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quinta-feira, 21 de maio de 2015

Lete ou dos esquecidos pelo progresso

Adailtom Alves Teixeira[1]

Lete em grego é esquecimento e também um rio que após a morte se atravessava para se esquecer da vida. O espetáculo Lete, da Cia. Beradeira de Teatro, é a tentativa de não esquecimento das mazelas do progresso. Criada em 2013 por Rodrigo Vrech, que assina a dramaturgia e a direção do espetáculo, a Beradeira é uma mostra viva de que a arte só é significativa quando não se aparta da realidade, mas sim busca entender e questionar seu tempo histórico. Aí cumpre sua função social.
O espetáculo Lete, apesar de ser uma ficção, passa em revista cem anos de história de Porto Velho/RO. Ainda assim, por tratar de problemas humanos e das mazelas do progresso na sociedade capitalista, poderia ser a história de qualquer cidade brasileira. Ao olhar mais atento, é como se o grupo de atores (Andressa Silva, Cláudio Zarco, Elizeu Braga e Rodrigo Vrech), jogassem perguntas ao público: o que nos traz o progresso? Na peça, entre outras coisas, uma disputa entre puteiros, uma guerra entre comunidades ribeirinhas e usinas. Quem ganha com o progresso? Apenas os mais fortes, que, por ironia do destino, nunca são aqueles que produzem. Tem sido assim a séculos. Progresso é desenvolvimento humano? Não. Mas homens se veem abandonando suas famílias na busca de melhores condições de vida; comunidades ribeirinhas, que tinham a subsistência da natureza, veem-se obrigados a se tornarem assalariados e deixar a fartura pela miséria. Lá no século XIX, Charles Baudelaire já alertava: “quando todos os indivíduos se aplicarem a progredir, então a humanidade estará em progresso”. Mas o progresso que vemos na peça, e todos os dias por aí, é o da exploração da natureza e de homens e mulheres.
Mas não pensem que esses temas trágicos e todos esses questionamentos fazem do espetáculo algo denso, complexo demais. Não. A comicidade está presente o tempo todo. Afinal, como alertava Brecht, a primeira função do teatro é divertir. E quando rimos, deixamos a emoção de lado, nos distanciamos, refletimos, usamos a razão. A comicidade é tanta que em alguns momentos os atores não se aguentam e riem de si, nesses poucos momentos, há perda, a cena se esvai, pois o humor de padrão televisivo ocupa a cena. Ainda que apenas por lapsos de tempo, merece um melhor cuidado.

A epicização do espetáculo chega a tal ponto que a própria obra passa a ser questionada. Em cena Andressa e Elizeu. Ela, levando à cena o discurso da empresa; ele, (n)a condição de ribeirinho, o outro lado; apresentam um choque de realidade. Realidade que é levada à cena em outros momentos, quando abrem para falar de recente ocupação de 540 famílias em Mutum-Paraná, em uma ação coordenada pelo Movimento dos Atingidos por Barragem. Como frisou o ator: “Isso é teatro. A luta das famílias é real”.
Tecnicamente, o grupo é bem equilibrado, bastante homogêneo. Os atores apresentam bom aterramento, fundamental na tratativa de assunto dessa natureza. A exceção de Rodrigo, os demais merecem um pouco mais de atenção com relação à voz. E, penso eu, que músicas, não apenas a capela, como as que foram executadas por Elizeu, poderiam dar um ganho maior ao espetáculo.
O teatro do Sesc, onde ocorreu a apresentação no dia 20 de maio,  estava lotado e ao término foram ovacionados. Um claro reconhecimento ao trabalho, mas, mais que isso, por parte do público é um se reconhecer em cena. Mais uma prova de que dialogam com seu tempo histórico, e isso mantém o teatro vivo, mesmo sendo uma arte tão antiga. Vida longa a Lete e a Cia Beradeira.




[1] Professor de Teatro na UNIR; ator, diretor e pesquisador de teatro.

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