nada, então o teatro ir para lá mexeu com muita coisa na vida deles.
A COHAB é um projeto bem desumano, porque os experts, os engenheiros, construíram pensando em botar o povo pra dormir, mas sem pensar em estrutura. Então por exemplo, nesse lugar as casas não têm garagem – porque pobre nunca vai ter carro – quando puderam comprar carros tiveram que destruir a sala pra poder construir a garagem dentro da sala. Diminuiu o tamanho da casa pra poderem ter um carro. As ruas não tinham espaço para poder passar o caminhão de gás. Assim você vai entendendo como foi gerado a violência ali, compreende por que não tem esses espaços de convivência para se relacionar. O cara fica dentro de casa porque ele tem medo, porque a rua não oferece nada. Então esse é um projeto que gera violência mesmo. Para reverter isso é preciso ter escola, espaço cultural, hospital, infra-estrutura, direito ao lazer, a convivência. Por isso mudamos um pouco nossos conceitos do que é bom teatro, se o teatro amador do Rio Grande da Serra tem essa repercussão com os jovens, porque não é teatro? É um ótimo teatro... agora um cara que vem aqui e ninguém entende nada, não sei se é bom teatro... estou mudando meus valores, entendeu?
Embora até hoje não houve uma peça que eles não gostassem, porque tem muito valor essa situação deles estarem em um lugar juntos e de ter outras pessoas representando para eles. Eles aprendem. Quando veio peças com muito texto, política, eles também curtiram, dialogaram, reagiram.

Pombas Urbanas e a Mídia
Nossa relação com a mídia... O Grupo tem 18 anos, então tem outra história. Tem esse projeto na Cidade Tiradentes e tem também a trajetória do Grupo. Nós começamos a ir para rua em 1996, antes já saíamos, mas o primeiro espetáculo de rua, Mingau de Concreto, foi 1996, e teve muita repercussão. Aliás muita coisa que o grupo fez sempre teve espaço. Aqui, às vezes brigamos pra poder divulgar alguma coisa porque não faz parte do circuito cultural da cidade. Cidade Tiradentes não está no circuito cultural. Já ouvimos assim: "o nosso público não vai aí, o público que compra o nosso jornal, nossa revista, não vai até aí." Por isso não há interesse em divulgar. Mas nós tentamos cavar essa outra imagem do bairro que aqui tem uma vida cultural, tem uma efervescência, tem uma proposta. E somos bem recebidos, eu acredito.
No começo, no Mingau de Concreto, que a gente fazia assessoria de imprensa pra divulgar os trabalhos, éramos bem pentelhos! Porque na época não tinha e-mail, dezoito anos... Então íamos pessoalmente na redação do jornal, porque tinha que levar a foto, ainda não era digitalizada e sempre se dava um jeitinho de subir e falar pessoalmente com o jornalista. E às vezes as pessoas se abriam, porque estávamos ali, desbravando para ser ouvidos e às vezes brigavam conosco. Então, pra conseguir ter um espaço foi muito batalhado no começo. Agora, nesse momento estamos querendo que o Centro Cultural entre no circuito, no roteiro de cultura da cidade, porque aqui vem grupos bons, peças boas, estamos na periferia, mas estamos trazendo coisas boas. Tem essa briga com a mídia e ao mesmo tempo estamos formando jovens pra fazer assessoria de imprensa. Os jovens do bairro. E também estamos abertos paras as coisas que estão acontecendo. Pra nós é um processo de aprendizado, na história do grupo, sempre fomos aprendendo a fazer as coisas e aberto para as coisas que estavam acontecendo. Então, por exemplo, hoje em dia, os jovens estão aprendendo muita essa coisa das mídias digitais, mais alternativas: sites, blogs, não sei o quê... Os jovens estão num processo de aprendizagem e abertos pra tudo que é comunicação. Não interessa só a Folha ou sair na Globo, não, é tudo. Interessa nos comunicarmos e sermos vistos.
Ao fazermos um evento na praça, eles filmam no celular, incentivamos para que coloquem o vídeo no You Tube. Às vezes uma matéria no jornal ajuda a institucionalizar, mas não significa que o seu projeto está se comunicando com todo o público que ele pode atingir. Então também são muitas outras mídias hoje em dia.

