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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Breves considerações sobre as ideologias estadunidenses que ganharam o Brasil de Bolsonaro


Luiz Carlos Checchia[1]

 

Não há dúvidas de que vivemos um daqueles momentos extraordinários de grandes mudanças políticas, econômicas e culturais em larga escala global. Ser extraordinário não significa que se trata de um momento de avanços, mas, como é o nosso caso, pode ser um período de gritantes e profundos retrocessos, cujas consequências podem ser duradouras e devastadoras para as próximas gerações. Portanto, exige-nos esforços para compreendê-lo e revertê-lo. Lamentavelmente, o mal-estar que essa situação provoca faz com que muitos de nós se lancem corajosamente nesse empreendimento de compreensão, porém, com poucos cuidados, resulta daí, pesquisas sinceras mas superficiais. Prestando todos os respeitos merecidos a qualquer um que tente pesquisar neste cenário, tentaremos aqui oferecer algumas considerações iniciais sobre um conjunto de ideologias que nos parecem ser fundamentais para compreender o momento atual: tratam-se do Destino Manifesto e a Tese da Fronteira, ambas desenvolvidas por pensadores estadunidenses e da teoria do Espaço Vital, desenvolvida por um alemão que a concebeu influenciado pela materialização das duas primeiras, e que as conheceu quando de sua visita aos Estados Unidos da América, na década de 1870. Essas ideologias se amalgamaram e lançaram as bases para novas ideologias determinantes para a conformação - ainda que por caminhos tortuosos e descontinuados - de fundamentais experiências históricas de cunho autoritário do século XX e agora do XXI, dentre elas, o fascismo. Sobretudo, para o nosso interesse neste ensaio, destacamos que tratam-se das ideologias que animam atualmente as diversas expressões da extrema-direita brasileira, que podemos chamar genericamente de bolsonarista. O bolsonarismo é formado por pessoas comuns e lideranças políticas e religiosas que se identificam como conservadores-liberais e que pregam a livre-iniciativa do mercado, o individualismo, os valores cristãos, o livre porte de armas, a luta contra comunistas, feministas e outras causas que teriam como estratégia revolucionária a corrupção do modelo familiar tradicional. Ademais, outro fator distintivo do bolsonarismo é o comportamento de massa em alto grau, graças à forte presença das redes sociais como meio de comunicação entre a sede do bolsonarismo e o seu público.

Tratam-se de ideologias que nasceram em um contexto muito próprio da história estadunidense: o longo processo de revolução burguesa naquele país e que compreendeu um conjunto de eventos desde a luta pela independência do jugo absolutista inglês, passa pela conquista continental (que por sua vez envolve conflitos armados, anexações e extermínio das comunidades indígenas) e a guerra civil entre o norte industrializado e o sul rural escravocrata. Ao completar esse intenso e longo processo, os EUA se abriram para as conquistas imperialistas, iniciando o primeiro conflito interimperialista, a Guerra Hispano-americana, em 1898. Desde então, a política externa estadunidense tem sido o contínuo processo de realização de seus interesses econômicos por meio de guerras diretas e híbridas, iniciativas de “smart power”, influências políticas e econômicas, intervenções militares e golpes de Estado. Mas esse desenrolar histórico não seria possível se seu povo não fosse convencido da necessidade de se envolver em tantos conflitos; realizar e atualizar esse convencimento é o papel da ideologia na história dos Estados Unidos da América. A sua construção como uma “comunidade imaginada” exigiu a legitimação de violentos processos de conquistas e extermínios por meio de narrativas que dessem conta tanto de promover o apagamento desses conflitos quanto, ao mesmo tempo, recriá-los em termos de heroicos mitos fundantes (ANDERSON, 2019). E isso é feito desde o século XIX, tanto pela força da imprensa e da literatura, quanto nos sermões nas igrejas e discursos de políticos, bem como nos filmes de “velho oeste” e séries para a televisão.  

O fato é que o século XIX é o período em que surgem as raízes, os troncos e os frutos da ideologia estadunidense que informa ainda hoje a mentalidade daquela população convencendo-os de que são, ao fim e ao cabo, a referência civilizacional a ser seguida pelas demais nações do mundo. O convencimento se estende, também, a muitas pessoas ao redor do planeta, boa parte delas formadoras de opinião, que veem naquela nação o farol da humanidade, sem perceberem que suas nações são vítimas do imperialismo e do colonialismo estadunidense.

Assim, este pequeno ensaio visa apresentar as três ideologias que surgem naquele período e que moldaram não apenas as feições territoriais e políticas daquele país, mas também abriram caminhos para que, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América se impusessem como juiz, júri e polícia do mundo moderno (LUKACS, 2006).  Também é de nosso interesse provocar debates a respeito dessa temática e inspirar novos e renovados estudos sobre as ideologias surgidas nos Estados Unidos da América e como elas se mantêm influenciando tantas pessoas ao redor do planeta. Acreditamos ser fundamental entender as matrizes ideológicas que animam o bolsonarismo, página de nossa história que precisa ser superada. 

 

O Destino Manifesto

Logo após a contagem de votos encerrar as eleições de 2020 à presidência dos Estados Unidos da América, o então presidente eleito, Joe Biden, fez o seu discurso de vitória. Em pouco mais de quatorze minutos de fala, Biden falou sobre conciliação e cura da sociedade política, recitou versos de um hino religioso para abordar a fé que sustenta o seu país, reafirmou a “missão” dos EUA como farol do mundo e concluiu com a frase “e que deus proteja nossas tropas”. No quase quarto de hora em que discursou como presidente eleito, sem fazer qualquer menção direta, Biden reafirmou uma das maiores ideologias de consolidação dos EUA, o Destino Manifesto

Uma das mais bem acabadas sínteses do que significa o Destino Manifesto é a pintura em estilo clássico American Progress, pintada por John Gast, em 1872. Embora seja um trabalho de pequenas dimensões, pouco mais de 16 por 41 centímetros, é repleto de significados e explicações sobre a doutrina do Destino Manifesto. Na imagem pintada vê-se pairando no ar a musa Columbia, uma representação da jovem nação dos EUA. Sua mão esquerda segura um livro e pela ponta dos dedos da direita traz o fio do telégrafo. Abaixo dela vemos alguns colonos já assentados em suas propriedades trabalhando a terra em família; em outro ponto, vemos pioneiros avançando em suas caravanas seguidos por diligências e estas pelos trens cujas estradas de ferro ainda estão sendo instaladas, assim como estão sendo instalados os postes que carregam os fios telegráficos que Columbia carrega delicadamente. Todo esse movimento tem um único sentido, da costa leste dos EUA, já constituída com suas grandes cidades e portos que se conectam com o Velho Mundo, para o oeste ainda bravio e para onde fogem índios e búfalos assustados com o progresso imparável do povo dos Estados Unidos da América. Essa representação artística pintada por Gast traduz em uma imagem a crença de uma significativa parte dos estadunidenses (dentre eles políticos, jornalistas, publicistas e outros sujeitos de grande influência) de que os Estados Unidos da América eram predestinados pela vontade divina a se tornarem um farol para o mundo. Para isso, deveriam expandir-se a ponto de conquistar todo o continente americano, o que significava povoar toda porção oeste de seu território, ligando a costa leste – onde começou a colonização inglesa e se localizavam as históricas treze colônias – até a costa do oceano pacífico. A crença dessa missão divina amparava-se na certeza de que os EUA formavam uma nação com uma história particular, radicalmente distinta das nações do velho continente, iniciada na luta revolucionária pela liberdade do jugo colonial do absolutismo do rei inglês. A particularidade do povo estadunidense se expressava tanto em sua virtude quanto na solidez de suas instituições. Ou seja, a doutrina do Destino Manifesto pode ser resumida como a missão atribuída por deus aos Estados Unidos da América para resgatar e conduzir os povos. 

Por volta do início da década de 1840 a ideia já circulava intensamente entre os entusiastas do conflito contra o México, mas foi em meados de 1845 que foi organizada como doutrina em um editorial não assinado no The Democratic Review. Poucas semanas depois, um artigo em termos quase semelhantes foi publicado no New York Morning News. Como John O'Sullivan era editor de ambos os jornais e ardoroso defensor da doutrina, acredita-se que foi ele o autor das duas publicações. Os textos teciam veementes críticas aos opositores do processo de anexação do Texas e exortava a população a unir-se em torno da materialização da predestinação dos Estados Unidos da América, conclamando o “[...] cumprimento de nosso destino manifesto de ultrapassar o continente atribuído pela Providência para o livre desenvolvimento de nossos milhões que se multiplicam anualmente”.

O New York Morning News voltou a conclamar a população em torno da doutrina do Destino Manifesto em dezembro daquele mesmo ano quando da contenda com a Grã-Bretanha em torno do território do Oregon então em disputa entre ambas nações. 

A doutrina do Destino Manifesto não surge ao acaso, faz parte de uma elaboração já em curso desde, pelo menos, outra formulação ideológica estadunidense, a doutrina Monroe. Discursando para o Congresso dos EUA em 2 de dezembro de 1823, o presidente James Monroe mandou um severo recado às potências coloniais europeias, alertando-as a não voltarem à carga em seus interesses coloniais sobre as nações americanas recém emancipadas ou em processo de emancipação colonial:

Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não devem, doravante, ser considerados sujeitos de colonização por quaisquer potências europeias (MONROE, 1823).

 

Na ocasião, afirmou o presidente dos Estados Unidos da América que o Novo Mundo e o Velho Mundo formavam duas distintas experiências e que uma não deveria intervir na área de influência política e econômica da outra. Algo que se sustentou apenas até 1898, quando os EUA entraram em guerra contra a Espanha pelas suas colônias iniciando uma longa era em que o Destino Manifesto se espraia pelo mundo e ainda hoje avança contra os povos do mundo (BANDEIRA, 2016).

 

O Mito da Fronteira

Frederick Jackson Turner foi um influente historiador estadunidense, nascido em 1861 e morto em 1932. Considerado o fundador da moderna historiografia estadunidense foi responsável pela formação de uma grande e influente geração de historiadores. Em 1893 publicou o artigo O Significado da Fronteira na História Americana, com o qual  apresentou a Tese da Fronteira que defendia que a conquista do oeste formou um novo tipo humano, forjado na dureza da luta contra a natureza selvagem e a luta contra os povos indígenas por seus territórios. Em outros termos, a conquista da chamada terra livre. Esse novo tipo se caracterizava pelo individualismo, pelo egoísmo, operava centrado em núcleo familiar e organizava-se com outros como ele em pequenas comunidades, tendo à frente a floresta a ser conquistada e às costas o leste estadunidense, onde estavam os centros urbanos com forte influência europeia, amaneirados, por vezes mesmo rebuscados. A costa leste seria, assim, uma fronteira sem mais possibilidades, fechada pelo Atlântico e, depois dele, a velha Europa. Mas o oeste representava um manancial de oportunidades que exigia dos que aceitavam o desafio a força dos músculos e de caráter, a retidão, a disciplina e o vigor para superar as intempéries. Assim, a expansão dos EUA rumo ao oeste forjou esse novo tipo humano que, por sua vez, animou um tipo novo de sociabilidade, excepcional, diferente das demais sociedades sejam do Novo ou do Velho Mundos. 