A rua e o processo de criação
Como ir para a rua? Pra nós esse foi um processo muito natural, porque em São Miguel não tinha teatro, não tinha um espaço de teatro. Então quando começamos a fazer as coisas, criávamos com o Lino numa garagem da Oficina Luiz Gonzaga, que era grande, aí íamos pra Praça do Morumbizinho e depois começamos a ir para a praça do Forró. Era uma coisa natural. Tinha a cena dos Pássaros Chorões que Vieram da Bahia, que dialogava com o espaço da praça. Eram dois passarinhos que estavam chegando da Bahia e pousavam na praça. Eram coisas que era criado ali com aquele espaço, já vivendo a nossa realidade. A proposta do Lino sempre foi um processo de pesquisa linguagem, dramaturgia e formação do ator. Então não fizemos só rua. Fizemos rua, palco, palco alternativo. Todos os textos eram resultado da nossa poética, do que estávamos vendo e vivendo e da formação de ator, que era a base para o Lino Rojas. Ele teve que abandonar muita coisa do que aprendeu na academia, pra poder dialogar com esses jovens. Então, sempre foi uma pesquisa que dialogava com a nossa realidade, por isso a praça foi natural. E em noventa e pouco, quando criamos o Mingau de Concreto, na verdade só recuperamos um monte de experiências que já brincávamos, já pesquisávamos, fizemos um espetáculo e fomos pra rua. Então, não somos um grupo de teatro de rua. Não, mas a rua foi natural e muito importante!
O primeiro espetáculo do Grupo, Os Tronconenses, não se deu na rua e antes dele teve um monte de intervenção, coisas que criávamos na rua, na garagem, em casa, em qualquer lugar. Os Tronconenses foi feito na garagem e quando subimos a primeira vez no palco pra fazer não sabíamos nem onde era a coxia, nem como entrava, nem como saía, nem que cena vinha depois da outra. Anotamos tudo numa folha de caderno e colamos atrás, nos bastidores. Havia uma parte que eu saia correndo e devia sair pelo meio, era um pano preto – a rotunda –, comecei a apalpar o pano preto do fundo do palco, eu olhava pro público e voltava a apalpar e olhava de novo, até que eu achei a fenda e saí. E o público ria, parecia que era ensaiado. Nós ganhamos todos os prêmios do Festival de Teatro Fepama. E era a primeira vez, não sabíamos o que era palco. Fazíamos teatro sem ter palco.
Agora, o teatro de rua é muito importante, por causa do acesso. O fato das pessoas poderem ver teatro em qualquer lugar, é maravilhoso! Pra nós, fazer teatro de rua, foi uma escola, porque buscamos fazer um teatro que se comunica com as pessoas. Então na rua não tem limites para dialogar com o público. E para São Paulo, uma cidade que nem essa, com uma vida cultural muito grande, mas que tem um monte de gente excluída dessa vida cultural, não tem acesso, tem que ter teatro de rua. É fundamental que tenha teatro de rua em São Paulo.
É possível dá mais condições de acesso. Por exemplo, eu estive numa reunião, num dia desses na Coordenadoria de Educação, eu falei que o nosso bairro, Cidade Tiradentes, tem três teatros e existe um projeto para construção de mais um, que é o Centro Cultural em convênio com a França, aí a coordenadora de educação falou assim: "É mesmo! Aonde?" Respondi: "Nos CEUs (Centro Educacional Unificado)[2], são seus teatros". Ela não sabia que tinha teatro. Então o que eu vejo, é muita incompetência! Porque se o CEU tivesse uma programação, se realmente quisesse... Hoje tem quantos grupos na cidade de São Paulo? Se se visse a importância que o teatro pode ter para as pessoas, dariam acesso. Aí se poderia falar eu não vou porque não quero. Mas hoje não vão porque não podem, porque não tem acesso.
Eu acredito que é importante sim, termos mais grupos de teatro, acho que o público ainda é muito restrito, se juntar todo mundo que vê teatro não enche um estádio de futebol. Ainda são os próprios grupos que veem eles mesmos e o que vai sustentar qualquer ação é ter uma base social. Então o teatro tem que chegar à população. Agora eu ainda acho que os grupos tem que se estruturar melhor, tem que ter independência, não podem esperar que caia do céu, que alguém ou qualquer instituição vá fazer os projetos deles, vá ensinar eles a serem alguém, um grupo profissional, não. Acho que junto com esse processo de surgir mais grupos, tem que melhorar a organização. Vai ser bonito quando tivermos mil, dois mil, cinco mil grupos, entendeu? É preciso pensar mais amplamente, deixar que surjam novos grupos. Outro dia eu vi um russo que mora no Brasil, e é de um grupo de teatro, não lembro o nome dele, ele falava na entrevista que na Rússia teatro é igual futebol. Todo mundo faz teatro. Todos vão ao teatro. Os atores são ídolos, iguais aos nossos jogadores de futebol. Mas aqui a nossa realidade é outra, ator não consegue nem fazer crediário nas Casas Bahia. Vivemos uma realidade bem complicada. Mas o teatro é importante, mas pra ser mais importante é preciso dá mais respaldo, é preciso se organizar melhor, formar mais público tem que ter mais gente gostando e defendendo o teatro. E às vezes as pessoas que fazem teatro fica muito neles mesmos, fica restringindo, aí complica.
No Pombas tem uma coisa, que ao longo dos tempos fomos construindo sonhos. Queríamos ser ator, ter um grupo, ter um espaço, formar jovens; sempre estamos construindo coisas que sonhamos, que pensamos um dia fazer. E uma das coisas que faz parte da nossa infância é sair pelo mundo apresentando, viajar, ir nos lugares e eu acho também que a rua possibilitou conhecermos um monte de lugares. Ir naquele lugar, fazer teatro, conhecer o povo de lá, ir pro outro lugar, conhecer o povo do outro lugar, isso dá um tesão!
Às vezes íamos nas praças que visitávamos, nas feiras, via as pessoas do lugar, tentava conhecer o lugar que estávamos indo, como aqui, estamos aprofundando a relação com a comunidade, eu sei que a rua deu um pouco isso. O Mingau de Concreto nasceu assim, vimos o miolo de São Paulo, o centro do Vale do Anhagabaú, os personagens de lá, quem mora lá, quem vive, como são as relações, pra fazer uma peça. É uma relação assim, grudado com a cidade, é uma relação ali, naquele momento, está acontecendo, o teatro é aquele momento. Tá acontecendo ali naquela cidade, com aquele povo. Pra nós sempre foi muito bonito fazer teatro de rua!
Histórias Para Serem Contadas é um pouco diferente, foi o primeiro espetáculo que fizemos após a morte do Lino. O último foi o Largo da Matriz, em 2004, também de rua. Era um monstrão: trinta pessoas em cena. Era um musical que passeava pela cultura de raiz de São Paulo, fala da história de São Paulo. Foi emocionante fazer. Desde esse espetáculo, desde a morte do Lino Rojas ficamos sem produzir nada. A primeira vez que entramos em uma sala para ensaiar o Mingau como repertório, começamos a chorar. E aí nos perguntávamos: será que vamos conseguir? Aí sentimos que o Lino não tava mesmo... agora são vocês! Agora somos nós que temos que fazer! E aí escolher um espetáculo novo foi difícil. Queríamos falar das histórias da Tiradentes, do que a gente houve, histórias de gente comum. Queríamos falar de pessoas comuns e transformar isso em histórias para serem contadas. Nós já conhecíamos o texto do Osvaldo Dragún, que o Lino tinha trazido pra gente. Mas nós nunca tínhamos montado um texto pronto. "Vamos fazer um texto pronto? Vamos!" Sempre tivemos muita restrição com isso. Queríamos fazer os nossos textos, sempre fizemos. "E a nossa produção, a nossa criatividade, nossa pesquisa? Mas precisamos fazer teatro." Estávamos com muito medo, é melhor fazermos alguma coisa, pra ficarmos mais seguros. Convidamos um diretor, o Hugo Villavicenzio. Pegamos um texto pronto e vamos ensaiar, vamos exercitar o ator, vamos nos exercitar como ator. Voltamos pra sala, pra fazer exercício de ator. Foi muito bom fazer, perdemos o medo do Mingau, perdemos o medo das coisas. Ficamos ensaiando um ano. Apresentamos já umas 40 ou 50 vezes, foi muito bom e foi também vê nossas limitações, foi identificar o que queremos fazer no futuro. Foi muito nos reconhecermos. Fazer teatro é se vê. O espetáculo, eu acho, não é a mesma coisa de nenhum outro. E talvez a gente pudesse ir mais longe com ele, mas tínhamos que fazer, porque estávamos com um projeto, o PAC[3], tinha que fazer nesse ano, fazer apresentações, não dava pra ficar mais tempo pesquisando. Mas foi uma delícia fazer, está sendo!
Mas, mesmo assim não sei o que é teatro de rua. Cada grupo tem a sua forma de falar, de fazer, acho que não "rola" uma definição do que é teatro de rua. Sinceramente eu não sei. Tem grupos que vão intervir mais na arquitetura do lugar... Cada espetáculo nosso foi uma coisa. O Largo da Matriz, parecia uma festa de cultura popular, chegávamos e fazíamos uma festa junto com as pessoas. O Mingau de Concreto também era uma festa, só que uma festa em outro sentido, eram as pessoas dali, falando delas que estão ali. O Histórias são histórias que as pessoas se identificam, vem conversar conosco, contar suas histórias. E nós queremos dialogar, é muito isso... O Lino uma vez falou numa capacitação de jovens: "O que eu sei fazer é as pessoas se relacionarem. Então vamos fazer um exercício aqui pra vocês se relacionarem." Eu acho que o teatro faz as pessoas se relacionarem na rua. A gente já viu cada coisa! Veja, uma coisa que não tem importância nenhuma, teatro, uma mentira que você está contando ali, cria tanta repercussão, cria esse espaço do diálogo, das pessoas se verem, se olharem. Acho bonito pra caramba! Agora eu não sei definir o que é teatro de rua.

Bibliografia
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.


[1]Refere-se ao espetáculo Todo Mundo Tem um Sonho, um infantil que fala de uma família circense que cuidam de um macaco, como se fosse filho.
[2]Inicialmente foram criados 21 CEUs na cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Marta Suplicy (2001-2004). Todos dotados com teatro, sala multiuso, quadra poliesportiva, piscinas, biblioteca, Creche e ensino Fundamental I e II. Nas gestões seguintes (Serra-Kassab), foram construídos outros equipamentos com esse nome, porém modificaram a estrutura.
[3]Hoje ProAC, Programa de Ação Cultural, Lei 12.268/06 da Secretaria Estadual de Cultura, apóia projetos culturais de duas formas, através de incentivo direto do Estado e por meio da renúncia fiscal.

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