Por trás das instituições, por trás das formas e modificações constitucionais, estão as forças vitais que dão vida a esses órgãos e os moldam para atender às mudanças nas condições. A peculiaridade das instituições americanas é o fato de terem sido compelidas a se adaptar às mudanças de um povo em expansão – às mudanças envolvidas na travessia de um continente, na conquista de um deserto e no desenvolvimento em cada área desse progresso, das condições econômicas e políticas primitivas da fronteira com a complexidade da vida na cidade (TURNER, 2010, p. 02).

  

O cidadão estadunidense é fruto, portanto, de uma síntese entre o que de melhor criou a Europa mas que foi temperada pela dureza selvagem do continente a ser conquistado e domado. Em seus termos:

A fronteira é a linha de americanização mais rápida e eficaz. A selva domina o colono. É um europeu em roupas, indústrias, ferramentas, modos de viagem e pensamento. Ela o tira do vagão e o coloca na canoa de bétula. Ele tira as vestes da civilização e o veste com a camisa de caça e o mocassim. Isso o coloca na cabana de toras do Cherokee e do Iroquois e mantém uma paliçada indiana ao seu redor. Em pouco tempo, ele começou a plantar milho indiano e arar com uma vara afiada, ele grita o grito de guerra e tira o couro cabeludo à maneira indiana ortodoxa. Em suma, na fronteira o ambiente é inicialmente forte demais para o homem. Ele deve aceitar as condições que ela fornece, ou perecerá, e então ele se acomoda nas clareiras indígenas e segue as trilhas indígenas. Aos poucos ele transforma o sertão, mas o resultado não é a velha Europa, não simplesmente o desenvolvimento de germes germânicos, assim como o primeiro fenômeno não foi um caso de reversão ao marco germânico. O fato é que aqui está um produto novo que é americano (TURNER, 2010, p. 03).

 

Essa síntese entre o legado civilizacional europeu e os esforços exigidos para a conquista da terra livre criou também um novo espírito político, uma democracia liberal em sentido pleno, composta por homens e mulheres fortes, livres, forjados na labuta cotidiana. Sujeitos mais taciturnos, menos intelectualizados, menos filosóficos, mas com um caráter mais firme, mais operosos, mais responsáveis. Para ilustrar essa condição, Turner cita a declaração de um congressista que declarou:

Eles logo se tornam políticos que trabalham, e a diferença, senhor, entre um político falante e um político trabalhador é imensa. O Velho Domínio há muito é celebrado por produzir grandes oradores; os metafísicos mais hábeis em política; homens que podem rachar os cabelos em todas as questões obscuras de economia política. Mas em casa, ou quando voltam do Congresso, têm negros para abaná-los enquanto dormem. Mas um estadista da Pensilvânia, de Nova York, de Ohio ou da Virgínia Ocidental, embora muito inferior em lógica, metafísica e retórica em relação a um velho estadista da Virgínia, tem esta vantagem, que quando ele volta para casa ele tira o casaco e segura o arado. Isso dá a ele osso e músculo, senhor, e preserva seus princípios republicanos puros e não contaminados (TURNER, 2010, p. 13).

 

Para Turner, portanto, a fronteira é o espaço e a experiência que forja o cidadão estadunidense e sua sociabilidade única, distanciando-o das velhas tradições europeias na medida em que avança rumo ao Pacífico: “O verdadeiro ponto de vista na história desta nação não é a costa atlântica, é o Grande Oeste [...] a fronteira é a borda externa da onda – o ponto de encontro entre a selvageria e a civilização” (TURNER, 2010, p. 03). Subjaz à formação territorial dos Estados Unidos da América seja por meio da guerra, da diplomacia e do extermínio dos povos originários a experiência de solitários pioneiros que desbravaram as terras e formaram a nação metro a metro, avançando metro a metro sobre a terra livre

A Tese da Fronteira de Turner mitifica a experiência real e concreta dos pioneiros estadunidenses entre os séculos XVIII e XIX porque centra a formação da sociabilidade dos EUA sem considerar diversos outros processos de suma importância na história, como a Guerra Civil e a escravidão. Ainda assim, a Tese da Fronteira foi e ainda é muito influente na cultura daquela nação, não apenas como História, mas também servindo de tema à produção cultural de massa, destacando-se dentre elas o cinema. Não apenas os clássicos filmes ambientados no “velho oeste” trazem às telas colonos e cowboys corajosos, impetuosos, moralistas e desbravadores, enfrentando hordas de indígenas, domesticando cavalos selvagem e avançando rumo ao oeste distante, mas também em filmes como Guerra nas Estrelas, que coloca em cena colonos desbravando o espaço sideral em busca de um planeta que possa ser seu novo lar. O cinema estadunidense tem colonos, heróis solitários, núcleos familiares e valores comunitários atravessando suas produções em diversos gêneros: a comédia, o drama, a tragédia, a ficção científica e o romance e servem de veículos para recontar o velho mito da fronteira, o mito fundador do povo americano. 

 

O Espaço Vital 

Embora criado por um alemão, o geógrafo e etnólogo Friedrich Ratzel, o conceito de Espaço Vital, também muito conhecido no Brasil pelo seu termo original – lebensraum – é totalmente influenciado pela doutrina do Destino Manifesto e pela tese da fronteira. Ratzel visitou os Estados Unidos da América em 1873, ocasião em que conheceu e se impressionou com ambas formulações e seus resultados práticos tanto no que concerne à mobilização da população quanto nas conquistas territoriais que propiciou. 

Ratzel foi responsável pelo desenvolvimento da geografia política e a sai ideia de Espaço Vital foi determinante para entender os processos de desenvolvimento político das populações humanas e suas conexões com o espaço geográfico que ocupam. Nessa perspectiva, a luta por territórios são, antes de tudo, luta por espaços vitais, e assim, torna-se legítima a conquista de tais espaços pelos povos mais preparados para o fazê-lo, mesmo que isso signifique tomá-los de povos tido como “inferiores”. Em seus próprios termos:

Semelhantes à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as lutas dos povos dão-se quase sempre pelo mesmo objetivo. Na história moderna a recompensa pela vitória sempre foi, ou tem pretendido ser, unir proveito territorial (RATZEL apud WERNECK, 1976, p. 50).

 

A doutrina do Destino manifesto e a Tese da Fronteira foram determinantes para a formação ideológica que animou os estadunidenses em seu processo de colonização das que eram por eles chamadas de terras livres, mas que de forma alguma eram desocupadas, levando à mobilização de suas forças diplomáticas, econômicas e militares. Já o conceito de lebensraum serviu como ideologia que mobilizou as reivindicações coloniais alemãs na virada dos séculos XIX para XX. Poucas décadas depois de formulada, foi acolhido pelos nazistas, que o consideraram fundamental para o desenvolvimento do Reich de Mil Anos. Primeiramente, a vastidão territorial garantiria a segurança e a liberdade, como Hitler escreveu em seu livro Minha Luta, principal referência ideológica nazista.

A garantia da segurança externa de um povo depende da extensão de seu "habitat". Quanto maior for o espaço de que um povo disponha, tanto maior é sua proteção natural; pois sempre foram conseguidas vitórias militares mais rápidas e, por isso mesmo, mais fáceis e especialmente mais eficientes e mais completas contra povos apertados em pequenas superfícies de terra do que contra Estados de vasta extensão territorial.  [...] Na vastidão territorial, em si mesma, já existe uma base para a fácil conservação da liberdade e da independência de um povo, enquanto que, ao contrário, a pequenez territorial como que desafia a conquista (HITLER, 2000, p. 417).

 

Mas para Hitler, não se trata apenas de garantir segurança e liberdade, mas de assegurar campos para assentamentos de colonos que formassem uma ampla e unida nação.

De fato, não há solução fora da conquista de território para colonização que aumente a extensão territorial da mãe pátria e com isso não só mantenha os colonizadores em contato íntimo com o seu país de origem como também assegure as vantagens de uma unidade perfeita (HITLER, 2000, p. 1942).

 

Os nazistas combinaram a conquista do que consideravam seu lebensraum com a busca pela unidade do povo germânico, por isso iniciaram seus movimentos expansionistas com a anexação da Áustria, em 1938, terra natal de Hitler, com a ocupação do leste europeu e da Europa central e, por fim, voltando-se ao imenso território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde almejavam criar o maior campo produtor de commodities necessários para a manutenção do seu Reich por meio da escravização e aniquilação dos povos daquelas repúblicas e o assentamento de colonos germânicos. 

Embora o parágrafo acima parece se afastar do foco deste ensaio – que é a construção de ideologias formadas nos EUA – cremos ser fundamental perceber como que o fascismo alemão se formou também sob a influência do destino manifesto e da tese da fronteira. Um dos principais ideólogos do nazismo, Alfred Rosenberg, era significativamente influenciado pela  política racial estadunidense, inspirando-se nela para compor a política racial do III Reich (WHITMAN, 2017, p. 28); e quando do julgamento de Nuremberg Göring foi questionado como os nazistas tiveram a ideia de unificar a chefia de governo e a chefia de Estado em uma só pessoa, o líder da Luftwaffe respondeu: “dos Estados Unidos da América”.

Podemos afirmar, portanto, que há estreitas e íntimas relações entre as ideologias que animam o colonialismo estadunidense e o colonialismo nazista. Mas essa afirmação precisa ser observada sem simplismos e reducionismos: tais conexões não são diretas muito menos mecânicas, ainda que sejam reais e identificáveis (KAKEL, 2011). São expressões ideológicas animadas por determinações do desenvolvimento capitalista, sobretudo, do período que compreende os momentos derradeiros das revoluções burguesas e o ascenso do conservadorismo que emerge após a Convenção de Viena que coloca um ponto final aos princípios revolucionários que as animaram. Em outros termos: o desenvolvimento da burguesia exige vastos territórios e muitos corpos a serem explorados. E um dos papéis preponderantes das ideologias é dar sentido e significado a esses processos históricos que sem as ideologias não seriam mais que inexplicáveis experiências de violência e conquista. 

 

As ideologias, o conservadorismo estadunidense e a cultura da supremacia WASP

O conservadorismo é uma corrente de pensamento surgida no Reino Unido, seu formulador foi Edmund Burke, advogado, político e intelectual irlandês radicado na Inglaterra que em crítica ao entusiasmo promovido pela Revolução Francesa escreveu o panfleto Reflexões sobre Revolução na França, em 1790. Seu manifesto se tornou de imediato algo como os marcos do conservadorismo moderno (WATKINS, 1966). Burke, apesar de conservador, integrava o parlamento britânico como deputado eleito pelo partido Whig, de cunho liberal. Sua obra exerceu decisiva influência nos Estados Unidos, mas o conservadorismo estadunidense transcende a sua matriz europeia, distinguindo-se dela em muitos pontos e formando seus próprios contornos (SIGLER, 1972). As ideologias aqui apresentadas – o Destino Manifesto, bem como os valores plasmados na Tese da Fronteira e o Espaço Vital –, são os construtos que contribuíram para a formação desses contornos particulares do conservadorismo estadunidense. Foram sumamente necessários para animar e legitimar o processo de revolução burguesa dos Estados Unidos da América, ainda mais porque ela ocorreu de maneira intensa e formada por distintos eventos de grande dramaticidade: a luta de libertação colonial contra o absolutismo inglês; a conquista do oeste; a violenta Guerra da Secessão; o assassinato do presidente Lincoln; e o início do imperialismo, com o conflito contra a Espanha. Entre os primeiros conflitos contra as forças inglesas, nas batalhas de Lexington e de Concord, em 1775, até a vitória contra o absolutismo espanhol, em 10 de dezembro de 1898, são apenas 123 anos recheados de conflitos (inclusive uma guerra civil). Em apenas 123 anos e por meio de contínuo derramamento de sangue, os EUA consolidaram-se territorialmente, forjaram sua identidade e alcançaram o início do século XX como uma das nações mais poderosas do mundo.

Além de dar os contornos do conservadorismo estadunidense, as ideologias aqui apresentadas também animaram as duas premissas que orientaram sua política externa entre meados do século XIX e o início do século XX: o isolacionismo e o unilateralismo (PECEQUILO, 2003). Essas premissas só foram parcialmente abandonadas no governo de Woodrow Wilson, quando o país deixa sua condição de neutralidade e embarca seus soldados para lutarem na Primeira Guerra Mundial, em 6 de abril de 1917. Sua entrada naquele conflito impulsiona e revigora seu movimento expansionista, mas o isolacionismo e o unilateralismo não são totalmente abandonados, continuam marcando sua política externa e atualizando politicamente o Destino Manifesto, os valores da Tese da Fronteira e a sua luta por Espaço Vital.

Outro produto cultural desse processo ideológico é a cultura WASP, sigla em inglês para “branco, anglo-saxão e protestante” (White, Anglo-Saxon and Protestant). A cultura WASP resulta como a identidade do “estadunidense típico” e anima as organizações supremacistas e patriarcais que ainda existem no “Estados Unidos profundo”, sendo a Ku Klux Klan a mais antiga delas (McVEIGH, 2009). Não é à toa que a maior realização cinematográfica estadunidense ainda é o filme O Nascimento de Uma Nação, de D. W, Griffith, de 1915. O filme, que retrata a reconstrução do país após a Guerra da Secessão, apresenta a população negra como selvagens, hostis, fraudadores e lascivos, enquanto a população branca são aqueles que podem tornar os EUA uma grande nação. Nesta narrativa, os cavaleiros da Ku Klux Klan são retratados como heróis honrados responsáveis pela defesa da moral e dos princípios que tornam “grande” os Estados Unidos. O filme, ao retratar a vida de duas famílias, uma do sul e outra do norte, coloca os valores defendidos pela Klan o grande elo entre as diversas perspectivas de país: a Klu Klux klan e tudo o que representa são, assim, a própria alma dos Estados Unidos da América.

Interessa destacar que a cultura WASP não apenas se mantém, mas também se atualiza. A atualização mais recente e que tem provocado grande preocupação para parte das autoridades estadunidenses é o chamado QAnon (WENDLING, 2021; FANJUL, 2021). Trata-se de uma organização política baseada em narrativas bizarras e extremistas, que misturam cristianismo, implantes de chip em pessoas, extraterrestres, organizações de esquerda que fazem pactos satânicos pelo poder e outras fantasias. Por mais absurdas que possam parecer (e são), no fundo, as crenças do QAnon reatualizam as crenças supremacistas brancas, patriarcais e de excepcionalidade do povo estadunidense e da cultura WASP. O número de cidadãos que acreditam nessas fantasias é de tal magnitude que a colocou sob preocupação e, ainda, sob investigação por parte do serviço de segurança interna. O QAnon faz  parte de uma nova geração de agrupamentos que se formam já sob o contexto das redes sociais, meio que tem sido solo fértil para a eclosão de ataques contra a comunidade LGBTQIA+, negros, latinos, migrantes e outras populações que não se enquadram à identidade WASP. Recentemente, os EUA enfrentaram um auge desse movimento com a gestão Donald Trump (McVEIGH; ESTEP, 2019). Apesar dos grandes esforços da militância do Partido Democrata e de todos os opositores do governo Trump, a vitória de Joe Biden se deu por uma margem estreita de votos, o que significa que, após quatro anos de gestão Donald Trump, quase metade dos eleitores dos Estados Unidos da América ainda se identificavam com sua visão política (MARS, 2020). 

 

O Bolsonarismo e suas perigosas conexões

O bolsonarismo, evidentemente, não criou o racismo ou o machismo e muito menos criou o fascismo. Mas certamente atualizou-os em uma nova chave. Desde pelo menos um ano antes das eleições, Bolsonaro entrou em evidência nacional. O sucesso na popularização do então deputado pelo Rio de Janeiro se fez graças a uma ampla rede nacional formada por lideranças políticas e religiosas espalhadas por diversas cidades brasileiras, também contou com vereadores e deputados estaduais que organizaram as estruturas locais necessárias para recebê-lo e promover encontros e palanques. Também se beneficiou de polêmicas participações em programas humorísticos de TV. Toda essa intensa movimentação fomentou rapidamente um “caldo de cultura” reacionário que trouxe para a luz do dia e para um quase grau de normalidade toda uma subcultura fascista que se movia nas sombras e apenas em poucas ocasiões se colocava publicamente. A antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias se notabilizou pela pesquisa que realizou sobre a atuação na internet de grupos de extrema-direita.  Em 2019, ela identificou 334 grupos de extrema-direita, entre fascistas, supremacistas brancos, nazistas e outros, em atividade e formando ampla e capilarizada rede de disseminação de ideologias nazi-fascistas. Essa rede também se articula em ações concretas de grupos e gangues. Esses grupos mantêm com o bolsonarismo  uma conexão antiga, como demonstra o portal UOL em 06 de abril de 2011 – portanto, sete anos antes da eleição de Bolsonaro à presidência da República, em outubro de 2018 - “Neonazistas ajudam a convocar "ato cívico" pró-Bolsonaro em São Paulo”. Tratou-se de ato em apoio ao então deputado Jair Bolsonaro que se via envolvido em polêmica provocada por suas declarações racistas feitas em um programa de televisão. Se o ato de 2011 pode parecer algo eventual, a matéria do jornal eletrônico El País de 09 de junho de 2020, escrita pelos jornalistas Gil Alessi e Naira Hofmeister, traz o título: “Sites neonazistas crescem no Brasil espelhados no discurso de Bolsonaro, aponta ONG”, e denuncia as atrações mútuas entre tais agrupamentos e o ex presidente da república. O fato é que tais organizações e os militantes nazifascistas têm destacado e fulcral papel na ascensão do conservadorismo no país e que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Mas a aproximação do bolsonarismo às organizações de extrema-direita não se limita àquelas de orientação europeia. Como apontamos acima, há uma corrente do conservadorismo de feições estadunidenses e é com ela que os adeptos do bolsonarismo mais interagem e tecem suas mais firmes costuras. Não por outro motivo que estão intimamente ligados à Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês), maior organização conservadora do mundo, criada em 1974, nos EUA. Em 2019, elementos diretamente ligados ao bolsonarismo, como o deputado Eduardo Bolsonaro, realizaram o primeiro CPAC-Brasil, que contou com sua segunda edição em 2021, com presenças de importantes figuras do conservadorismo estadunidense, como Donald Trump Jr., filho do ex-presidente dos EUA. Também deve-se destacar a presença no CPAC-Brasil de Jason Miller, assessor e conselheiro de Donald Trump e criador da rede social Gettr, voltada ao público que se identifica com as ideologias ultra-conservadoras. Miller, além de participar do CPAC-Brasil, encontrou-se tanto com o presidente Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro. 

Outro ponto de conexão que deve ser percebido entre as ideologias que formam o conservadorismo estadunidense e o bolsonarismo é a forma como vivenciam o cristianismo. Embora o catolicismo tenha sido a religião que historicamente mais se aproximou das esferas do poder no Brasil e as influenciou, a ascensão do bolsonarismo está associada à ascensão das denominações neopentecostais no país. O neopentecostalismo tem uma história própria no Brasil, muito mais antiga que a do bolsonarismo, mas quando essas duas forças se encontraram criaram uma íntima associação, uma parceria de fortalecimento mútuo. O catolicismo tem uma prática política que se constitui muito mais na influência que exerce sobre os governantes e as classes dominantes (SILVA JÚNIOR, 2006) ao passo que os neopentecostais optam pela participação direta no governo, comprometendo publicamente políticos e candidatos, levando-os aos seus púlpitos e cultos e, mesmo, elegendo pastores tanto para cargos no executivo quanto no legislativo. O livro The Family, do jornalista Jeff Sharlet, apresenta com rigoroso detalhamento como grupos religiosos atuam diretamente no núcleo do poder político e econômico nos Estados Unidos da América, sobretudo, em tempos recentes, chegando até a era Donald Trump. De maneira semelhante, o jornalista Andrea Dip publicou em livro a investigação que fez sobre a relação entre denominações neopentecostais e política no Brasil recente. Em comum, ambas as reportagens demonstram como as denominações neopentecostais tornaram-se, em tempos recentes, potentes forças políticas, tanto nos EUA quanto no Brasil, e estão por trás da inflexão ideológica vivida por ambos os países. Mas ainda é preciso fazer mais uma importante consideração a respeito: os EUA são uma nação que nasce eminentemente protestante graças à forte presença de puritanos entre os seus primeiros colonos. O Brasil, por sua vez, é fruto de uma colonização católica. No entanto, a ascensão protestante no país, sobretudo as neopentecostais e baseadas no que ficou genericamente conhecido como “teologia da prosperidade”, parece ser fruto da influência político-religiosa estadunidense (SHARLET, 2008). Ainda em comum, o que ambas as reportagens demonstram é que os grupos políticos-religiosos neopentecostais se baseiam em valores ultraconservadores, misoginia e patriarcado.

 

À guisa de conclusão

Vivemos atualmente um período de grande retrocesso em escala global. As tensões começaram a se formar no cenário geopolítico a partir da crise de 2008, levando, entre outras consequências, à ascensão de governantes de extrema-direita em muitos processos facilmente identificados como fascistas. O quadro se tornou ainda mais drástico com o advento da pandemia de COVID-19 em 2020, arrastando muitas nações às condições catastróficas, como é o caso da Índia e do Brasil, mas pela qual passou também o próprio Estados Unidos da América, com mais de 600 mil vidas perdidas. Mas mesmo aquela nação que pôde disponibilizar uma grande quantidade de vacinas para sua população amargou a falta de interesse de seus cidadãos em buscarem a imunização, o que fez com que 99% das mortes de estadunidenses pela doença em 2022, fossem daqueles que se negaram a vacinar-se. Não é à toa que os EUA viveu surtos de COVID-19 nas regiões em que o discurso negacionista tem sido mais forte, como no estado do Arkansas, o mais baixo índice de imunização daquela nação, com apenas um pouco mais de 30% da população vacinada. 

No Brasil, as tensões entre as classes estão na própria origem de nossa nação e com o acréscimo de serem atravessadas pelo legado colonialista formado, entre outros elementos, pelo patriarcalismo e pelo racismo. Todavia, as recentes crises econômicas e políticas intensificadas pelos políticos de extrema-direita acirraram tais tensões, levando à ascensão de Bolsonaro ao governo federal, mesmo com sua agenda fascista avisada e publicizada desde antes de sua candidatura: suas iniciativas governamentais que combinaram o ultra-liberalismo com o ultra-conservadorismo não foram absolutamente nenhuma surpresa. E estando avisadas com antecedência, os mais de 57 milhões de votos que Bolsonaro conquistou nas eleições de 2018 foram dados por pessoas que concordaram com seus posicionamentos, alguns mais outros menos, mas todos deram, ao fim e ao cabo, seus votos a ele. Foram motivados, certamente, por valores e significados apresentados pelas consignas de campanha bolsonarista que ecoaram junto a mais da metade da população brasileira. Não é possível apenas considerar que foram “enganados” por massivas mensagens de WhatsApp: acreditar nisso seria crer que a população brasileira é por demais ingênua e infantil. Nos parece que as coisas são muito mais densas e complexas do que isso. Acreditamos que há grandes construções ideológicas que permeiam os mais profundos construtos de nossa cultura comum e que foram acionadas por setores ultra-conservadores da política nacional, que ascenderam no bojo das crises política e econômica provocadas pela atuação de parlamentares interessados pela desestabilização do governo Dilma Rousseff  através da tática que ficou conhecida como “pautas-bombas” (SANTOS, 2017). Bolsonaro é, tão somente, parte desse movimento, um de seus agentes que soube aproveitar aquele conflituoso processo e ascender politicamente por dentro dele, capilarizando sua influência junto a população e aglutinando apoios de lideranças populares e sociais até alçar a posição de representante máximo dos anseios ultra-conservadores da sociedade brasileira.

A influência da ideologia conservadora estadunidense é de tal ordem que nos invade, ainda, com o culto ao rebaixamento intelectual e a uma espécie de “praticismo” empreendedor que a molda e que tem sido, nos parece, a ideia-força que alimentou o discurso governamental de que “a economia não pode parar”, mesmo quando todas as evidências científicas deixaram claro da importância das políticas de fechamento para contenção da pandemia de COVID-19 naquele momento. Não à toa, mesmo um historiador conservador estadunidense de origem húngara, John Lukacs (2006), escreveu:

Os Estados Unidos “podem se tornar os ditadores do mundo”, um potencial contra o qual John Quincy Adams advertiu em 1821. Ele advertiu aos estadistas e o público que mantivessem um limite consciente em suas ambições ideológicas, políticas e geográficas. De uma maneira geral, o fizeram por muito tempo [...] Mas chegou a mudança. Os Estados Unidos se tornaram os ditadores de grande parte do mundo, uma circunstância encorajada por seus próprios ‘conservadores”. Isso aconteceu com o embrutecimento dos norte-americanos, de suas maneiras e tradições. Quando presidentes do país agora, incorporaram a farda de comandante-chefe; quando os aviões de guerra são chamados de “predadores”, “raptadores”, “falcões negros”, “javalis”; quando a imaginação de milhões de jovens norte-americanos é inspirada por monstros, dragões, dinossauros, Guerra nas Estrelas, isto nada mais são que sintomas superficiais de uma ideologia nacional embasada em um tipo perigosamente superficial de espiritualidade: a crença de que, naturalmente como ordenado por Deus, os norte-americanos são o povo escolhido do Universo. Daí sua propensão a pensar que todos os que se opõem a eles são do mal; são o oposto da América, do bem; um emprego corrompido dos termos do Velho Testamento, uma surpreendente evidência de um necessário autoconhecimento (LUKACS, 2006, p. 423).

 

É claramente perceptível a correlação entre o conteúdo desse excerto de John Lukacs e os contrassensos em palavras e atos de boa parte dos adeptos do bolsonarismo; inclusive os proferidos e praticados pelo próprio Bolsonaro. Sendo assim, uma das mais importantes tarefas históricas que se colocou para nós é compreender tais construções ideológicas, suas origens, suas dinâmicas, suas adaptações e acomodações. E como são acomodadas e atualizadas em nossas relações cotidianas. Isso passa por percebermos o que há de específico no desenvolvimento de cada nação e o que há em comum entre elas. Neste quesito, destacamos que tanto os Estados Unidos da América quanto o Brasil, apesar da clássica distinção feita em seus processos de colonização, segundo a qual aquele foi no sentido do povoamento e no nosso de exploração, o fato é que ambos os países se consolidaram por meio de agressivos processos de colonização interna, nos quais suas elites utilizaram e utilizam os mais agressivos aparelhos repressivos de Estado para garantir seus interesses antes da população em geral.  

Nos parece que a grande aproximação do conservadorismo atualizado estadunidense ao brasileiro tem logrado êxito porque compartilham, justamente, de experiências coloniais internas muito semelhantes, ainda que, em termos de relações externas ocupam posições distintas no arranjo global do sistema capitalista (HORNE, 2010). Por outro lado, não podemos deixar de notar que há um intenso movimento de ascensão do conservadorismo no mundo, inclusive por meio de organizações e instituições que promovem e coordenam esse movimento, como o já mencionado CPAC e suas edições brasileiras. Além do CPAC, há as diversas entidades (tipo think tank) que mantêm intensa atividade de formação ideológica conservadora no país, como Instituto Mises, Instituto Liberal, Instituto Millenium. Também há uma rede de influenciadores conservadores brasileiros dos quais destacamos Oswaldo Eustáquio, Caio Coppola, Paulo Figueiredo, Ana Paula Henkel e o que veio antes de todos, Olavo de Carvalho (falecido em janeiro de 2022), todos os anteriores possuem milhares e milhares de “seguidores” nas redes sociais, participam protagonicamente de programas de televisão e rádio e ministram cursos e atividades de formação política. E enquanto tornam-se cada vez mais populares e influentes, reivindicam afirmativamente a tradição conservadora oriunda da história dos Estados Unidos da América. Tradição essa baseada na doutrina do Destino Manifesto e na Tese da Fronteira, e que terminam por transformar o Brasil em um imenso Espaço Vital para o imperialismo estadunidense.

Fato é que o conservadorismo estadunidense, direta e indiretamente tem influenciado uma significativa parte de nossa sociedade; e é notório o entusiasmo do ex presidente do Brasil e sua família pelo conservadorismo estadunidense. Todo esse intenso movimento ultraconservador tem ampliado os riscos às comunidades LGBTQIA+, negra, indígena, quilombola, das religiões de matriz africana, bem como militantes de esquerda, ativistas culturais e outros mais que são considerados “perigosos” ao modelo ideológico de família e sociedade defendido pelo fascismo bolsonarista. A experiência recente tem demonstrado que o bolsonarismo se constitui numa inflexão societária preocupante: apesar de todas as centenas de milhares de mortes por COVID-19 que poderiam ser evitadas, do fracasso econômico, do aumento da violência de Estado, das tragédias ambientais e perseguições políticas, o bolsonarismo mantém uma margem de aprovação alta, que entre os índices de “ótimo”, “bom” e “regular” se encontra, em setembro, em 45%. Corre-se o risco do bolsonarismo ser muito mais duradouro que a presença de Bolsonaro na presidência da República, assim como o trumpismo se mantém sua potência política nos Estados Unidos da América, a despeito da vitória de Biden sobre Donald Trump. Isso porque as forças que animam e sustentam tais ideologias e governo não estão restritas às pessoas que apoiam e ocupam as cadeiras de governos. Ocupar um cargo eletivo público tem muito a ver com uma contingência, um contexto político. Mas ser uma força política constituída é algo perene, constante, que atravessa os governos. E o bolsonarismo tem servido de vetor a uma força dessa natureza, com grande penetração popular e que se consolida. E se consolida sobretudo pela força de sua ideologia, que nos parece, tem fortes raízes nas crenças de excepcionalismo estadunidense. E essas ideologias, por sua vez, é formado por meio de experiências históricas que envolveu o genocídio de povos originários, a escravização, a subalternização de mulheres e a valorização do homem hiper-masculizado. Por isso, a sociedade que se ergue sobre tais valores será fechada para a formação de sociedades democráticas, participativas, plurais e diversas, abertas para o acolhimento de pessoas e povos migrantes. Debater o bolsonarismo tanto em termos políticos quanto ideológicos é, acima de tudo, debater projetos de sociedade e país. 

Chegou o momento, cremos e propomos, em que é preciso que nos debrucemos com seriedade e profundidade sobre tais problemas e questões. Compreender e superar a atual situação vivida por nosso país passa, incontornavelmente, por compreender a força da ideologia que a anima.

 

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[1] Historiador, dramaturgo e diretor teatral, doutor pelo Programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades do Diversitas, FFLCH/USP.

 

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